Historiografia e Aspectos Conjunturais para a Edificação do Código Civil Brasileiro

AutorAlcio Manoel de Sousa Figueiredo
CargoAdvogado. Professor universitário, com especialização em Direito Contemporâneo e em Administração Empresarial pela UFPR
Páginas15-20

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1. Introdução

A construção do atual Código Civil Brasileiro iniciou-se em 23 de maio de 1969, pela "Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil", nomeada pelo ministro de Estado da Justiça, doutor Armando Falcão, no governo do presidente Ernesto Geisel. Essa Comissão foi formada sob a supervisão do professor Miguel Reale e integrada pelos juristas José Carlos Moreira Alves (Parte Geral), Agostinho de Arruda Alvim (Direito das Obrigações), Sylvio Marcondes (Atividade Negocial), Ebert Vianna Chamoun (Direito das Coisas), Clóvis do Couto e Silva (Direito de Família) e Torquato Castro (Direito das Sucessões).1

Transcorridos mais de trinta anos, os elaboradores do Código Civil Brasileiro2 venceram um árduo caminho, correntes e idéias, relações de força e de poder.3

Em verdade, os autores do Código Civil Brasileiro conviveram com a ditadura militar, a crise econômica, a liberação da economia, a globalização, a exclusão social, a constante evolução da ciência, da técnica e do mercado, a participação efetiva da sociedade, entre outros acontecimentos, atores, cenários e relações de poder, como será apresentado.

2. Aspectos conjunturais

No Brasil nos anos sessenta, a burguesia multinacional, representada pelas empresas transnacionais (ETNs) e impulsionada pela internacionalização do país, justificava seus investimentos (capital e tecnologia) pela declaração uníssona de "acreditar e investir no Brasil".4 As ETNs baseadas na força do capital e na promessa de prosperidade da sociedade brasileira, opõem-se ao populismo, às posições nacionalistas e aos movimentos de massa.

Nesse contexto, segmentos sociais nacionais se aliaram às forças armadas criando a Doutrina de Segurança Nacional (DSN), objetivando combater as oposições, as greves, os conflitos sociais, as mobilizações de massa e executar seus objetivos estratégicos de política econômica. Esses segmentos sociais criaram o IPES (Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais), que aparentava ser um movimento de homens de negócio, porém encobria uma sofisticada campanha política, ideológica e militar contra o governo constitucional de Goulart.5

Em 1964, os militares assumem o poder,6 reprimindo os movimentos populares, centralizando os poderes do Estado no Executivo,7 impondo a repressão generalizada, pois qualquer adversário político era inimigo do país e devia ser eliminado em nome da segurança nacional, desencadeando a "operação limpeza" com prisões e torturas. Em outras palavras, o governo militar reprimia os movimentos populares, assumiu as diretrizes da burguesia e da classe média, possibilitando oportunidades e financiamento para bens. Já para a classe trabalhadora, o arrocho salarial e as intervenções garantiam o controle e concentravam a renda, ampliando a miséria e a exclusão social.8 O marco significativo do governo militar se verificou com o AI-5 no ano de 19689 e com a legislação imediatamente subseqüente, que assegurou ao presidente da República poderes para decretar o estado de sítio, o recesso no Congresso, a intervenção nos Estados, a suspensão dos direitos políticos e a cassação de mandatos; suspendeu o habeas corpus para crimes considerados de Segurança Nacional, vedando qualquer ação judicial contra atos do Executivo com base no ato constitucional. No ano seguinte, 1969, o sistema se consolidou, ou melhor, a centralização do Poder foi ratificada pela sofisticação dos órgãos de informações, da repressão, da tortura e dos denominados porões da ditadura.10

Os militares assumiram o poder na maioria dos países da América Latina (Chile, Argentina, Uruguai, Peru, Bolívia e Brasil). Na retaguarda dos golpes militares estava o apoio dos Estados Unidos da América, os quais tinham por objetivo salvaguardar seus interesses, em especial a derrubada das barreiras econômicas e políticas. Em verdade, os golpes militares estavam associados aos interesses das elites nacionais e internacionais, sendo uma reação das classes dominantes ao crescimento dos movimentos sociais. Os regimes militares centralizaram todas as decisões no Poder Executivo, suspenderam eleições, fecharam partidos, reprimiram todas as manifestações de oposição aos regimes, por meio de prisões, torturas, mortes e o caminho negro de violências.

Expressões como o "milagre econômico", "modelo brasileiro" e "gigante da América Latina" eram a forma como o mercado mundial descrevia o Brasil. Este milagre estava consubstanciado em três pilares básicos: a) a exploração da classe trabalhadora, pelo arrocho salarial e repressão política; b) a ação do Estado assegurando o crescimento do capitalismo, com a conseqüente consolidação do capital nacional e internacional, e c) a entrada de capital estrangeiro, por meio de empréstimos e de investimentos.

O Estado brasileiro, para assegurar o milagre econômico, controlava a política salarial, subjugava a classe trabalhadora, patrocinava obras faraônicas, privilegiava as multinacionais, ou seja, favoreceu a concentração de capitais, as fusões e associações de empresas e o rápido enriquecimento das grandes empresas financeiras, empreiteiras e mineradoras.

Em 1973, a crise mundial do Petróleo fez com que o "milagre econômico" começasse a decair e se apronfudasse no decorrer da década, ou seja, agravando o quadro da miséria e da exclusão social no país.11 A propósito, o bolo cresceu, mas se esqueceram de dividi-lo.12 Em 1974, o general Ernesto Geisel iniciou de forma lenta e gradual a abertura política, permitiu as eleições diretas para governador de Estado, e a oposição teve uma maciça vitória nestas eleições. Os movimentos sociais ressurgem em oposição ao sistema ditadorial (CNBB, OAB, ABI, CBs, CBA, UNE), explosões das greves, reorganização do sindicalismo, campanha nacional e internacional da anistia irrestrita, inflação altíssima, entre outras transformações sociais e culturais da sociedade.13

Ao lado disso, aumenta a dependência e subordinação do Brasil aos países centrais e ao FMI. O endividamento externo do Brasil faz com que assuma compromissos que agravaram ainda mais a situação social.14A população se une à campanha das "diretas já". Em 1985, em eleições indiretas, Tancredo Neves (PMDB) vence as eleições com amplo apoio popular, vindo a falecer sem tomar posse.15 José Sarney - vice-presidente - assume o governo provisoriamente, sendo empossado em junho de 1985. As eleições de 1986 para deputados e senadores formaram os membros do Congresso Nacional e a Assembléia Nacional Constituinte. Em 5 de outubro de 1988, foi promulgada a Constituição Federal,16 assegurando o respeito aos direitos do cidadão, ampliando direitos e liberdades individuais e a iniciativa popular no legislativo. Em 1989, congelamento de preços e salários, mediante o Plano Verão. Ocorre a primeira eleição direta para presidente da República, sendo vencedor Collor de Mello (no segundo turno), com promessas de atender aos excluídos e promover a modernização em todos os setores. Em 1990, anuncia o maior choque econômico do país (bloqueio da poupança, congelamento de preços, salários etc.).

As denúncias de corrupção no governo Fernando Collor17 resultaram em seu impeachment. Em 1992, Itamar Franco, vice de Collor, assume a Presidência da República.18Em seguida, foi eleito Fernando Henrique Cardoso para presidente da República.19 O governo FHC ratificou a internacionalização da economia iniciada nas décadas anteriores,20 com a desregulamentação total da economia e das barreiras comerciais, a livre circulação de bens, de trabalho e de capital.21 A concentração de renda e a exclusão da maioria da população podem ser visualizadas no seguinte quadro:

[NO INCLUYE TABLA]

Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios - PNAD - 2001, Brasil, Síntese de indicadores, Rio de Janeiro: IBGE, 200222

O quadro supra demonstra que 75,1% da população economicamente ativa (PEA) brasileira ganha no máximo até 02 salários mínimos e que 90,9% ganha até 05 salários mínimos. Observa-se uma alta concentração da renda, pois mais de 83% da força de trabalho recebe menos de três salários mínimos.

O tema globalização vem marcando o debate sobre a economia mundial e as relações internacionais do país. A recapitulação dos fatos ocorridos nos anos 90 demonstra a política neoliberal implementada em todos os setores pelo Governo Federal, tais como: a) privatizações; b) criação de um exército de trabalhadores informais; c) abertura da economia ao capital estrangeiro; d) austeridade fiscal; e) restrições a gastos públicos; f) eliminação dos direitos sociais e dos direitos trabalhistas etc. Em outras palavras, o regime capitalista23 se solidifica.24

3. Retrospecto histórico

O contexto econômico-social do Brasil por ocasião da promulgação do revogado Código Civil (1916) consistia numa economia agrária mantida pelo sistema colonial, cuja vida econômica era reduzida às exportações de matérias primas e da importação de artigos fabricados. A indústria nacional era obsoleta, a população era pobre no sentido econômico,25 predominavam os interesses dos fazendeiros para o comércio internacional e dos comerciantes para o comércio nacional. As cidades eram verdadeiros empórios de importados, a classe dominante imitava os hábitos das nações superiores, conduzindo a uma idéia falsa de progresso e desenvolvimento cultural, social e econômico. A economia era baseada na exploração da terra e dependia do mercado internacional, a renda das elites somente era possível pela exploração do trabalhador, cujos interesses sedimentavam o sistema, pois esta era a maneira de sobrevivência e da manutenção dos privilégios e da ascensão social. No plano político o controle era resumido à burguesia agrária e à burguesia mercantil.

O Código Civil de 1916 era obra de cidadãos de classe média, que o elaboraram neste contexto social, objetivando fornecer à sociedade brasileira um código de direito privado que "correspondesse às aspirações de uma sociedade...

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