A hermenêutica constitucional como instrumento de efetivação do direito à segurança pública

AutorGustavo Almeida Paolinelli de Castro
Páginas41-59

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Introdução

Este artigo tem o propósito de analisar, sob o ponto de vista da hermenêutica jurídica, os obstáculos e desafios na concretização do direito à segurança pública à luz do paradigma do Estado democrático de Direito brasileiro.1 Antes, contudo, alguns esclarecimentos metodológicos se fazem precisos.

O primeiro deles diz respeito ao objeto de análise. Dado se tratar de questões voltadas para o tratamento do Judiciário à questão da segurança pública, e haja vista a necessidade de analisar os métodos e as pré-compreensões que os Juízes têm ao aplicar a Constituição, a descrição e a desconstrução da jurisprudência sobre o tema é imprescindível. É, pois, a principal matéria-prima deste estudo.

O cotejo entre diversos julgados, inclusive do Supremo Tribunal Federal, permitirá a identificação de incongruências argumentativas, por vezes consideradas incompatíveis para o próprio Direito, ao tempo que permite a livre circulação das idéias e o próprio amadurecimento dos fundamentos. Um exemplo é quando uma decisão utiliza a expressão "Estado democrático de Direito" e defende, ao mesmo tempo, a segurança como valor máximo de um Estado: uma incompatibilidade explícita. Eis a razão, pois, de se falar em "obstáculos e desafios" anteriormente.

Outro aspecto que precisa ser considerado antes de adentrarmos ao núcleo da pesquisa é em relação à base teórica, baseada no paradigma jurídico do Estado democrático de Direito. Isso é fundamental para compreender a premissa procedimentalista-discursiva habermasiana de que partimos.

Por paradigma jurídico deve-se compreender:

visões exemplares de uma comunidade jurídica que considera como o mesmo sistema de direitos e princípios constitucionais podem ser realizados no contexto percebido de uma dada sociedade. Um paradigma de Direito delineia um modelo de sociedade Page 42 contemporânea para explicar como direitos e princípios constitucionais devem ser concebidos e implementados para que cumpram naquele dado contexto as funções normativamente atribuídas a eles." (OLIVEIRA 2002, 54)

Esse recorte metodológico já insinua que analisaremos a aplicação do Direito à luz de uma doutrina especialmente voltada para a aplicação de princípios, dotados de força normativa. Não no sentido de equipará-los a valores, como na teoria alexyninana, senão a partir de uma análise deontológica e dialógica.

Não se trata, todavia, de um julgamento realizado por um observador que se coloca acima desta ou daquela argumentação/decisão. Cuida o trabalho da elaboração de uma proposta de se compreender a aplicação da Constituição, segundo marcos teóricos calcados no agir comunicativo e na importância da linguagem para a construção de decisões legítimas.

É preciso esclarecer ainda, para que cumpramos com a verificação da premissa fundamental que dá vida a essa pesquisa, que refutaremos na análise dos julgados a adoção de métodos hierarquizados de interpretação e desenvolvimento pré-alçados à condição de ciência racional. Isso já descarta qualquer retomada aos métodos da hermenêutica clássica como critério de aferição de legitimidade das decisões analisadas.

Dito isso, podemos pontuar que a premissa fundamental é de que as decisões nessa seara não consideram os avanços da reviravolta lingüísticopragmática, promovendo a instalação de um quadro de irracionalidade e desintegração social, resultado primevo e direto dessa inadequada aplicação da Constituição.

Não basta, pois, forte na divisão de J. Habermas e K. Günther, que os processos de justificação normativa cumpram com os ideais democráticos se, no momento de concretização da Constituição, todos os avanços no âmbito da hermenêutica passam a ser desconsiderados e substituídos por questões inadvertidamente subjetivas/valorativas. Em outras palavras, os esforços em se efetivar a segurança pela elaboração de políticas públicas democráticas sucumbem frente à ausência de racionalidade dessas decisões.

Se assim o é, qual a saída para tal impasse? Acredita-se que a resposta esteja na integridade do medium lingüístico, desde que desvinculada da filosofia da Page 43 consciência. Nesse sentido, a linguagem, procedimentalmente entendida, mesmo sob as improcedentes críticas de relativismo e insensibilidade às questões sociais, parece ser ainda a resposta mais adequada para a concretização do direito à segurança pública no âmbito da aplicação normativa.

Para cumprir essa proposta será preciso, pois, contextualizar a segurança pública dentro da realidade brasileira. Afinal, qual a importância em estudá-la?

Superada essa questão, portanto, examinaremos os argumentos levantados pelos juízes e Tribunais ao lidar com o direito à segurança pública. A fim de delimitar o objeto de análise, adotaremos como ponto de partida as decisões que carregam em seu bojo a aplicação de direitos fundamentais no âmbito do sistema prisional, uma vez que, são elas que expõem com maior nitidez a argumentação envolvendo princípios constitucionais. E é justamente com elas que conseguiremos identificar retrocessos e avanços em relação à hermenêutica constitucional sob o viés da linguistic turn..

1 Porque estudar a segurança pública com enfoque no sistema prisional?

A criminalidade é hoje um dos principais problemas do mundo contemporâneo, notadamente na América Latina, segundo atestam as pesquisas. 2> E não foi por outra razão que a Organização Mundial de Saúde declarou, por meio da Resolução 49.25 de 1996, que a sua prevenção é medida prioritária no âmbito da saúde pública mundial.

Löic Wacquant (2001), em prefácio escrito especialmente para a edição brasileira da sua obra "Prisões da Miséria", já apontava a criminalidade como um dos fatores mais nocivos ao Estado brasileiro. 3

Mesmo com o aumento de 2% da receita em quase todos os Estados brasileiros, segundo aponta pesquisa de João Trajano Sento-Sé e Eduardo Ribeiro (BOTTOM, 2007) nos anos de 1995 a 2005, 4 os déficits na sua efetivação continuam a inviabilizar o gozo de outros direitos fundamentais, à medida que, onde não há segurança, não há o gozo das liberdades individuais, do lazer, da saúde, etc. Page 44

Além disto, a falta de concretização ocasiona um efeito direto no orçamento público, uma vez que os impactos dela resultantes consomem parte significativa dos cofres estatais, 5 deixando comprometido o já debilitado investimento em outras áreas deficitárias.

Em Belo Horizonte, segundo o gráfico, os custos econômicos da violência comprometem cada vez mais as potencialidades econômicas do município com as perdas decorrentes da violência.

Custos Econômicos da Violência em Belo Horizonte (1999)

(Fig. a Pdf)

Fonte: CRISP/UFMG

Os dois maiores componentes do custo da criminalidade em Belo Horizonte foram os gastos em segurança pública e a perda de renda potencial das vítimas fatais da violência

No contexto brasileiro, portanto, a ausência ou a insuficiência da concretização do direito à segurança pública assume tanto um caráter inviabilizador de desenvolvimento econômico e humano, como igualmente obsta a realização de outros direitos fundamentais, razão pela qual o seu exame se faz imprescindível para o cumprimento do ideal democrático.

Ocorre que essa análise não pode ser feita de forma generalizada e ilimitada. Mesmo o mais ingênuo pesquisador não se aventuraria nessa empreitada, considerando a vastidão do sentido e de abordagens do direito à segurança pública.

Sendo assim, é papel do investigador delimitar a perspectiva da sua pesquisa a fim de não recair em incoerências teóricas que vão desde a generalização até a ausência de vinculação do trabalho com a realidade. Page 45

Nesse sentido, considerando a vulnerabilidade do sistema carcerário, optouse em analisar as decisões judiciais que envolvam o sistema prisional e trabalhem diretamente com direitos fundamentais.

Isto porque, nenhum segmento da segurança pública consegue chamar mais a atenção do que a precariedade e a decadência daquele. O inchaço e a falta de compromisso estatal com tal segmento, cuja vulnerabilidade dos atores envolvidos e a incapacidade do Poder Público em resolver a questão são por todos conhecida, acumula retrocessos na construção de um Estado democrático de Direito 6 e põe em evidência graves problemas, como por exemplo, a falta de efetivação dos direitos sociais.

De acordo com Macaulay (2006), entre 1995 e 2005 a população prisional brasileira cresceu vertiginosamente de 148.760 para 361.402, ou seja, o número de detentos passou de 95,5 para 190 por 100 mil habitantes.

Esse acréscimo, somado à incapacidade do Estado em fornecer condições condignas de ressocialização, resultou em prisões insalubres, inabitáveis e superlotadas. (AMNESTY INTERNATIONAL, 2005a; 2005b) Junto com o aumento da população carcerária veio também o crescimento do número de habeas corpus, apelações, revisões, denúncias, etc. 7 Com isto, o Judiciário teve seu papel relevado na aplicação dos direitos fundamentais.

2 Direito à segurança pública e o judiciário

Um caso paradigmático sobre o papel do Judiciário na efetivação do direito à segurança aconteceu no município de Contagem em Minas Gerais. Em novembro de 2005, o juiz titular da Vara de Execuções Criminais e Corregedoria de Presídios daquela cidade, Livingsthon José Machado, interditou duas carceragens policiais com mais de 200% da sua capacidade máxima, 8 expedindo alvarás de soltura a aproximadamente 60 presos condenados.

As condições das celas em que cumpriam pena ou mesmo aguardavam julgamento, afirma o juiz afastado do cargo pela Corte Superior do Tribunal de Justiça do Estado de...

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