Sociedade de risco e estado de direito diante da hermenêutica do direito penal - resolução de casos difíceis na busca de respostas corretas, frente a um modelo de segurança cidadã voltado para o direito penal do inimigo

AutorFernando Antonio da Silva Alves
CargoDoutorando em Direito Público pela Unisinos/RS. Mestre em Ciência Política pela PUC/SP. Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra.
1 Introdução

Pode-se dizer que o marco da pós-modernidade na entrada do século XXI tenha sido a queda das torres gêmeas no atentado terrorista ao World Trade Center em Nova York, no ano de 2001. O terrorismo passou a desenhar um novo âmbito de estratégias em matéria penal, muitas vezes em prejuízo de direitos tidos como universais e consagrados em tratados internacionais. As condições de aprisionamento e julgamento por tribunais militares norte-americanos de suspeitos de participação em atos terroristas, em campos de confinamento nas bases de Abu-Graib no Iraque ou em Guantânamo, em Cuba, são exemplos cabais do tratamento penal dado aos acusados de crimes dessa natureza.

A alegação de supremacia dos interesses da soberania firmada constitucionalmente, como pretexto para o exercício de um direito de defesa voltado a estratégias militares e utilização de aparato bélico para a repressão de condutas tidas como socialmente reprováveis, acaba por fundar uma nova economia punitiva de exclusão de uns em proveito de outros. Desaparece a figura tradicional do delinqüente para o surgimento do inimigo, àquele a quem se deve liquidar ou fazer desaparecer do convívio social.

Interessa saber neste escrito que processos levaram a moderna sociedade atual a estabelecer um novo estatuto punitivo, tomando por base à criminalização de condutas com um novo status do delinqüente. Especialmente em termos de ordem jurídica, o estudo será voltado para a discussão sobre o paradigma liberal- individualista herdado do positivismo jurídico, como elemento justificador de um ativismo judicial voltado para essa forma de criminalização, na busca de soluções a supostos casos difíceis, ao arrepio de princípios constitucionais sustentadores do Estado Democrático de Direito, tais como o princípio da dignidade humana, o da presunção da inocência ou o devido processo legal.

Por fim, será por meios desses mesmos princípios que, seguindo a teoria de Dworkin, poderão ser avistadas soluções alternativas ao emprego desse modelo de criminalização baseado num suposto direito penal do cidadão ou num superestimado modelo de segurança cidadã; pois, ao se apontar as falhas desse sistema punitivo, será possível indicar um caminho legal menos prejudicial à manutenção dos direitos e garantias fundamentais, constitucionalmente assegurados, tendo sempre em vista à defesa veemente dos direitos humanos e das teorias da justiça.

2 Alarma social face à globalização e definição de sociedade de risco – o advento do modelo de segurança cidadã

Para Ana Cepeda, com a globalização predominou a ideologia de mercado e do liberalismo, reduzindo o processo de mundialização vivido nas últimas décadas a uma dimensão meramente econômica2. Junto à universalização das tecnologias, com a globalização da economia e da informação associam-se os riscos derivados da abolição de barreiras nacionais, e das incertezas relativas à economia globalizada, tais como: riscos de degradação ambiental, novas pandemias, crise do mercado de trabalho pela adoção de novas tecnologias substituindo o homem pela máquina, novos abismos sociais entre os que acumulam capital e os excluídos socialmente, como também novas formas de criminalidade organizada.

O debate sobre um direito penal edificado numa sociedade de risco formada com a globalização pode ser dividido, segundo Ripolllés, em três grandes blocos: a) uma reflexão sobre a generalização de novos riscos na sociedade moderna derivados do emprego de novas tecnologias (chamados de riscos artificiais); b) dificuldade de responsabilização pelos riscos a pessoas individuais ou coletivas devido à falta de controle sobre os riscos, não ficando claro quem está a produzir o risco; c) um generalizado sentimento de insegurança coletiva frente aos riscos, mediante a cobertura midiática dos sucessos ou perigos do avanço científico ou tecnológico3. Para o penalista espanhol, o Estado vale-se de diversos mecanismos para controlar os riscos e amenizar os temores da coletividade, valendo-se, entre outros, da política criminal.

O crime é, portanto, visto na sociedade moderna, como um dos maiores riscos de desagregação social que deve ser combatido. Para isso, intensificam-se pela mídia os medos e o despertar de um alarma social pela suposta evolução da escalada do crime. A globalização como foi dito, com seus processos de expansão e ruptura de barreiras, acaba por moldar não apenas organizações transnacionais da economia, como também organismos transnacionais do crime, tais como: as redes internacionais de narcotraficantes, o tráfico de armas ou a lavagem de dinheiro. Aliado a isso as células terroristas, que se multiplicam principalmente na Europa, na Ásia e na África, sobretudo com o recrudescimento do fundamentalismo islâmico e pela intensidade dos conflitos de palestinos com Israel, associado com o tráfico de armas, contribuem para um sentimento global de profunda insegurança. Na América Latina, grupos como as FARC na Colômbia ou bandos de criminosos organizados em favelas do Rio de Janeiro, no Brasil, como o Comando Vermelho ou o PCC na capital paulista, inundam diariamente as telas da televisão e da mídia impressa com suas ações criminosas e sangrentos conflitos com a polícia, aterrorizando o cidadão médio com uma sensação de constante perigo, como a mercê de uma sociedade de lobos de volta ao estado de natureza, onde prevalecem os reclames de ordem e paz social.

O direito se redefine, e nesse amplo aspecto de redefinição ante suposto anseio social por ordem, surge sua faceta mais dinâmica e repressora, enxertada em normas penais. O direito penal, anteriormente visto como ultima ratio, passa a ser a prima ratio da política estatal, num populismo punitivo de que, por meio de instrumentos repressivos e pela neutralização do outro será obtida a tão sonhada epifania de paz social. Volta-se à definição do pacto social, como meio de assegurar uma sobrevida à sociedade.

Para Roxin, cabe a distinção entre risco permitido e risco não permitido para o despertar da intervenção normativa de natureza penal4. Ora, numa sociedade de risco é natural que as expectativas de comportamento delineadas pelo direito contenham riscos que indiquem a aplicação de normas de caráter penal ou não. Essa será uma das grandes dificuldades quanto ao emprego de estatutos repressivos, e margem para a associação de uma política criminal moderna com a definição dos chamados “inimigos”. Numa sociedade pós-11 de setembro, sob a égide dos “Patriot Acts”, a tendência a apresentar riscos não permitidos pode se apresentar no simples fato de alguém ser definido por lei como destinatário da norma incriminadora, por se encontrar em uma dada posição definida pela norma como suspeita, como, por exemplo, no fato de um indivíduo pertencer a uma etnia ou grupo religioso suspeito e se encontrar em locais sujeitos à fiscalização, tal como no caso dos muçulmanos estrangeiros ao aterrissar em solo norte-americano nos aeroportos, sujeitos às medidas proibitivas de natureza penal, passando por uma identificação criminal, busca de antecedentes, proibição de entrada no país, e até mesmo sujeito à prisão caso sua documentação não esteja em ordem ou ausente.

Risco e imputação objetiva caminham, portanto, juntos, sobretudo dentro do paradigma formalista do positivismo jurídico, que dá margem à discricionariedade e decisionismos. O exemplo do risco não permitido quanto à fiscalização de imigrantes é lapidar. Para Roxin, se a teoria da imputação objetiva decorre do princípio da proteção de bens jurídicos contra ataques humanos proibindo a criação de riscos não permitidos, resta saber que riscos são esses. Numa escalada de insegurança refinada por uma cultura da incerteza e do medo, pilares da edificação de um modelo de estado punitivo, a permissão ou não do risco passa pela definição de que direito está se referindo o sistema punitivo, e se esse direito está vinculado ao reconhecimento da liberdade enquanto bem jurídico tutelável por esse direito. É na criação do pacto social na gênese do Estado moderno que será desenvolvido o direito moderno, e nascerá a contribuição positivista, assim como o universo dos riscos não permitidos será delineado, a partir das condutas daqueles que se portam conforme ou contrariamente a esse pacto.

Segundo Ripollés, diante do alarma dessa sociedade de risco ante a um sentimento de insegurança coletiva, surge um modelo de sistema penal que se propõe a solucionar esse imediatismo de um estado de emergência penal, diante de um suposto avanço descontrolado dos riscos, mediante um modelo de segurança cidadã. Esse modelo, diferentemente do modelo tradicional ressocializador ou do modelo garantista de sistema penal, apresenta-se como alternativa à crise contemporânea dos modelos de intervenção penal mediante a escalada da violência, tendo como principais características motivadoras: a prevalência de um forte sentimento de insegurança coletiva; uma substancialidade dos interesses das vítimas em detrimento do interesse coletivo; uma revalorização do componente aflitivo da pena; um recrudescimento da pena de prisão; uma ausência de receio ante o poder sancionador estatal no sentido de promover a idéia de renúncia das cautelas existentes contra os abusos do poder estatal diante de direitos individuais em prol da persecução do delito; uma implicação da sociedade na luta contra a delinqüência não na perspectiva de inclusão social, mas, ao contrário, na direção de apontar para uma exclusão social pela via da estigmatização como...

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