Habermas, Alexy e o discurso prático

AutorAntonio Cavalcanti Maia
CargoProfessor de Filosofia do Direito da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e Professor de Filosofia Contemporânea da PUC-Rio (Pontifícia Universidade Católica).
Páginas1-35

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A filosofia deve optar sempre pelo não existente; ela deve se engajar contrafaticamente, ela deve desafiar a realidade enquanto a reconhece.

Manfred Frank

Argumentar constituye, en definitiva, la actividad central de los juristas y se puede decir incluso que hay muy pocas profesiones - si es que hay alguna - en que la argumentación juegue un papel más importante que en el Derecho.

Manuel Atienza

Introdução

Há dez anos, em publicação recenseando o panorama contemporâneo dos estudos jusfilosóficos no mundo de língua alemã, James E. Herget1 elenca as principais correntes do debate contemporâneo: a "teoria do discurso", "a teoria retórica", a "teoria dos sistemas" e o "positivismo legal institucionalista". Posso afirmar que, nesse último decênio, a teoria do Page 2 discurso do direito e da democracia - de Jürgen Habermas, Robert Alexy e Klaus Günther - granjeou uma crescente audiência para as suas teses, sobretudo por oferecer uma alternativa credível ao paradigma dominante juspositivista. Neste artigo, procurarei expor uma série de elementos articulados ao conceito chave de "discurso", pedra de toque de uma empresa filosófica desenvolvida - não obstante as emergentes diferenças entre os principais protagonistas - por Karl-Otto Apel, Jürgen Habermas e Robert Alexy. De fato, focalizarei minha análise nas relações entre os trabalhos destes dois últimos, posto que o trabalho do jurista alemão encontra-se constitutivamente vinculado ao projeto da ética do discurso, já que "a teoria de Alexy significa, por um lado, uma sistematização e reinterpretação da teoria do discurso prático habermasiana e, por outro lado, uma extensão dessa tese para o campo específico do direito".2

A "ética do discurso" caracteriza-se por ser um enfoque cognitivista no campo da ética, inspirado numa reinterpretação da intuição básica presente no imperativo categórico kantiano - um princípio de universalização - expressa numa proposta procedimentalista realiza-se através de uma teoria da argumentação. Tal proposta procura produzir um critério baseado na idéia de imparcialidade - núcleo dos "ganhos" de aprendizagem moral alcançados pela modernidade ocidental3 com a transição para um estado pós-convencional de consciência moral. O nível de consciência moral pós-convencional (reconhecido a partir dos trabalhos de Piaget e Kohlberg) pressupõe a faculdade de tomar parte em discursos práticos. Neste particular, há uma confluência entre as propostas de Habermas e Robert Alexy, alicerçadas na idéia de discurso prático. Em especial, se tivermos em mente que "Alexy formulou em regras grande parte das condições discursivas avançadas por Habermas."4 Isto posto, apresentarei aqui alguns aspectos dessa problemática, sempre no intuito de expor os elementos teóricos utilizados por Habermas (e, no caso, também, Alexy) para elevar o debate jusfilosófico a um diferente patamar, abrindo a perspectiva pós-positivista. Destaque-se ainda que a plausibilidade do discurso prático constitui elemento capital na chamada reabilitação da filosofia prática (como será mais bem explicado no Page 3 item seguinte). A abertura dessa dimensão teórica enseja o solo a partir do qual tanto Habermas como Alexy podem oferecer a proposta de uma plausível de superação do estiolado debate jusnaturalismo/positivismo jurídico, com a reabertura do domínio normativo às discussões racionais, insurgindo-se contra o ceticismo dominante no quadro jusfilosófico novecentista. Tal empreitada refuta um dos postulados das diversas correntes do positivismo - quer seja sociológica, normativa ou realista - ao reconhecer que "o mundo da ética não é o mundo do silêncio, mas dos argumentos".5

No caso de Alexy, a sua teoria da argumentação jurídica não poderia ter sido desenvolvida sem o texto seminal "Teorias da Verdade"6, de Habermas, no qual este sustenta a possibilidade do discurso prático. Nesse aspecto, o filósofo de Frankfurt, como já mencionado, insurge-se contra um elemento central do enfoque positivista - como o de Hans Kelsen ou o de Alf Ross -, ao defender a idoneidade dos discursos práticos. A aposta na plausibilidade de tais "(...) 'discursos práticos' - enquanto forma não institucionalizada de tornar explícitas e de avaliar as razões a favor de determinadas pretensões de retidão ou correção normativa - como recurso ótimo para fundamentar propostas práticas e resolver conflitos entre normas e interesses contrapostos"7 constitui o eixo norteador da maior parte dos trabalhos de Habermas (em estreita colaboração, neste aspecto, com Apel).

Tanto Alexy utiliza elementos do trabalho de Habermas quanto este também emprega alguns de seus desenvolvimentos teóricos (cabe salientar ainda, como afirma Habermas em Facticidade e Validade, que a argumentação8 possui um papel central na teoria do discurso no domínio jurídico. Neste sentido, conferir o capítulo V - intitulado "Indeterminação do Direito e Racionalidade da Jurisdição" -, item 3, sobre a teoria do discurso do direito). Assim, a idéia crucial de que se pode pensar uma conexão entre direito e moral9, a partir da noção de "pretensão Page 4 de correção" - a qual "implica uma pretensão de fundamentabilidade"10 -, seria impensável sem o respaldo da teoria do agir comunicativo habermasiana. Em "Notas Programáticas para a Fundamentação da Ética do Discurso", publicado em Consciência Moral e Agir Comunicativo, Habermas se utiliza dos desenvolvimentos elaborados por Robert Alexy em sua obra denominada Teoria de la Argumentacion Jurídica,11 na qual o professor de Kiel define as regras e formas do discurso prático, em geral, antes de discriminar as regras específicas do discurso jurídico.

A exposição acerca das características do discurso prático - elemento central da teoria discursiva do direito e da democracia - será: 1) de início, contextualizada com uma apresentação sumária do movimento geral de idéias caracterizado como a "reabilitação da filosofia prática", no qual se inscreve a idéia de discurso prático; 2) seguida de uma exposição sumária de algumas das características do que significa o discurso; 3) desdobrada em uma breve apresentação de elementos da teoria da argumentação de Habermas; 4) por fim, focalizada no polêmico conceito de situação ideal de fala.

Na estrutura deste artigo, seguirei uma forma de abordagem semelhante à realizada por Manuel Atienza, quando da exposição da teoria da argumentação jurídica de Robert Alexy, em seu livro As Razões do Direito. Teorias da Argumentação Jurídica.12 Semelhante, por um lado, pois terei sempre em mente mais as convergências entre esses dois projetos do que marcar suas diferenças; por outro, desenvolverei minha análise em uma espécie de "zigue-zague", indo de Habermas a Alexy e de Alexy a Habermas (neste particular, diferentemente de Atienza - cuja análise se estende mais acerca da démarche alexyana - terei como eixo principal Habermas).

1. A reabilitação da razão prática

O florescimento do debate sobre o domínio dos negócios humanos - que trouxe em seu bojo a reabilitação da filosofia prática - colocou em xeque alguns dos postulados da perspectiva Page 5 positivista,1314 em especial ao procurar se posicionar para além do simples equacionamento da questão da legitimidade apenas em termos de legalidade - abandonando-se quaisquer tentativas de tecer considerações acerca da relação entre o mundo legal e referências de natureza moral. Ora, esta mudança de enfoque implicou a demanda de esforços para repensar o regime democrático. Contudo, o interesse e a atualidade das cogitações sobre a democracia - e os efetivos meios de dinamizá-la - não se resumiram a impulsos provenientes apenas dos ambientes teóricos. As transformações assistidas na realidade político-institucional em diversos quadrantes do planeta motivaram significativamente este movimento geral de idéias. Não devemos esquecer que essas discussões estão inseridas no quadro mais amplo de um debate relativo ao efetivo funcionamento da democracia no Estado Democrático de Direito contemporâneo.

A utilização do slogan "reabilitação da filosofia prática" indica o movimento de idéias iniciado no alvorecer da década de 60 e que ganhou momentum a partir dos anos 70, tornando-se central nos debates filosóficos travados ao longo dos anos 80. Interessa aqui a abordagem da teoria discursiva do direito e da democracia (que, juntamente com a obra de John Rawls, desenvolve um enfoque de inspiração kantiana). Entretanto, esse movimento tem como marco de origem reflexões inspiradas numa retomada das lições de Aristóteles. Page 6

Apesar de a análise deste último enfoque não ser o objeto central deste trabalho, sua menção faz-se obrigatória na medida em que ela se inscreve em um grande movimento intelectual, predominantemente teutônico15, que ocupou largo espaço nos debates acadêmicos entre as décadas de 60 a 80, caracterizado como "reabilitação da razão prática". Tal abordagem renova os estudos de Aristóteles no domínio da reflexão filosófica voltada para a práxis, e tem como principais objetos de interesse a ética, a economia e a política. Os autores mais importantes desse movimento são: Hans-Georg Gadamer, Hannah Arendt, Leo Strauss, Rüdiger Bubner, entre outros16, que forneceram decisivas contribuições para o quadro atual das reflexões sobre a democracia, a legitimidade e as conturbadas relações entre teoria e prática. Com relação ao projeto habermasiano e, ipso facto, ao de Alexy, há uma convergência entre os seus esforços e o empreendimento dos neo-aristotélicos - embora por meio de estratégias metodológicas distintas - no tocante ao fortalecimento de uma espécie de pressão erosiva contra o paradigma positivista. Nessa medida, as seguintes considerações descrevem este clima geral de idéias:

Em torno de 1968, a tradição positivista, que tinha suas origens no...

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