A política de guerra às drogas na américa latina entre o direito penal do inimigo e o estado de exceção permanente

AutorSalo de Carvalho
CargoMestre (UFSC) e Doutor (UFPR) em Direito. Professor Titular de Direito Penal e Criminologia da PUCRS. Advogado
Páginas164-177

    As conclusões expressas no artigo são frutos da pesquisa intitulada “Mal-Estar na Cultura Punitiva”, realizada junto ao Mestrado em Ciências Criminais da PUC/RS. São considerações parciais do estudo “A Política Criminal de Drogas no Brasil” (4. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007).

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“A pior forma de defendermos a nossa liberdade é deixar que nossos líderes tirem a nossa liberdade! É exatamente em momentos como esses que temos de ter mais liberdade de expressão, uma mídia independente forte e crítica, e uma cidadania que não tenha medo de se levantar e dizer que o rei está nu e, pior, que não tem miolos. Se perdermos a coragem de dizer algo parecido estaremos condenados”

(Michael Moore, Stupid White Men).

Introdução

A programação dos sistemas repressivos na história da humanidade é caracterizada pela inflexível e duradoura prática de violências arbitrárias. A constatação é plausível porque apenas na Modernidade, a partir dos postulados jusracionalistas, o direito e o processo penal passam a ser definidos formalmente como limites à intervenção punitiva irracional, como barreiras à coação direta desempenhada pelos aparatos sancionatórios.

A tese permite concluir, com Ferrajoli, que “a história das penas é seguramente mais horrenda e infame para a humanidade que a própria história dos delitos: porque mais cruel, e talvez mais numerosas, que as violências produzidas pelos delitos foram as produzidas pelas penas; e porque enquanto o delito tende a ser uma violência ocasional, e às vezes impulsiva e necessária, a violência infligida pela pena é sempre programada, consciente, organizada por muitos contra um. Contrariamente à fantasiosa função de defesa social, não é arriscado afirmar que o conjunto das penas cominadas na história produziu ao gênero humano um custo de sangue, de vidas e de mortificações incomparavelmente superior ao produzido pela soma de todos delitos.”1

Possível diagnosticar, portanto, a estabilidade da lógica beligerante na programação da punitividade, sendo os postulados teóricos humanistas e garantidores rupturas prático-teóricas descontínuas e fragmentárias.2 No entanto, embora se possa afirmar a assiduidade do extravasamento do poder penal em sua tendência à lesão e não à preservação dos direitos e garantias fundamentais, o discurso penal da modernidade, manifestando-se em essência como fala da falta, inexoravelmente primou pelo respeito às bases liberais do projeto de racionalização da intervenção punitiva. A sublevação ilustrada dos princípios contra o Príncipe, ou seja, da razão de direito à razão de Estado, estabilizou, ao menos no plano retórico, regras do jogo mínimas para aferição de legitimidade à violência estatal monopolizada.

Inegável ser possível constatar germens antiliberais nas teorias penais da Modernidade, sobretudo em razão da persistência e transversalidade epocal da Ideologia da Defesa Social. Todavia, após a consagração da universalidade dos direitos humanos na revolução burguesa, a negativa dos postulados de respeito aosPage 166 princípios humanitários decorrente de seu atrelamento à legalidade e à judicialidade somente foi possível em discursos de defesa dos Estados de exceção.

Notório, porém, que desde a solidificação da crítica criminológica restou clara a cisão entre as funções declaradas e as funções reais exercidas pelas agências penais, notadamente a partir da publicação de Vigiar e Punir. O discurso liberal de estar o direito penal voltado ao respeito da legalidade e da igualdade, na tutela dos principais interesses e valores da sociedade (bens jurídicos), ficou localizado no plano das funções declaradas, pois a beligerância continuou sendo a constância do sistema repressivo (função real), ou seja, a justificativa de excepcionalidade da violência institucional restou permanente. Desta forma, a retórica humanista acabou adquirindo papel dissimulador à programação autoritária.

Apesar do importante desvelamento operado pela criminologia crítica, o discurso humanitário-racionalizador tem servido como parâmetro de anamnese e denúncia da coação direta freqüentemente orientadora das ações dos sujeitos que dinamizam o sistema penal. A dicotomia entre as funções do discurso penal (reais e declaradas) fornece, portanto, refinado instrumento heurístico para projeção de uma atuação tendente à redução dos danos causados pelas agências repressivas.

O direito penal de emergência deflagrado pelos operadores da estrutura repressiva (direito penal do terror), em sua atuação nas esferas legislativas, executivas, judiciárias ou acadêmicas, tem sido diuturnamente dicotomizado com a tradição ilustrada. No vácuo entre o garantismo e o inquisitorialismo, isto é, entre o anunciado oficialmente e a prática violenta, define-se o campo de atuação e de assunção de posições dos operadores do direito (penal).

Todavia torna-se absolutamente preocupante quando as funções reais (genocidas) passam a ser defendidas como base de um novo discurso oficial (funções declaradas), pois a transferência da programação real do direito penal do terror ao nível enunciativo potencializa o incremento da violência na nova realidade que se deseja criar.

A partir deste marco de análise é que será realizado o estudo das proposições político-criminais contemporâneas do direito penal do inimigo e de sua forma estatal correspondente (Estado de exceção) – “o estado de exceção, hoje, atingiu exatamente o seu máximo desdobramento planetário. O aspecto normativo do direito pode ser, assim, impunemente eliminado e contestado por uma violência governamental que ao ignorar no âmbito externo o direito internacional e produzir no âmbito interno um estado de exceção permanente, pretende, no entanto, ainda aplicar o direito”3 –, visto estar esta doutrina intimamente ligada à repressão atual do fenômeno das drogas.

Dois importantes investigadores, de diferentes áreas das humanidades, forneceram instrumentos para o confronto da política criminal de drogas e do direito penal do inimigo com o Estado de exceção. No 10º Seminário Internacional do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (São Paulo, 2004), Geraldo Prado apresentou inovadora tese sobre os limites dos poderes das agências de punitividade naPage 167 restrição dos direitos individuais. Naquela ocasião, a partir de precisa crítica à jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) sobre os limites às interceptações telefônicas, o autor sustentou que na vigência do Estado Direito os direitos fundamentais somente poderiam ser restringidos se se apresentasse como barreira formal e material o regramento constitucional do Estado de exceção. Ou seja, em nenhuma hipótese poderia a Lei ou a jurisprudência autorizar limitações para além do determinado no Capítulo I (Do Estado de Defesa e do Estado de Sítio) do Título V (Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas) da Constituição da República. No mesmo período, a assistência às conferências realizadas por Ricardo Timm de Souza, no Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUCRS, possibilitou encontrar amparo teórico (Agamben) para análise dos fundamentos da constância do Estado de exceção nas sociedades (formalmente) democráticas e subsídios para afirmar que à crise devemos opor a crítica. O diálogo e o aprendizado com Ricardo Timm de Souza e Geraldo Prado foram fundamentais no desenvolvimento do trabalho.

1. A formulação (teórica) contemporânea do direito penal do inimigo

A percepção atual das organizações dissidentes (domésticas ou internacionais) como problema penal, sobretudo aquelas cuja atuação é estruturada na utilização de métodos terroristas, tem levado à construção de um novo discurso defensivista. Fundado em premissas análogas àquelas nas quais objetiva intervir, a resposta punitiva para o combate dos grupos terroristas é forjada a partir de um equânime direito penal do terror. A máxima na nova configuração da política criminal autoritária contemporânea parecer ser “contra o terror das organizações criminosas o terrorismo de Estado.”

Para além das pautas programáticas dos Movimentos de Lei e Ordem, cuja principal característica é a ausência de respaldo teórico na fundamentação das intervenções autoritárias, o novo defensivismo encontra guarida em ideólogos que disseminam a beligerância penal não apenas como reitora da política criminal mas, igualmente, como base interpretativa do direito penal (dogmática penal). Dentre suas principais construções doutrinárias, inegavelmente encontra-se a formulação de Günther Jakobs sobre o direito penal do inimigo4, com a aproximação estratégica ao sistemaPage 168 de distintas velocidades preconizado por Silva Sánchez, obtendo como resultado um direito penal de terceira velocidade.5

Segundo a formulação de Jakobs, o direito penal de garantias teria aplicabilidade apenas aos “cidadãos” que praticaram acidental e/ou esporadicamente crimes. Para estes integrantes do pacto social envolvidos em eventual prática delitiva, estariam resguardados todos os direitos e garantias inerentes à formulação normativa da Modernidade, notadamente dos postulados de legalidade e de jurisdicionalidade. O cidadão, desde este ponto de vista, seria aquele indivíduo que, mesmo tendo cometido um erro (crime), oferece garantia cognitiva mínima de comportamentos de manutenção da vigência das normas. Contra os cidadãos infratores a pena apresentar-se-ia como resposta desautorizadora do fato, procurando restabelecer a confiança social na estabilidade da lei (penal).

Sustenta Jakobs, porém, ser possível identificar em alguns casos “(...) que la expectativa de un comportamiento...

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