A Greve como Delito, como Liberdade e como Direito Humano Fundamental: Um Percurso Histórico e Jurídico e suas Consequências Sociais e Econômicas - A Situação do Brasil

AutorLuiz Eduardo Gunther - Marco Antonio Cesar Villatore
Páginas133-1

Page 133

1. Introdução

Para observar, estudar e compreender a evolução histórica de um instituto jurídico, primeiramente se deve entender como o Estado, em determinado momento, sob as influências da época, tratava o Direito. Naturalmente isso significa afirmar como se relacionava com as pessoas, de forma especial com os trabalhadores e suas reivindicações.

Deve-se ter em conta, para estudar adequadamente qualquer sistema legal, "a maneira pela qual o ideal de Estado de Direito deita raízes em determinada forma de vida social".1 Torna-se necessário, nesse sentido, "perceber como a natureza dessa sociedade impele os homens de encontro a esse ideal, ao mesmo tempo em que os impede de realizá-lo inteiramente".2

Muitas outras coisas, além do Direito, podem ser incluídas na categoria de ordem normativa, como, por exemplo, a religião e a arte de uma sociedade. O Direito pode ser distinguido desses outros aspectos da ordem normativa pela ênfase fundamental "que coloca sobre o comportamento externamente observável e sobre o uso de sanções destinadas a penalizar ou corrigir os desvios de comportamento".3

A história da greve é, em certa medida, a história do Direito. Mais precisamente, representa a própria história do Direito Coletivo do Trabalho, que, em última análise, originou o Direito Individual do

Page 134

Trabalho. Essa história tem um registro de sacrifícios e de reconhecimento do valor do trabalho humano, da dignidade do trabalho. Primeiro a greve foi proibida (era um delito), depois foi tolerada (era a ideia da liberdade) e finalmente foi reconhecida como um direito (constitucionalizada). É essa a história que se pretende contar aqui, ainda que de forma sintética.

A lembrança histórica da Revolução Francesa nos remete aos princípios fundamentais da liberdade, da igualdade e da fraternidade. O vocábulo fraternidade em alguma medida vem sendo substituído por solidariedade. Embora essas palavras não sejam sinônimas de modo perfeito, guardam muita similitude. Solidariedade é palavra "reconhecida como categoria jurídica na grande maioria dos países". Entretanto, o princípio da fraternidade "representa um avanço doutrinário", ultrapassa "a concepção de sermos responsáveis uns pelos outros" para alcançarmos, de modo efetivo, "a humanidade num todo como uma grande e única família que torna a todos irmãos".4

Antonio maria Baggio5 ensina que "o conceito de fraternidade implica assim uma relação entre liberdade e igualdade. Essa vem experimentada, em sua primeira forma, dentro da família natural" (tradução dos autores).6

O mesmo autor7 bem nos explica que os Princípios da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade foram marcos da Revolução Francesa, de 1789, influenciando a evolução do Ocidente, mas enquanto os dois primeiros foram assumidos como categorias políticas, a Fraternidade foi entendida por muitos, de forma equivocada, como iniciativa de solidariedade. As novas pesquisas, principalmente das Ciências Políticas, reanalisam o Princípio da Fraternidade estando presente nas vicissitudes dos homens, sendo de suma importância para chegarmos a um mundo novo com sustentação firme e forte de uma estrutura social democrática, sendo que "os princípios da trilogia francesa poderiam ser comparados às pernas de uma mesa: são necessárias todas as três para que ela se sustente".

No mesmo sentido, Olga maria Boschi Aguiar de Oliveira,8 ao estudar o princípio da fraternidade no âmbito das revoluções moderna e contemporânea, observa que este, entre os três princípios da Revolução Francesa, foi o mais prejudicado,

[...] pois, passou a ser ignorado, esquecido, reaparecendo somente na Constituição Francesa de 1946, após o término da 2ª Guerra mundial, sendo posteriormente incorporado à Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, marcando a concepção universal conferida à Dignidade Humana, conseguindo desta forma inserir a noção dos deveres que todos os seres humanos, sem distinção de raça ou povo, devem ter para com toda a Humanidade.

Ana maria Barros9 complementa, afirmando que

Por essa razão, a reflexão sobre a fraternidade passa pela luta contra a indiferença, como também pela necessária intervenção política, da esfera local, para a melhoria da vida de todos. Reflexões

Page 135

que propõem um amplo debate que deve perpassar: gestão dos recursos públicos com transparência e respeito, combate à corrupção, distribuição de renda, segurança pública baseada em programas sociais preventivos e repressivos da criminalidade, políticas sociais voltadas para crianças, adolescentes, idosos, indígenas, mulheres, desempregados e todos aqueles que sofrem diretamente a possibilidade de fazer parte do perigo de ser parte da população refugada.

Utiliza-se a palavra solidariedade mais frequentemente pela doutrina. Mas, talvez, se possa desde logo pensar que estamos falando, verdadeiramente, no princípio da fraternidade, tendo em vista o maior alcance entre os seres humanos. Os direitos de liberdade e de igualdade dirigem-se "aos trabalhadores individualmente considerados", mas os direitos de solidariedade (fraternidade?) se "referem aos vínculos que os unem". Revelar-se-ia, na solidariedade (fraternidade), "o duplo aspecto da relação que envolve o indivíduo e a sociedade". Pode-se afirmar, desse modo, que:

Assim como o indivíduo está ordenado à comunidade em virtude da disposição natural para a vida social, assim também a comunidade é ordenada aos indivíduos que lhe dão o ser, porquanto a comunidade outra coisa não é senão o conjunto dos indivíduos encarados em sua vinculação social.10

mais do que em qualquer outro ramo jurídico, o Direito do Trabalho destaca o papel fundamental da solidariedade (fraternidade?), "pois se ocupa do estudo das associações sindicais, instituto central de um dos ramos em que se subdivide a disciplina Direito Coletivo do Trabalho".11 nessa área jurídica, coletiva, encontram-se três pilares de sustentação: sindicato, negociação coletiva e greve. Somam-se a esses institutos outros, como a representação dos trabalhadores na empresa e os delegados sindicais.12

Recorde-se, por importante, quanto ao direito de greve, o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, "que integra o direito positivo vigente no Brasil (já que ratificado e promulgado pelo Decreto n. 591, de 06.07.1992)". Esse documento internacional dispõe, no art. 8º, que os Estados Partes (portanto, também o Brasil) "comprometem-se a garantir o direito de greve, exercido de conformi-dade com as leis de cada país (alínea d)".13

Relacionando-se o direito de greve a uma possibilidade de infração penal no seu exercício, indaga-se: pode-se afirmar que já existe um Direito Penal do Trabalho como campo didático de análise e estudo? Segundo René Ariel Dotti, sim. Tratar-se-ia de mais uma das especificações do Direito Penal, "estimulada pela crise das codificações e pela expansão dos microssistemas". Nesse sentido, poder-se-ia entender o Direito Penal do Trabalho como o conjunto de princípios e normas relacionadas com as condutas "que ofendem os bens jurídicos que são objetos das relações entre empregados e empregadores e de ambos para com o Estado, visando à proteção e à tutela das atividades laborativas".14

O Código Penal em vigor (Decreto-lei n. 2.848, de 07.12.1940) dispõe sobre os crimes contra a organização do trabalho, prevendo onze hipóteses de ilícitos fundamentais (arts. 197 a 207). A Exposição de motivos a esse diploma justifica a criminalização, desses tipos de ilicitude, com a necessidade de intervenção do Estado no domínio econômico, para suprir as deficiências da iniciativa individual e "coordenar os fatores da produção, de maneira a evitar ou resolver os seus conflitos e introduzir no jogo das competições individuais, o pensamento e o interesse da nação".15

Fundada na filosofia política da Carta Constitucional de 1937, essa orientação privilegiava a nação como sua beneficiária. A atual Constituição também adota o princípio de intervenção, fazendo-o, entre-

Page 136

tanto, em nome de outros interesses comuns aos Estados Democráticos de Direito como: a) a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III); b) o valor social do trabalho (art. 1º, IV); e c) a garantia de acesso à jurisdição e o consequente direito de ação (art. 5º, XXXV e art. 7º, XXIX).16

Considerada a denominação Direito Penal do Trabalho, poderíamos ter uma disciplina que traduzisse a necessidade de adequação entre os operadores (Polícia, ministério Público, Poder Judiciário, Advocacia, instituições e estabelecimentos penais) "para as peculiaridades das relações jurídicas que se estabelecem sob o universo do contrato de trabalho e dos demais negócios submetidos a essa jurisdição especializada".17

Passaremos a analisar, portanto, a evolução do instituto da Greve no mundo e, logo após, no Brasil e suas consequências sociais, econômicas e jurídicas para toda a sociedade.

2. Uma pequena história da greve como delito, como liberdade, como direito e como direito humano fundamental
2.1. A Greve como Delito (Proibição)

Percorrendo-se a história do Direito, pode-se constatar a existência do instituto da greve primeiro como delito. Desse modo, constata-se que, pelo menos até o final do século XIX, a greve era considerada uma atividade ilícita (de caráter criminoso), ou, no mínimo, "uma atividade proibida e sancionada penal-mente em muitos países do mundo, o que ocorreu até a metade do século XX".18

A Organização Internacional do Trabalho esclarece que, na Idade Contemporânea, a...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT