Globalização: pressupostos e requisitos

AutorMauricio Godinho Delgado
Páginas16-30

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O globalismo, enquanto fase e processo do sistema econômi co-social circundante, tem pressupostos e requisitos viabilizadores de sua realização.

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São seus pressupostos certas transformações significativas na estrutura e na dinâmica do capitalismo, que permitiram o ingresso do sistema na fase generalizante e abrangente ora vivenciada.

São seus requisitos certos fatores, preponderantemente de caráter superestrutural, que incrementaram as tendências estruturais surgidas no sistema, demarcando a face atual que caracteriza o fe nômeno globalista.

1. Pressupostos da Globalização

São pressupostos da globalização as seguintes modificações verificadas, nas últimas décadas do século xx, na estrutura e dinâ mica do sistema capitalista: generalização ampliada do sistema eco nômico; nova revolução tecnológica, em especial vinculada aos meios de comunicação; hegemonia do capital financeiro-especulativo.

A) Generalização do Sistema Capitalista

A generalização do sistema econômico, enquanto produção e circulação de mercadorias, a par do próprio capital monetário, a diversificados pontos relevantes do globo, por além do núcleo original (Europa) e hegemônico (EUA), é traço estrutural marcante da nova fase capitalista (e do processo a ela inerente). Nesse quadro, inscre vem-se Ásia (com Japão, Coreia do Sul, Formosa e demais países apelidados de "tigres asiáticos", além dos algo singulares China e Índia), Oceania e América Latina, além da nova inserção da Europa Oriental.

É evidente que diversos desses países e regiões já se integravam ao sistema capitalista mundial, no período anterior; nesse sen tido, não ocorreu efetiva inovação nas últimas décadas do século xx. Contudo, a distinção reside no fato de se terem aprofundado os laços entre tais economias e regiões, inclusive com a significativa participação no mercado internacional das economias asiáticas, quer no plano da produção e circulação de bens e serviços, quer no plano da própria dinâmica financeira.

A intensificação do processo generalizante do sistema capitalista passa, emcertos casos, pela formação institucionalizada de grandes blocos econômicos, por além dos clássicos marcos na cionais. O exemplo mais bem acabado dessa linha de organização e atuação do sistema encontra-se na União Europeia, instituída em 1992 por meio do Tratado de Maastricht, em sucessão à Comu nidade Econômica Europeia (CEE), criada pelo Tratado de Roma em 1957. A União Europeia viabiliza não só o livre trânsito de capitais, bens e serviços dentro de seu espaço geográfico, como também dos indivíduos comunitários, passando a assegurar, desde 1º de janeiro de 2002, o pioneiro curso de uma moeda única comunitária (euro)1. A

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singularidade dessa união chega a ultrapassar os próprios marcos de um mero instrumento econômico de agregação de países.

De todo modo, outros blocos estruturam-se, em maior ou menor grau, em distintas partes do globo. Ilustrativamente, na América, há o NAFTA (Acordo de Livre Comércio da América do Norte), iniciado na década de 1980 entre EUA e Canadá, recebendo a adesão do México em 1993. No mesmo continente, há o MERCOSUL (Mer cado Comum do Sul), criado em 1991 por Brasil, Argentina, Para guai e Uruguai. Ainda neste continente há o projeto da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), capitaneado pelos EUA a partir de 1994, com a pretensão de envolver 34 países da região2.

Outros blocos econômicos (ou com objetivos mais diversificados) surgiramna mesma época. Por exemplo, a Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), criada em 1967, envolvendo Cingapura, Indonésia, Filipinas e Tailândia. Há ainda a Cooperação Econômica da Ásia e do Pacífico (APEC), surgida em 1989, envol vendo cerca de duas dezenas de países, sendo diversos da Ásia, além de EUA, Canadá, México e outros. No continente africano, por sua vez, foi criada em 1992 a Comunidade da África Meridional para o Desenvolvimento (SADC), formada por 14 países3.

Essa generalização do sistema capitalista a, praticamente, todo o globo terrestre, com o aprofundamento dos laços entre as distintas economias nacionais, propicia um incremento inusitado no co mércio mundial. Ilustrativamente, o volume das transações comerciais totais do mundo contemporâneo cresceu cerca de 100 vezes no último meio século, saltando de US$ 61 bilhões em 1950 para US$ 6,16 trilhões em 20014.

É claro que tais generalização e aprofundamento do capitalismo não importam, necessariamente, o alcance de efetiva interdepen dênciaentre países e regiões. Ao revés, muitas vezes - como claro no exemplo latino-americano -, terminam, preferentemente, por acentuar antigas dependências e debilidades de certas economias nacionais.

B) Nova Revolução Tecnológica

Os avanços tecnológicos das últimas décadas, permitindo in tercomunicação imediata (e a custo muito mais reduzido do que anteriormente) entre os inúmeros pontos do globo e as diversas dinâmicas econômicas, representam outro traço estrutural importante da nova fase do sistema econômico dominante.

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Tais avanços tecnológicos não se limitam apenas ao aperfeiçoamento e à disseminação de instrumentos de comunicação relati vamente antigos da sociedade capitalista, como o rádio e, principal mente, a telefonia - esta, além de se generalizar, ingressa em novo nível, por meio das conexões sem fio.

Passam esses avanços também pela potenciação do novo ins trumento revolucionário do imediato pós-II Guerra Mundial, que é a televisão, com suas redes nacionais e mundiais, a par dos distintos meios comunicantes a ela vinculados. Em torno da televisão dissemina-se a via de comunicação por satélite, que propicia impressionante visibilidade, segurança, rapidez e simultaneidade à transmissão de dados, fatos e opiniões ao longo de toda a Terra.

No período final do século xx, atinge-se o ápice de tais avan ços tecnológicos, com a microinformática e a rede internacional de informação e comunicação, internet, de acesso barato e generaliza do a organizações e indivíduos.

Toda essa tecnologia direcionada à comunicação viabiliza análises simultâneas e imediatas sobre a dinâmica do sistema econômico em diferenciadas partes da Terra, permitindo também a realização de operações econômicas, pelos mesmos agentes, a partir do mesmo ponto de atuação, em inúmeras localidades. Em consequência, acentua-se a interinfluência entre as diversas regiões e economias ou, em grande parte dos casos (como, regra geral, verificou-se na América Latina), aprofunda-se a tradicional influência de certas eco nomias e regiões sobre outras.

Por decorrência do mesmo processo, tornam-se, de certo modo, anacrônicas as tradicionais noções muito demarcadas de espaço e de tempo - ao menos no tocante àqueles segmentos e ações forte mente dependentes de tais novas vias céleres de comunicação5.

C) Hegemonia Financeiro-Especulativa

A absoluta liderança do capital financeiro-especulativo sobre os demais segmentos do próprio capitalismo é outro pressuposto importante da atual conformação assumida por esse sistema econô mico-social.

Não se trata, aqui, do tradicional capital financeiro, da virada do século xIx para o século xx, que, no conceito de Hilferding, tra duzia uma articulação específica entre o segmento financeiro e o industrial, sob o domínio do primeiro6.

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Ao revés, trata-se, agora, do capital substantivamente especu lativo, que gera sua reprodução essencialmente com o próprio jogo de inversões financeiras, sem compromisso relevante com a noção de produção, tão cara às fases anteriores do capitalismo.

Goran Therborn descreve essa impressionante ascensão e do mínio do setor financeiro-especulativo nas últimas décadas: "Para dar somente um exemplo, durante um dia em Londres, é negocia do um montante de divisas correspondente ao PIB mexicano de um ano inteiro. Em um dia e meio, os traficantes de divisas vendem e compram o equivalente ao PIB anual do Brasil. (...) na Alemanha, um dos países mais importantes do capitalismo avançado, por vol ta de 1985, as transações externas de capital representavam 80% do comércio externo do país. Em 1993, estas transações foram cinco vezes mais importantes do que o negócio de mercadorias naquele país. Se considerarmos todos os mercados internacionais de moedas, divisas, ações, etc., veremos que estes têm uma di mensão 19 vezes maior do que todo o comércio mundial de merca dorias e serviços".7

Luiz Gonzaga Belluzzo demonstraria, por sua vez, que o "valor da massa de ativos financeiros transacionáveis nos mercados de capitais de todo o mundo saltou de cerca de US$ 5 trilhões no início de 80 para US$ 35 trilhões em 1995, segundo estimativas do BIS".8

Compõe também esse quadro a generalização do sistema de financiamento entre as economias nacionais, aprofundando-se os laços de endividamento das regiões periféricas em face das dominantes do sistema global.

2. requisitos da Globalização

O globalismo, na contextura apresentada no mundo ocidental no último quartel do século xx, teve também requisitos específicos, os quais, reunidos, viabilizaram sua realização nos moldes que apre sentou. Note-se que, enquanto os pressupostos são fatores estruturais verificados no sistema capitalista, que criaram condições para seu ingresso na fase generalizante e abrangente ora vivenciada, os re quisitos são fatores de caráter mais circunstancial, fatores essencial mente político-culturais, que, reunidos, propiciaram o aprofundamento das tendências despontadas no sistema, conferindo ao fenômeno globalizante a face...

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