Geografia da riqueza, fome e meio ambiente: pequena contribuição crítica ao atual modelo agrário/agrícola de uso dos recursos naturais

AutorCarlos Walter Porto Gonçalves
Páginas1-55
.R E V I S T A I N T E R N A C I O N A L I N T E R D I S C I P L I N A R I N T E R T H E S I S - PPGICH UFSC
GEOGRAFIA DA RIQUEZA, FOME E MEIO AMBIENTE: PEQUENA CONTRIBUIÇÃO
CRÍTICA AO ATUAL MODELO AGRÁRIO/AGRÍCOLA DE USO DOS RECURSOS
NATURAIS
WEALTH GEOGRAPHY, ENVIRONMENT AND HUNGER: SMALL CRITIC CONTRIBUTION TO THE
CURRENT AGRARIAN/AGRICULTURAL MODEL OF THE NATURAL RESOURCES USAGE
Carlos Walter Porto Gonçalves
Resumo:
O texto discute a questão geopolítica implicada no debate sobre a fome e o meio
ambiente. Critica o atual modelo agrário/agrícola de uso dos recursos naturais, afirma ser
este um modelo de desenvolvimento econômico das regiões temperadas que tem sido
imposto com um alto custo ecológico, cultural e político para o mundo todo. Este modelo
tem se colocado em confronto com o conhecimento patrimonial, coletivo e comunitário
característico de populações com racionalidades distintas da racionalidade atomístico-
individualista ocidental com graves riscos à segurança alimentar. Analisa as
conseqüências socioambientais do atual modelo agrário/agrícola e os resultados
contraditórios do aumento da capacidade mundial de produção de alimentos e o aumento
da fome no mundo. Os significados da Revolução Verde a partir dos anos 70; Os
impactos socioambientais do agronegócio nos cerrados brasileiros; A complexidade do
uso dos produtos transgênicos. Critica a sustentabilidade ecológica restrita, baseada num
realismo político e propõe uma reflexão sobre uma nova racionalidade para o desafio
ambiental. Conclui que a fome não é um problema técnico, pois esta não se deve à falta
de alimentos mas ao modo como os alimentos são produzidos e distribuidos. A fome
convive hoje com as condições materiais para resolvê-la.
Abstract:
The text questions the geopolitical issue implied in the argument about hunger and the
environment. It criticizes the current agrarian / agricultural model of the natural resources
usage, stating it is a model of economic development of mild regions that has been
imposed all over the world at a very high ecological, cultural and political cost. This model
has faced the patrimonial, collective and community knowledge, characteristic of
populations with distinct rationality from the occidental atomistic-individualistic one, with
severe risks to the feeding safety. It analyzes the social-environmental consequences of
the current agrarian / agricultural model, the contradictory results of the increase of the
world capacity of food production, hunger in the world, the meanings of the Green
2
Revolution from the seventies on, the social-environmental impacts of the agrarian
business in the Brazilian cerrado and the complexity of the use of transgenic products. It
criticizes the restricted ecological sustentation based on a political realism, and proposes a
reflection upon a new rationality for the environmental challenge. It concludes that hunger
is not a technical problem, for it does not happen because of the lack of food, but because
of the way the food is produced and distributed. Today hunger lives with the provisions
necessary to overcome itself.
Introdução
O médico e geógrafo Josué de Castro escrevia em 1946 que a fome era o
problema ecológico número um1. E o fazia sem nenhum sentido antropocêntrico a que,
geralmente, está associada essa afirmação. Afinal, todo ser vivo precisa se alimentar. O
que surpreende é que Josué de Castro tenha dito isso numa época em que a questão
ecológica sequer estava pautada e que os ambientalistas, ainda hoje, sequer o
considerem como um dos mais importantes pensadores e ativistas da questão. Até
mesmo o PNUMA – Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente - em seu último
relatório Perspectivas del Medio Ambiente Mundial – GEO-3 ignora completamente a
problemática da fome2 (Ver Questões chaves para o meio ambiente por região GEO,
GEO-3: 31).
Cerca de 30 anos após a morte de Josué de Castro, ocorrida em 1973, nos vemos diante
de questões que ele vinha se ocupando cada vez mais, qual seja, a questão geopolítica
implicada no debate sobre a fome e o meio ambiente. Hoje sabemos melhor que à sua
época que as regiões tropicais, as que detêm a maior produtividade biológica do planeta,
não são aquelas onde é maior a produtividade econômica3. Entretanto, essa maior
produtividade econômica das regiões temperadas tem um alto custo ecológico, cultural e
político para o mundo todo na medida que a extrema especialização, tanto no sentido da
monocultura, como da dependência de alguns poucos cultivares, torna esses
agroecossistemas vulneráveis não só a pragas e às variações climáticas como, também,
os tornam extremamente dependentes de insumos externos, como adubos, agrotóxicos e
energia vindos de outras regiões.
Salientemos que toda uma ciência agronômica e florestal, com base na
racionalidade científica européia, tem sido desenvolvida para tornar mais eficientes em
produção de biomassa exatamente áreas, como as regiões temperadas, que dispõem de
menor intensidade de energia solar em relação às regiões tropicais, num contra-senso
3
que só se explica pela importância que um certo tipo de conhecimento, o conhecimento
técnico-científico, e a regulação jurídica da propriedade a ele associada (patentes e
quetais), passa a ter para os países hegemônicos e as grandes corporações que, hoje,
praticamente detém o monopólio não do conhecimento tout court, mas desse tipo de
conhecimento específico que, cada vez mais, depende de recursos maiores para a
pesquisa e desenvolvimento4.
Essa concentração de dependência se aplica a cada um dos quatro principais
grãos - trigo, arroz, milho e soja para o ano de 2001. Apenas cinco países - Estados
Unidos, Canadá, França, Austrália e Argentina - são responsáveis por 88% das
exportações mundiais de trigo (Santamarta, 2002). Tailândia, Vietnã, Estados Unidos e
China representam 68% de todas as exportações de arroz. No caso da soja, apenas três
países – EUA, Brasil e Argentina – são responsáveis por 82% da produção mundial. No
milho, a concentração é ainda maior, com os Estados Unidos responsáveis por 78% das
exportações e a Argentina por 12%. Uma autoridade indiana declarou pateticamente que
"nossas reservas estão nos silos do Kansas" (Brown, 2001)5.
Assim, com o conhecimento produzido em laboratórios de grandes empresas em
associação cada vez mais estreita com o Estado e, deste modo, passível de apropriação
privada, a propriedade intelectual individual (patentes) se coloca em confronto direto com
o conhecimento patrimonial, coletivo e comunitário característico das tradições
camponesas, indígenas, afrodescendentes e outras matrizes de racionalidade distintas da
racionalidade atomístico-individualista ocidental (Porto-Gonçalves, 1989).
Esse conflito se manifesta na reiterada recusa em não reconhecer os direitos
coletivos e patrimoniais de populações que detém conhecimentos ancestrais, conforme
pudemos observar recentemente no México com o parlamento se colocando contra o
pleito dos zapatistas de direitos territorriais e culturais dos indígenas (Ceceña, 2002).
Assim, longe de nos regozijarmos com o fato de a Convenção de Diversidade Biológica
reconhecer a soberania dos Estados para regular sobre o acesso aos recursos genéticos,
é preciso ver, aqui, uma estratégia de transferir aos Estados nacionais a responsabilidade
e o ônus de se colocarem contra as populações indígenas, afrodescendentes e
camponesas6 que, mais do que quaisquer outros segmentos sociais, têm conseguido se
inserir no debate globalizado chamando a atenção para o fato de que suas práticas
culturais específicas serem aquelas que mais se coadunam com os interesses da

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT