Fundamentos para a interpretação dos contratos empresariais: aspectos jurídicos e econômicos

AutorMarcia Carla Pereira Ribeiro - Eduardo Agustinho
Páginas65-78

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1. Contratos e o sistema do Código Civil brasileiro

Na disciplina das obrigações, a especialidade do direito empresarial impediu o enquadramento da empresa à condição de mera parcela do direito dos negócios, assim como afastou a pretensão de unificação de todas as matérias jurídicas relacionadas à atividade empresarial.1

No campo do direito dos contratos, por sua vez, ao ser revogada a disciplina disposta no Código Comercial brasileiro de 1850, contratos que eram tratados pelo Código Comercial e pelo Código Civil de 1916 passaram a receber uma só disciplina, ainda que nem todos os contratos sejam contemplados no atual Código Civil. Re-manesce a disciplina extravagante em contratos como os de franquia, de representação, de concessão mercantil e outros. Há, portanto, uma unidade parcial em termos de codificação, mas não uma unidade perfeita, quando se consideram as possibilidades hermenêuticas em relação às diferentes modalidades contratuais.

O Código Comercial brasileiro, derrogado nesta parte, apresentava em seu Título V alguns dispositivos de teoria geral dos contratos, e depois os disciplinava em espécie, nas modalidades mercantis do mandato, comissão, compra e venda, troca, locação, mútuo, fiança, hipoteca, penhor e depósito. Tais dispositivos demonstram o propósito de estabelecimento de regramen-to jurídico não apenas para os contratos ditos mercantis, como também de ofertar o instrumental necessário à disciplina de contratos entre não-comerciantes. Este sistema responde à inexistência de disciplina atualizada específica em 1850, bem como

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à necessidade crescente de regramento em razão do desenvolvimento do comércio a partir da declaração da independência do País.

A carência de disciplina estatal voltada ao direito comum fez por permitir a extensão da disciplina especial às relações comuns. O Código Comercial brasileiro de 1850 ocupou, por um certo período, as lacunas do direito civil contratual.

O antigo Código Civil, a partir de sua vigência em 1917, apresentou uma teoria para os contratos em geral, no Livro III, Título IV, seguido do Título V, que apresentava as modalidades contratuais de compra e venda, troca, doação, locação, empreitada, depósito, mandato, gestão de negócios, edição e representação dramática, seguro, jogo e fiança.

Por sua vez, o Código Civil brasileiro de 2002 revogou a disciplina especial conferida aos contratos mercantis no Código Comercial, apresentando na Parte Especial, Livro I, Título V, uma proposta de disciplina geral dos contratos, seguida do regramento dos contratos de compra e venda, troca, estimatório, locação, empréstimo, prestação de serviços, empreitada, depósito, mandato, comissão, agência e distribuição, corretagem, transporte, seguro, jogo e fiança.

Os contratos não contemplados, inteira ou parcialmente, pelas normas do Código Civil brasileiro continuam sujeitos à disciplina específica anterior à vigência do Código, como, por exemplo, o contrato da já mencionada franquia e, ao menos em parte, o contrato de representação comercial.

Comparando-se a disciplina contratual do antigo e do vigente Código Civil, acompanhada da revogação daquela peculiar aos contratos empresariais, conclui-se que a legislação mais recente não inovou de forma significativa na escolha dos contratos disciplinados em espécie, com algumas exceções, como a inclusão da tipifica-ção do contrato de representação, que, no entanto, mantém também sob disciplina de sua lei específica.

A sistemática do Código Civil evidencia especial atenção em relação aos princípios gerais, pressupostos em todas as relações contratuais, independentemente da qualidade do agente que delas participa. É o caso do princípio da boa-fé e do princípio da função social, por exemplo. Porém, como determinados contratos produzem efeitos de forma diferenciada em relação a outros, pode-se questionar a aplicabilidade das normas gerais previstas para os contratos às peculiaridades dos contratos de ordem negocial, especialmente àqueles de caráter duradouro e diretamente ligados ao exercício da atividade empresarial.

2. Empresa e contratos

A atividade empresarial desenvolve-se por meio da utilização de vários contratos, decorrentes das inúmeras obrigações e da constituição de negócios jurídicos, relacionados à prática econômica, por exemplo, na escolha e aquisição de matéria-pri-ma, mão-de-obra e parceiros, no transpasse de produtos e serviços aos consumidores. Para o incremento destes e outros negócios são utilizados os contratos, inclusive no estabelecimento das relações jurídicas dos empresários entre si, diante da necessidade de transferência de uma tecnologia titulada por um deles, na compra de insumos, no estabelecimento dejoint ventures e outros.

As características de tais atividades e dos contratos que as instrumentalizam, assim como sua indispensabilidade à prática empresarial, conduzem à percepção de sua especialidade. O contrato de sociedade, como instrumento de organização da empresa, é um exemplo da estreita ligação entre contratos e empresa, assim como da especialidade de que se reveste um contrato empresarial.

Para Salomão Filho o contrato empresarial pode assumir a característica de contrato organização.2 O contrato de sociedade

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é voltado à tarefa de organização indispensável à prática empresarial, diferentemente dos contratos tradicionais, que visam especialmente ao estabelecimento de direitos e deveres entre as partes. Os contratos associativos existem para criação de uma organização denominada "empresa".3

Os contratos empresariais, portanto, têm para si reservada uma função distinta da dos contratos comuns, relacionada, dentre outros fatores, à natureza da atividade que instrumentalizam. Se a função de tais contratos é diferenciada, sua interpretação também pode ser distinta daquela usualmente atribuída a outros contratos que não sejam de natureza empresarial, na qual também interferirão aspectos como grau de conhecimento dos contratantes, habi-tualidade, concorrência e mercado. Podem existir, no universo de tais contratos, situações distintas, com possibilidades de interpretação também diferenciadas, como, por exemplo, um contrato de fornecimento de matéria-prima entre dois empresários e um contrato de sociedade firmado entre os mesmos. Na segunda hipótese, aspectos como a possibilidade de continuidade da atividade empresarial interferirão na interpretação das condições pactuadas no contrato de sociedade, enquanto no contrato de fornecimento esta circunstância não interferirá se o fornecimento for eventual.4

Voltando à disciplina codificada, o direito de empresa não pode ser aprisionado num sistema unitário juntamente ao direito civil. Temas relacionados à concorrência, ao consumidor, às empresas em dificuldade e aos Registros Públicos exemplificam a diversidade de fatores e circunstâncias relacionados à prática empresarial - vale dizer, respectivamente: o direito de concorrência, pela disciplina da liberdade e equilíbrio do mercado; o direito do consumidor, pelas relações contratuais com os destinatários finais dos bens e serviços; o direito falimentar, pelo ajuste de interesses relacionados ao potencial afastamento do empresário da prática da atividade econômica, como resultado de um insucesso momentâneo ou definitivo; o direito registral, pela formalização e publicidade de atos relacionados à empresa. Seria infrutífera qualquer tentativa de codificação unitária do universo da empresa, aí incluindo-se aquela dos contratos, pelas dinamicidade e peculiaridades da prática empresarial.

3. Liberdade contratual, autonomia da vontade e isonomia

Contratos nominados são aqueles reconhecidos pela ordem jurídica a partir de suas características singulares. São disciplinados em seu conteúdo, forma, direitos e deveres que estabelecem. Podem ser encontrados no Código Civil e também em leis especiais. Já, os contratos típicos têm características previamente estabelecidas na sua previsão normativa ou uso.5

Contratos inominados são, portanto, aqueles cuja nomenclatura não foi incorporada pelas fontes do Direito. Os atípicos, por sua vez, expressam a busca de efeitos que não lhes são singulares, pois exigem a reunião de características de vários outros contratos.

O CC brasileiro, em seu art. 421, reconhece a autonomia de que se beneficia o agente na elaboração de seus contratos, ao mesmo tempo em que fixa seus limites a partir de alguns princípios contratuais, abrindo a oportunidade de criação de novos contratos bilaterais que atendam à necessidade das partes.

Além da análise dos contratos sob o aspecto de sua expressa previsão normativa (ou não), pode-se pensar os contratos por meio de uma outra proposta de classifi-

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cação, que busque como elemento de aproximação os sujeitos que participam de sua elaboração. Contratos entre empresários, entre consumidor e fornecedor, entre empregado e empregador.

Só se pode pensar em categorizar os contratos a partir de seus sujeitos ao se aceitar que tais sujeitos personificam a conjunção de condições especiais que justificam disciplina normativa e interpretação especiais, seja em razão de uma disparidade in-formacional ou econômica. Esta disparidade, quando confrontada com o princípio da igualdade, pode sustentar a necessidade de interferência da lei, na tentativa de equilibrar os interesses envolvidos, buscando-se a maior proximidade possível com o princípio da isonomia. Tal interferência legislativa, porém, interfere em outro princípio bastante caro às relações...

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