Fundamentos dogmático-jurídicos do sistema de repartição das competências legislativa e administrativa na constituição federal de 1988

AutorItiberê De Oliveira Rodrigues
CargoDoutor em Direito Público pela Universidade de Münster, Alemanha
Páginas1-34

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A fim de melhor compreender sua estrutura e funcionamento, pretende-se investigar aqui o atual sistema brasileiro de repartição das competências legislativa e administrativa na Constituição Federal de 1988 a partir dos modelos histórico-constitucionais que lhe serviram de inspiração básica. 1Por um lado, não obstante algumas inovações, a atual Constituição recepciona as linhas fundamentais das Constituições Federais anteriores. Por outro lado, tanto a Constituição Federal de 1988 quanto essas Constituições Federais anteriores não foram absolutamente originais em suas concepções, elas antes foram buscar no direito constitucional estrangeiro as fontes para a construção do sistema constitucional brasileiro de repartição das competências legislativa e administrativa. Por fim, em face da complexidade do sistema de repartição de competências na Constituição de 1988, pretende-se apresentar a proposta de um roteiro prático (e adequado) de busca da competência no texto constitucional, tudo a fim se possa determinar em cada caso concreto qual entidade federativa é competente para legislar ou administrar a respeito de dado tema ou matéria.

Competência vem aqui basicamente entendida como a capacidade jurídica de agir de uma pessoa jurídica estatal de caráter político (ou: de status constitucional) e existência permanente, isto é: da União Federal, dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Page 2 Municípios. Depois, entende-se (também basicamente) como competência legislativa aquela pela qual fica estabelecida a capacidade dessas pessoas jurídicas estatais para editar normas jurídicas primárias, isto é: normas inovadoras ou modificadoras do ordenamento jurídico vigente e na forma do processo legislativo constitucionalmente previsto ("lei em sentido formal"), via de regra mediante a edição de atos de conteúdo geral e abstrato ("lei em sentido material"). Por competência administrativa entende-se (ainda basicamente) aquela pela qual fica estabelecida a capacidade daquelas pessoas jurídicas estatais para realizar de ofício atividades de conteúdo individual e concreto destinadas à satisfação imediata do interesse público ("administração pública em sentido material").

Para entender a estrutura da sistemática de repartição das competências legislativa e administrativa na Constituição Federal de 1988 é necessário partir do princípio do federalismo, uma vez que é em função basicamente desse princípio que aquela estrutura se deixa tanto justificar quanto entender. A rigor então, a Constituição Federal brasileira mais remota que poderia servir de fonte ao Constituinte de 1988 é a Constituição de 1891, a primeira Constituição federalista brasileira.

Depois, a Constituição Federal de 1988 institui (de um modo bem mais nítido que as Constituições anteriores) uma Federação sui generis em termos de Direito Constitucional comparado, uma vez que tanto seu art. 1º, caput, quanto seu art. 18, caput, referem expressa e literalmente que a Federação brasileira é formada não pelas duas entidades federativas tradicionais (União e Estados-membros), mas sim por três distintas entidades autônomas entre si (União, Estados-membros e Municípios).

Além disso, o constitucionalismo republicano brasileiro abebeberou-se em fontes constitucionais estrangeiras, mais fundamentalmente em duas grandes: a norte-americana e a alemã (ou: austro-alemã). Tais fontes são por isso o ponto de partida para se entender tanto a evolução histórica do sistema de repartição de competências das Constituições brasileiras a partir de 1891 bem como o próprio (e complexo) sistema vigente na Constituição Federal de 1988.

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Parte I - Modelo federalista Norte-Americano
1) Fundamentos históricos

Os treze Estados Unidos da América que se tornaram independentes da Grã-Bretanha em 1776 uniram-se de princípio, a partir de 1777, por meio de uma Confederação. Mas um documento formal de tal união política foi firmado somente em 1781, onde se lê no Artigo II: "Cada Estado mantém a sua soberania, liberdade, e independência, e cada Poder, Jurisdição e direito, o qual não esteja por esta confederação expressamente delegado aos Estados Unidos, em um Congresso". Como se nota, havia como órgão confederativo (e central) somente o Congresso. Todos os demais poderes e competências eram garantidos aos Estados confederativos. Essa excessiva descentralização do Poder político-institucional, somada aos quoruns qualificados para a tomada de deliberações entre os Estados confederativos, foram as maiores causas do fracasso da Confederação dos Estados Unidos. Em 1787 é convocada então uma Comissão de Representantes dos treze Estados para proceder a uma revisão do Pacto Confederativo. Os Representantes, porém, em vez da revisão para a qual foram convocados, elaboraram o texto de um anteprojeto de Constituição, o qual acabou sendo ratificado pelos Estados-membros. A Constituição dos Estados Unidos da América de 1787 é a mais antiga Constituição contemporânea em vigor.

A teorização inicial do federalismo norte-americano encontra-se na obra "O Federalista" ("The Federalist Papers"). Trata-se de uma coletânea de artigos publicados em jornais de Nova York sob o pseudônimo de Publius, e em realidade escritos por Alexander Hamilton (c. 1757-1804), James Madison (1751-1836, que foi o quarto Presidente da República, entre 1809-1817) e John Jay (1745-1829) quando da discussão do texto do anteprojeto de Constituição de 1787. Os federalistas propunham o fortalecimento do Poder central (federal), se comparado ao modelo então existente no Pacto Confederativo. Com isso, para além do Congresso, era necessária a existência de um Poder Executivo e de um Poder Judiciário federais, bem como a fixação de uma lista de competências para tais órgãos de Poder (as quais significavam, na prática, uma diminuição dos poderes até então reconhecidos aos Estados-membros). Ainda importantes para o entendimento do modelo federal norteamericano são as obras políticas de John Adams (1735-1826), que também participou da redação da Constituição norte-americana e foi o segundo Presidente da República daquele país (1797-1801): "Pensamentos acerca do Governo" (1776) e "A defesa das Constituições" (1787-1788). O principal opositor ao projeto dos federalistas, porque defensor de uma maior autonomia em favor dos Estados-membros, foi Thomas Jefferson (1743-1826, e que foi o 3º Presidente da República, entre 1801-1809). No texto da Constituição da 1787 prevaleceram, no tocante ao modelo federativo, as idéias dos federalistas. Page 4

2) Fundamentos dogmático-jurídicos
a) Modelo dualista rígido

De início é de ressaltar-se que no texto da Constituição de 1787 inexiste uma separação sistemática plena entre as competências legislativa e administrativa. Pelos motivos históricos supra examinados, a preocupação da Comissão Redatora da Constituição de 1787 foi bem mais genérica, no sentido fundamental de repartir objetiva e taxativamente quais matérias ou temas in concreto seriam objeto de competência da União Federal, em oposição às matérias ou temas in concreto que seriam objeto de competência dos Estados-membros. Um exemplo disso encontra-se no inciso 1 da Seção 10 do Artigo I, onde se lê que: "Nenhum Estado poderá participar de tratado, aliança ou confederação; conceder cartas de corso; cunhar moeda; emitir títulos de crédito; autorizar, para pagamento de dívidas, o uso de qualquer coisa que não seja ouro e...

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