Fundamentos da Jurisdição Constitucional Brasileira

AutorLuiz Henrique Guimarães Hohmann
CargoAdvogado em Curitiba
Páginas1-20

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Introdução

Em regra, ao deixar os bancos da graduação1, o estudante de direito tem plena certeza acerca da legitimidade do controle de constitucionalidade das leis por parte do Poder Judiciário, eis que referido mecanismo encontra-se previsto na Carta Constitucional. Desse modo, adotando o controle judicial como axioma, não vê qualquer empecilho para seu exercício na prática.

Porém, após alguns anos de prática jurídica, com o estudo de autores clássicos como ROBERTO GARGARELA, SANTIAGO CARLOS NINO, BRUCE ACKERMAN, CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, CLÁUDIO PEREIRA DE SOUZA NETO, GUSTAVO BINENBOJM, entre outros, e, ao mesmo, tempo, com os olhos voltados à realidade doPage 2 controle judicial das leis hoje vigente no Brasil, referida verdade absoluta começa a ser questionada e a reclamar por estudos mais aprofundados e críticos.

Nesse passo, uma das principais questões que assaltam o jurista é a do caráter contramajoritário da jurisdição constitucional, a qual pode ser resumida do seguinte modo: como pode um corpo reduzido de juízes, não eleitos pelo povo (portanto, destituídos de representatividade popular), dotados de estabilidade e vitaliciedade, afastarem leis editadas pelos representantes do povo? E ainda, que legitimidade teriam esses juízes em emitir tal decisão em última e inapelável instância?

Algumas respostas apressadas a esses questionamentos poderiam recorrer ao argumento do sistema de freios e contrapesos: o Judiciário teria a função de frear e limitar os ímpetos do Legislativo, afastando do sistema leis em contraste com a Carta Constitucional. No entanto, a esse respeito, o que vemos na realidade é uma verdadeira balbúrdia: em muitas ocasiões, o controle judicial – e não se está referindo somente ao controle abstrato de constitucionalidade, mas também ao concreto – ultrapassa os limites jurídicos que lhes foram impostos pelo Constituinte, gerando um ativismo judicial sem limites, com declarações de inconstitucionalidade fundadas em posições pessoais ou de moral individual dos magistrados.

Dessa feita, diante de tal preocupante diagnóstico, seria legítimo o controle de constitucionalidade? E o que dizer de sua eventual extinção? Seria correta? Nesse sentido, poderíamos outorgar a tarefa de fiscalizar a correção e constitucionalidade das leis ao mesmo órgão responsável pela sua criação, ou seja, o Congresso Nacional, casa dos representantes do povo? No caso de resposta negativa, como poderíamos construir um sistema equilibrado e limitado de controle de constitucionalidade que efetivamente garanta a defesa da Constituição, e, ao mesmo tempo, da democracia?

O enfrentamento dessas questões é importantíssimo para que possamos identificar os fundamentos e fronteiras jurídicas do sistema de controle de constitucionalidade no direito brasileiro.

Para esse intento, analisaremos, primeiramente, algumas teorias acerca do controle judicial de constitucionalidade, assim como a eventual possibilidade de sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro, e, logo em seguida, examinaremos a realidade constitucional pátria, bem como a legitimidade, ou não, do vigente sistema de controle de constitucionalidade das leis.

1. Teorias sobre o Controle Judicial de Constitucionalidade

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No presente item, serão expostas algumas teorias e propostas criadas por autores clássicos a respeito do controle judicial de constitucionalidade das leis. Primeiramente, veremos a problemática do caráter contramajoritário da jurisdição constitucional, enunciada por ROBERTO GARGARELA, juntamente com JOHN HART ELY, e quais as possíveis soluções para dirimir esse vício. Finalmente, examinaremos a democracia dualista de BRUCE ACKERMAN e suas influências e contribuições para o sistema de controle judicial das leis. Vejamos:

1.1. O Caráter Contramajoritário da Jurisdição Constitucional

Para muitos autores, o controle judicial abstrato das leis pelas Supremas Cortes guarda grave tensão com a democracia, eis que atribuído a um reduzido número de indivíduos. Para ROBERTO GARGARELA, essa tensão pode ser resumida na seguinte indagação: como podem, em uma democracia, juízes não eleitos pelo povo (destituídos de representatividade popular), dotados de estabilidade em seus cargos, declarar inválida (em última instância) uma lei aprovada pelos representantes do povo?2

A partir desse questionamento, o jurista argentino procura tecer limites rígidos ao sistema de controle de constitucionalidade, objetivando conciliar seu caráter elitista e antidemocrático com o princípio da vontade da maioria. Em síntese, afirma que a Suprema Corte deve limitar-se a proteger a integridade do procedimento democrático – não podendo interferir nas decisões políticas sobre valores, ou substanciais, eis que de competência exclusiva da cidadania, por intermédio de seus representantes –, bem como assegurar a inviolabilidade da moral privada dos indivíduos, protegendo-os contra leis “perfeccionistas”3.

Nesse viés, como adepto da concepção deliberativa da democracia, parte da idéia de que o sistema político deve promover a tomada de decisões imparciais, isto é, que não sejam proferidas em benefício de alguma pessoa ou grupo específico, mas que tratem a todos com igual consideração. Para o autor, a principal virtude da democracia deliberativa é que ela facilita e promove a discussão pública, possibilitando que cada uma das pessoas refine seus argumentos, de modo a torná-los aceitáveis para os demais (transcendendo, assim, osPage 4 interesses pessoais). Nesses termos, a participação igual de todos os cidadãos nos debates políticos assegura a imparcialidade no processo de tomada de decisões.

Ainda, faz-se mister, para o próprio sucesso da democracia deliberativa, que se retire do campo das decisões coletivas as questões concernentes à moral individual (leis perfeccionistas).

Trata-se, pois, de uma via de mão dupla: ao mesmo tempo em que um grupo não pode impor sua vontade aos demais em assuntos que são de interesse de todos, a comunidade (maiorias) não pode impor às pessoas decisões relativas aos seus planos de vida individuais4.

Dito isso, para ROBERTO GARGARELA, deve a Suprema Corte limitar-se a controlar a correta aplicação da democracia deliberativa, assegurando as condições do debate democrático e a inviolabilidade das esferas de moral privada dos indivíduos. Essa também é a posição manifestada por JOHN HART ELY, para quem a função da Corte não é de reivindicar a guarda de determinados valores que ela considere importantes, mas sim de assegurar a idoneidade do processo político e garantir o bom funcionamento da democracia5.

Em resumo, o Judiciário controla o procedimento democrático, e não questões substanciais – estas de alçada privativa dos representantes do povo.

Indo mais além, ROBERTO GARGARELA defende que à Suprema Corte não deve ser conferida a última palavra nas questões constitucionais. Nesse viés, propõe a adoção da técnica do reenvio, através da qual a Suprema Corte, ao constatar que uma lei viola norma constitucional, promove o seu reenvio ao Legislativo para nova discussão. Em outras palavras, a proposta do jurista argentino é fomentar um debate institucional entre os Poderes Estatais, retirando do Judiciário a última palavra acerca da constitucionalidade das leis. Nesse sentido, procura conciliar os seguintes aspectos: diálogo institucional; proteção contra a inerente falibilidade de tomada de decisões políticas; e defesa do princípio majoritário6.

A despeito disso, esse autor admite que o sistema de controle de constitucionalidade por ele proposto pode gerar um aumento exagerado dos poderes Legislativo e Executivo (já que implica em uma considerável diminuição do Judiciário). Por isso, entende que tal reformaPage 5 judicial deve ser acompanhada de uma reforma paralela no sistema político, resolvendo-se os seguintes e típicos problemas da democracia representativa: 1) o Legislativo não representa todos os membros da comunidade; 2) os que chegam ao Parlamento normalmente são aqueles que têm mais dinheiro ou poder, não sendo, pois, representantes da maioria; 3) o modo como o Legislativo decide, em regra baseado na “negociação” ao invés do debate público; 4) o Legislativo várias vezes decide contra o interesse da maioria; 5) a debilidade do mecanismo de eleições periódicas; e 6) falta de articulação social e debate público7.

Diante do exposto, em resumo, para ROBERTO GARGARELA, bem como para JOHN HART ELY, o sistema de controle de constitucionalidade das leis deve ser organizado em torno de dois objetivos principais: i) garantir as condições do debate democrático e ii) assegurar a inviolabilidade da moral privada dos indivíduos.

Um tanto distinta é a teoria formulada por BRUCE ACKERMAN, que a seguir passamos a expor:

1.2. Democracia Dualista e Controle de Constitucionalidade em Bruce Ackerman

Dando seguimento, de acordo com o constitucionalista estadunidense BRUCE ACKERMAN, a Suprema Corte possui duas funções primordiais no exercício do controle de constitucionalidade: 1) preservar as regras e princípios criados pela vontade da cidadania mobilizada (de nível constitucional) da atuação dos legisladores (representantes do povo); e 2) na hipótese de criação de novos consensos provenientes da cidadania mobilizada, realizar a sua síntese em relação aos princípios constitucionais até então vigentes.

Explicando melhor, como adepto da democracia dualista, BRUCE ACKERMAN pugna pela existência de dois níveis de decisão política: 1) legislativa, caracterizado pelos períodos de política usual, em...

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