Considerações entre a produção e os fundamentos do Estado

AutorAdreana Dulcina Platt
Páginas9-28

Adreana Dulcina Platt. Doutora em Educação pela UNICAMP/SP. Mestranda em Ciências Jurídicas pela UFSC/SC. Especialista em Direito pela UEL/PR. Docente do Depto. de Educação, CECA/UEL/PR. Email: adplatt@uel.br.

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Introdução

Para compreendermos a complexidade do "Estado Democrático de Direito" - principalmente ante os antagonismos expressos pela realidade social em relação à eficácia do ordenamento jurídico vigente1 -, é mister destacar a expressividade da produção objetiva realizada pelos seres humanos, enquanto elemento precípuo deste estudo, a fim de descortinar os trajetos feitos na esfera supraestrutural (Estado) que busca, na atualidade, a consolidação, não tranqüila, dos princípios (neo)liberais.

Segundo Harvey (2000, p. 117-118), o atual modelo de produção (capitalista) assinala profundas e radicais modificações no campo "dos processos de trabalho, hábitos de consumo, configurações geográficas e geopolíticas, poderes e práticas do Estado, etc.". A assertiva do autor acima citado coaduna com nossa preocupação científica em não desvincular o produto da ação política com os determinantes da produção material e histórica, uma vez que, como afirma Marx (1982), será por meio daquilo que objetivamente se produz, o modo como se produz e a força de intercâmbio (ou a extensão destes produtos que se disponibiliza para a compra e consumo na totalidade da malha humana) dos produtos produzidos, que podemos pontuar os elementos que permitem aos agrupamentos humanos (ou nações) se desenvolverem e, notadamente, se complexificarem.

Este desenvolvimento, conforme Marx (1982), resulta de uma teia de materialidades possíveis através da produção, assim como a malha do complexo teórico (ideal, consciência) e que juntos determinam a práxis humana, ganhando a necessária oxigenação para o motor produtivo no intercâmbio que impulsiona outros mercados consumidores e, conseqüentemente, a vitalidade da produção local, enquanto escopo para a oferta do que se produz e da insurgência de novos produtos.

Estas duas esferas (material e ideal) dão sentido à existência humana, primeiramente ao responder as necessidades básicas2, e, para isso, objetivamentePage 11 transformando o mundo da natureza por meio da atividade prático-material (o trabalho). Num segundo momento (num sentido espiral, contínuo e não em fragmentos históricos), o ser humano supera sua condição por meio do acúmulo a este saber-fazer oriundo das práticas exercidas, especializando a maneira como responde às suas necessidades, as relações com os demais sujeitos, a si mesmo, e isso ocorre não só no plano da materialidade, mas também da imaterialidade (ou subjetividade). Como fala o filósofo: "não é a consciência que determina a vida, mas é a vida que determina a consciência" (MARX, 1982).

Desta forma, a atividade humana expressa pelo trabalho exercido, por meio da qual o ser humano artificializa o mundo através da transformação da matéria-prima, com o propósito de responder a sua condição de existência (Cf. ARENDT, 1982, p. 15), também provoca a expressão do mundo da cultura, da política, da sociabilidade, que, conforme assinalávamos anteriormente promovem novas "geografias", a partir de outras necessidades materiais, originárias de determinada condição da existência e segundo o tempo histórico que se encontra, da mesma maneira às formas que possui, no sentido de gerir este modelo produtivo, encharcado de relações de poder, forças ideológicas e principalmente de elementos de controle.

Esta introdução foi necessária para que encontremos o liame das relações políticas significadas através das relações de produção, assim como o mundo da cultura também deve ser respondido a partir do reconhecimento, no tempo e no espaço, da divisão social do trabalho (cf. MANDEL, 1982).

1 O Estado, a sociedade e a produção

Para responder aos determinantes sociais que se agudizavam com o desenvolvimento da produção, provocada pelas especialidades oportunizadas por meio do trabalho, a divisão social destas atividades e o intercâmbio da produção, e que redundavam também em constantes (e mal vistas) imigrações, em conflitos tribais e das sociedades primitivas e em seus possíveis espólios, tanto quanto, internamente, na necessária divisão entre o trabalho braçal, o militar e o espiritual3, Engels (1960, p. 111) aponta que a sociedade, acumulando "gens"4 da experiência vivida por diferentes organizações sociais (como por exemplo,Page 12 o Estado ateniense, o Estado asiático), cria a figura do Estado porquanto "[...] um dos traços característicos, essenciais do Estado é a existência de uma força política separada da massa do povo". A figura do Estado se fazia mister enquanto elemento de presumida "neutralidade".

Na ampliação das conquistas materiais, concomitantemente se ampliam as demais possibilidades do desenvolvimento humano e em diferentes áreas do conhecimento. A escrita, a cultura de reservas (tanto na agricultura quanto a de víveres), o artesanato, etc, mas também as formas de se estabelecer em sociedade, que cada vez mais se consubstancia em unidades até o modelo celular classicamente mais reconhecido (o homem – enquanto chefe familiar, a mulher e os filhos), que representaria o estreitamento do produto para consumo e do volume de necessidades voltada primeiramente à esta ordem.

A propriedade privada voltada unicamente ao usufruto de um núcleo familiar é uma originalidade dos agrupamentos humanos enquanto resultado da complexificação dos modos de produção e do desenvolvimento da nação, uma vez que, conforme Mandel (1982) a vida estabelecida em comunidade, com a apropriação e divisão "em comum", possibilitava que a riqueza resultante do esforço coletivo se distribuísse a cada um conforme sua necessidade. E nesta formação artificial de distribuição de riqueza, a propriedade privada vem a ser o elemento mais emblemático para o surgimento do Estado na garantia da manutenção dos bens acumulados por determinados indivíduos não mais segundo sua necessidade, mas agora conforme esta possibilidade de acúmulo privado (e desigual) na produção e no intercâmbio desta.

Segundo Bresser Pereira (1977), o Estado surge, na concepção marxiana, a partir da variação político-econômica provocada na sociedade com a introdução das relações de apropriação particular da propriedade. O Estado, segundo o autor, favoreceria as classes dominantes que conduzem as tensões existentes entre a produção, o intercâmbio e o excedente acumulado, em causa própria.

É de particular importância pontuar que não somente no âmbito da organização econômica a presença do Estado se fez necessária, mas enquanto "estrutura jurídico-institucional da sociedade" (1977, p. 77):

Quando determinado sistema social passa a produzir um excedente econômico, a sociedade divide-se em classes. Para que a classe dominante que então surge tenha condições políticas de exercer seu domínio e apropriar-se do excedente econômico ela institucionaliza o Estado. A partir deste momento a sociedade, além de ser dividida em classes, passa a se compor de uma sociedade civil e doPage 13 Estado.

Neste sentido, o Estado além de uma ordem de justificativas econômicas também se ampara na composição jurídica e de um sistema organizacional com vistas ao controle da ordem social (que na modernidade se sustenta na ordem tecnocrática e burocracia).

Bresser Pereira (1977, p. 76) elenca os elementos constitutivos desta estrutura estatal que permite às classes dominantes se sustentarem hegemonicamente no poder e apropriarem-se do excedente da riqueza produzida pelos trabalhadores. São eles

  1. "Uma elite política que geralmente se confunde com a própria classe dominante e nela se recruta";

  2. "Uma burocracia ou tecnoburocracia, ou seja, de um corpo de funcionários hierarquicamente organizados, que se ocupa da administração";

  3. "Uma força pública, que se destina não apenas a defender o país contra o inimigo externo, mas principalmente a manter a ordem externa".

    Mas para isso, o Estado toma para si a garantia de duas importantes ações que materializam sua presença no corpo social (ou cf. BRESSER PEREIRA 1977, "dois direitos ou poderes básicos"):

    1. "O poder de estabelecer lei, de montar um ordenamento jurídico impositivo que obrigue coercitivamente os cidadãos";

    2. "O poder de tributar".

    E desta forma:

    O Estado é, portanto, uma estrutura de dominação, constituída de uma elite dirigente, de uma força pública, dotada de poder de legislar e tributar, estrutura da qual a classe dominante no plano econômico torna-se também dominante no plano político, e assim se assegura da apropriação do excedente. [...] não só controla os fatores de produção mas também porque controla o Estado.

    Historicamente, a cada modelo de produção corresponde uma "superestrutura jurídico-institucional". O autor supracitado acrescenta que,

    esta superestrutura jurídico-institucional, mais a superestrutura ideológica, irão garantir e legitimar as relações de produção vigente, assegurando à classe ou às classes dominantes, sua posição na estrutura social. (BRESSER PEREIRA 1977, p. 77; grifos nosso).

  4. Do Estado Pré-Capitalista ao Estado Neoliberal

    Uma vez sustentada, até aqui, a origem do Estado enquanto instituto de criação humana, que surge para resguardar o excedente de produção e garantirPage 14 os princípios de propriedade privada enquanto privilégios de determinada(s) classe(a), da mesma forma, relacionamos que estas garantias seriam legitimadas por um aparato jurídico organizado e que vem a ser atributo ímpar deste Estado. O raciocínio deste fundamento sustenta que a supra-estrutura jurídicoinstitucional e a estrutura econômica são intrinsecamente justapostas para a condução da organização das relações sociais, políticas, ou seja, na sustentação material e ideológica para a hegemonia da classe que detém os modos de produção, seu excedente e a propriedade.

    A cada período histórico podemos...

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