Fundamento

AutorArion Sayão Romita
Ocupação do AutorAcademia Nacional do Direito do Trabalho
Páginas163-190

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1.1. Generalidades

É possível indicar um fundamento absoluto para todos os direitos fundamentais? A resposta é negativa. Norberto Bobbio demonstra a impossiNorberto Bobbio demonstra a impossibilidade de apontar o fundamento irresistível, aquele que justificaria a universalidade dos direitos humanos.

O fundamento dos direitos são as condições para a realização de valores últimos. O fundamento consiste no apelo a esses valores. Contudo, os valores últimos não se justificam: são postulados, sem necessidade nem possibilidade de demonstração. O valor é último porque dispensa fundamento. Acontece que os valores últimos são muitas vezes antinômicos, nem sempre podem ser observados simultaneamente. Na justificação dos direitos, entram em jogo as preferências pessoais, as opiniões políticas, as orientações ideológicas.

Por outro lado, os direitos fundamentais variam no tempo e no espaço. Já foi lembrado o exemplo da propriedade que, nas declarações do século XVIII, era considerada sagrada e inviolável; passou, todavia, nas declarações contemporâneas, a sofrer radicais limitações. Os direitos sociais, que eram ignorados no século XVIII, são proclamados com grande ênfase na atualidade. Como sustenta Bobbio, não é possível atribuir um fundamento absoluto a direitos historicamente relativos.

Cabe considerar ainda a existência de direitos com diversa justificação. Há alguns que valem em qualquer situação e para todos os homens indistintamente, vale dizer, direitos que não podem sofrer limitações nem diante de situações excepcionais nem com relação a determinadas categorias de pessoas. Entretanto, esses direitos são bem poucos: pode ser lembrado, a título de exemplo, o direito de não ser escravizado. Mesmo neste caso, a afirmação desse direito se fez mediante a supressão do direito de ter escravos. Surgem frequentemente, entre os direitos fundamentais, antinomias ou colisões, gerando conflitos que são compostos mediante a ponderação de interesses. Lembre-se a liberdade de manifestação artística, que repele a censura, mas encontra limites no direito do público de não ser agredido ou chocado. A solução está em limitar a extensão de um dos direitos, de modo que o outro também seja resguardado. Direitos que têm eficácia tão diversa não podem ter o mesmo fundamento.

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Historicamente, a ilusão do fundamento absoluto constitui obstáculo ao reconhecimento de novos direitos, total ou parcialmente incompatíveis com direitos preexistentes. A oposição quase secular à introdução dos direitos sociais baseou-se no fundamento absoluto dos direitos de liberdade. O problema fundamental em relação aos direitos humanos - adverte Bobbio - não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não filosófico, mas político1. Além disso, cabe lembrar a objeção oposta por Gregorio Robles à multicitada frase de Norberto Bobbio. Segundo Robles, a frase deveria ser reformulada nos seguintes termos: "o problema prático dos direitos humanos não é o de sua fundamentação, mas sim o de sua realização; porém, o problema teórico dos direitos humanos não é o de sua realização, mas sim o de sua fundamentação" - grifos do original2.

A lição de Bobbio não elimina, de qualquer forma, a necessidade de examinar as diferentes teses que, ao longo do tempo, procuram justificar os direitos fundamentais. Tudo, ou quase tudo, já foi tentado: invocação de revelações religiosas, a natureza do homem, evidências que não poderiam ser postas em dúvida, tradições, decisões existenciais, interesses individuais, bens coletivos, amplos consensos fáticos. A utilidade do esforço parece evidente, porque ligado ao problema da fundamentação está o da definição dos direitos fundamentais. Da índole que se lhes atribuir dependerá seu entendimento, noção da qual decorrerão consequências, como a extensão, a eficácia e a aplicabilidade.

1.2. Teorias

Serão examinadas as seguintes teorias: 1ª - a dos direitos naturais; 2ª - a dos direitos morais; 3ª - a dos direitos históricos. Acrescente-se a necessidade de fundamentar os direitos humanos à luz das seguintes concepções: 1ª - a positivista; 2ª - a do consenso; 3ª - a fundamentação teorético-discursiva; 4ª - a comunitarista; 5ª - a da dignidade da pessoa humana.

1.2.1. Direitos naturais

As origens do reconhecimento dos direitos humanos se enlaçam na ideia do direito natural.

Na definição de Henri Ahrens, direito natural é " a ciência que expõe os primeiros princípios do direito concebidos pela razão e fundados sobre

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a natureza do homem, considerado em si mesmo e nas relações com a ordem universal das coisas"3. A teoria do direito natural assumiu diferentes aspectos ao longo da história, desde a Antiguidade até nossos dias, sendo frequentemente contestada. Direito natural de conteúdo variável para Stammler; direito natural mínimo, de núcleo sintético para Gény; direito natural de conteúdo progressivo para Le Fur, Dabin, Leclercq - eis algumas das modalidades que apresenta, para responder a objeções. A teoria pura do direito natural afirma a existência de um direito superior, oriundo da natureza das coisas, objetivo, imutável, do qual os direitos positivos são apenas realizações. Trata-se de uma lei superior, escrita na natureza, cujo conhecimento é a todos acessível, eterna, invariável, sempre a mesma em todos os tempos e lugares, insuscetível de derrogação por qualquer poder legislativo4. Os direitos fundamentais seriam faculdades assentadas não em uma norma positiva, mas sim em um ordenamento superior, o que lhes empresta universalidade e intangibilidade em face do poder. A invocação dos direitos com este fundamento representa uma afirmação implícita de uma ordem suprapositiva5.

À luz dessa concepção, os direitos do homem seriam direitos inatos, inerentes à natureza humana6, naturais e primários, anteriores e superiores ao Estado (pré-estatais e supraestatais). O racionalismo individualista e iluminista dos séculos XVII e XVIII abandona a base teológica sobre a qual assentava o jusnaturalismo medieval e adota uma feição puramente racionalista. Os direitos do homem são produto da razão. São inerentes ao homem por sua própria condição humana, ou seja, são atributos que o poder público deve respeitar, fundados na própria natureza da pessoa humana. Esta é a orientação perfilhada pela Declaração da Independência dos Estados Unidos da América, da lavra de Thomas Jefferson, de 1776: "Consideramos evidentes estas verdades, que todos os homens foram criados iguais, foram dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade. Que, a fim de assegurar esses direito, governos são instituídos entre os homens, derivando seus justos poderes do consentimento dos governados; que, sempre que qualquer forma de governo se faça destruidora destes princípios, cabe ao povo o direito de alterá-la ou aboli-la e instituir novo governo, baseando-o em tais princípios e organizando-lhe os poderes pela forma que lhe pareça mais conveniente para realizar-lhe a segurança e a felicidade".

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A doutrina social da Igreja Católica também perfilha essa orientação. Na Encíclica Pacem in Terris, do Papa João XXIII, de 1963, lê-se, no item 9: "Em uma convivência humana bem constituída e eficiente, é fundamental o princípio de que cada ser humano é pessoa, isto é, natureza dotada de inteligência e vontade livre. Por essa razão, possui em si mesmo direitos e deveres, que emanam direta e simultaneamente de sua própria natureza. Trata-se, por conseguinte, de direitos e deveres universais, invioláveis e inalienáveis"7.

Esta ideia permanece viva e ganha forças no plano internacional. Basta ler o subitem 1.1 da Parte I da Declaração e Programa de Ação adotados pela Conferência Mundial sobre Direitos Humanos (Viena, 1993): "Os direitos humanos e liberdades fundamentais são direitos naturais de todos os seres humanos; sua proteção e promoção são responsabilidades primordiais dos Governos".

Não obstante, a justificação dos direitos fundamentais como direitos inatos, inerentes à natureza humana, encontra forte objeção, a partir da indagação elementar: - Que é natureza humana, ou - Qual é a natureza do homem? A filosofia jusnaturalista indicava o estado de natureza (pré-estatal ou pré-social) como o ambiente em que os direitos do homem são poucos e absolutamente essenciais: direito à vida, à segurança, à propriedade, à liberdade. Contudo, o estado de natureza não passa de ficção doutrinária (Norberto Bobbio), mera tentativa frustrada de justificar racionalmente determinadas pretensões veiculadas por lutas e movimentos empreendidos contra o autoritarismo estatal e o dogmatismo das Igrejas8. As razões dessas lutas e desses movimentos devem ser procuradas não no estado de natureza, nem na própria natureza humana, mas na realidade social da época, em suas contradições e nas transformações sociais produzidas em cada ocasião histórica.

Duras críticas à concepção dos direitos do homem como direitos inerentes à natureza humana foram desferidas por três correntes de pensamento que exerceram grande influência sobre a filosofia do mundo ocidental: a do utilitarismo de Bentham, a do historicismo de Savigny e a do positivismo jurídico de Austin e de Kelsen.

Para Bentham, o direito não deriva da natureza das coisas nem da natureza humana, mas sim da autoridade do Estado; non veritas sed auctoritas facit legem. A escola histórica também recusa a categoria de direitos naturais, pois vê no direito o produto do espírito do...

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