Função da prova

AutorFrancesco Carnelutti
Ocupação do AutorAdvogado e jurista italiano
Páginas35-84

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1. Posição da norma jurídica e do fato na sentença

A ordem jurídica compõe conflitos de interesses com normas gerais, as quais subordinam umas às outras determinadas categorias de interesses, impondo aos portadores dos interesses subordinados um determinado comportamento a favor dos portadores dos interesses prevalecentes. Enquanto não baste para a composição efetiva dos conflitos a coação moral que deriva da existência das mesmas normas, precisa proceder à realização ou atuação destas transformando seu comando abstrato em comando concreto, ou somente para utilizar para os efeitos daquela composição a coação moral mais enérgica causada pela especificação, o comando, ou também para garantir (para preparar ou para controlar), mediante esta especificação o justo uso da coação material visando a consecução da subordinação estabelecida pelo interesse inferior ao interesse prevalecente. Esta transformação se prepara por meio de uma série de atos, que constituem o processo judiciário (de cognição) e se exaure mediante a sentença. A sentença cumpre o processo de transformação da norma jurídica de comando abstrato em comando

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concreto; mediante a sentença o comando toma corpo, se individualiza e se define.

Cada norma jurídica representa um comando hipotético: põe uma determinada situação (exatamente um determinado conflito de interesses) e comanda relativamente a ela. Para individualizá-la é preciso constatar uma situação idêntica à situação colocada e comandar no mesmo modo relativamente a ela; assim o comando hipotético se torna comando real. A constatação da identidade (ou da diferença) da situação colocada pela norma com a situação colocada na causa é o escopo do processo e o objeto do juízo1.

Disso a estrutura da sentença se esclarece com a forma lógica de um silogismo, cuja premissa maior é constituída pela afirmação da situação colocada pela norma jurídica, cuja premissa menor é constituída pela afirmação da situação colocada na causa, cuja conclusão é constituída pela afirmação ou pela negação da aplicação da norma jurídica para a situação colocada na causa (com base na constatada identidade ou deformidade da situação colocada pela norma com a situação colocada na causa).

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À duplicidade das premissas corresponde o dúplice tema da atividade do juiz: posição da norma jurídica, posição da situação de fato; ou, como se diz na linguagem corrente: questão de direito (Rechtsfrage), questão de fato (Thatfrage).

2. Posição da norma jurídica

Relativamente aos dois temas esta atividade se desenvolve porém com medida profundamente diversa.

Para a posição da norma jurídica o juiz deve ater-se estritamente à realidade (do ordenamento jurídico); não pode por uma norma que não existe, embora seja afirmada pelas partes; não pode omitir uma norma que exista, embora seja dita pelas partes. Este lado da sua atividade se reduz, portanto, a um problema de conhecimento do ordenamento jurídico2; para sua solução são dirigidas multíplices providências, as quais se estendem pelo controle (exame) da cumprida cultura jurídica do magistrado ao fornecimento dos meios materiais, que lhe permitam conservar ou acrescer a mesma cultura3.

O que se pede ao juiz é a posição da norma existente, não um determinado processo para conseguir seu conhecimento; em particular é indiferente que o juiz atinja seu conhecimento dos elementos que lhe fornecem as partes ou dos elementos que lhe fornece a cultura pessoal ou sua pesquisa pessoal.

Isto não exclui, porém, a possibilidade de que o juiz não consiga com seus meios adquirir o conhecimento da norma jurídica a ser colocada e que tal conhecimento procure, portanto,

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se obter com procedimentos análogos àqueles que lhes servem para a posição da situação de fato: uma hipótese desta natureza se verifica frequentemente para as normas consuetudinárias e para as normas estrangeiras4. Se apresenta assim um aparelho processual, que pode simular o verdadeiro e próprio aparelho probatório; mas a semelhança é mais aparente do que real por quanto se refere ao mecanismo lógico (o processo pelo qual o juiz adquire pelo documento ou pela testemunha o conhecimento da norma consuetudinária ou da norma estrangeira é distinto daquele pelo que da mesma fonte adquire o conhecimento de uma situação de fato), e de qualquer forma não se estende ao mecanismo jurídico do conhecimento ou, em outras palavras, às regras jurídicas que constrangem as

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normas e os resultados daquele processo lógico dentro de determinados esquemas (o juiz não está vinculado ao se servir do documento ou da testemunha para fixar a existência da norma consuetudinária ou da norma estrangeira àquelas regras, às quais é, ao invés, subordinado quando se sirva dele para fixar a existência de uma situação de fato)5.

3. Posição do fato não controvertido

Para a posição da situação de fato, o juiz está obrigado, em vez de estritamente à realidade, à afirmação das partes.

A afirmação de um fato é a posição deste como pressuposto da pergunta dirigida ao juiz6. Enquanto o ato que se pede ao

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juiz de cumprir pressuponha a existência de um determinado fato, o pedido do mesmo ato implica por necessidade sua afirmação: afirmação, entende-se, da sua existência material (Thatsachenbehauptung, Thatsachenanführung)7. Se eu peço ao juiz que condene Fulano a restituir-me a quantia mutuada, afirmo com isso a conclusão do contrato de mútuo e a entrega da quantia para o mutuário. Se eu peço ao juiz que ouça Fulano como testemunha sobre um determinado tema, afirmo com isso a (existência do) testemunho de Fulano sobre aquele tema.

A afirmação de um fato por parte de um litigante pode corresponder à afirmação do mesmo fato por parte do outro; isso acontece enquanto o outro também coloque aquele fato como pressuposto do seu pedido ao juiz. Se peço ao juiz para condenar Fulano à restituição da quantia mutuada, e Fulano por sua vez pede ao juiz de repelir o meu pedido porque nenhum contrato de mútuo foi entre nós concluído, há nisso afirmação (da existência) do contrato somente de minha parte; se Fulano, em vez disso, pede ao juiz para repelir o meu pedido por que a quantia mutuada foi já restituída, há nisso afirmação bilateral da conclusão do contrato de mútuo e da entrega da quantia ao mutuário, porque também Fulano põe estes fatos como premissas do seu pedido. A afirmação de um fato já afirmado pela

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parte contrária se chama admissão, cuja noção, portanto, se esclarece nestes termos: posição como pressuposto do pedido de um fato já pressuposto do pedido adversário8.

A afirmação das partes vincula o juiz para a posição do fato no sentido de que de um lado ele não pode pôr uma situação de fato que não seja afirmada por uma (pelo menos) das partes, por outro lado ele não pode não pôr (omitir) uma situação de fato que seja afirmada por todas as partes. A afirmação unilateral (discorde) de um fato é condição necessária para a sua posição na sentença; a afirmação bilateral (concorde) é por isso condição suficiente9. Os fatos não afirmados não podem ser postos; os fatos afirmados concordemente devem ser postos.

Um sistema processual feito dessa forma integra um poder de disposição das partes sobre o material de fato da sentença e por isso uma influência sobre o comportamento da mesma sentença: as partes podem, silenciando um fato real ou afirmando concordes um fato imaginário, constranger o juiz a pôr na sentença uma situação de fato diversa da realidade. Este sistema – assim dito princípio de disposição (Dispositionsmaxine, Verhandlungsmaxime)10– não responde, porém, de forma

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alguma, exclusivamente à natureza privada do interesse tutelado no processo civil e a uma consequente indiferença do Estado sobre o ponto da realidade dos pressupostos de fato da sentença11, mas é, em vez disso, prevalentemente determinado por

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um intento prático de desfrutação da iniciativa das partes para uma mais rápida e mais garantida posição do fato conforme a mesma realidade: o contraste dos interesses que determina e vivifica o processo, consente em julgar o fato silenciado por todas as partes não possa ser e que o fato afirmado por todas as partes não possa não ser real, enquanto a possibilidade desta previsão seja falaz em algum raro caso não diminui sensivelmente a relevada vantagem de segurança e de economia12.

Isto é, o sistema repousa sobre a previsão da normal coincidência entre o ponto de equilíbrio dos interesses privados contrários e o interesse público para a justa realização das normas jurídicas e assim à fixação dos fatos na sentença conforme a verdade13; não é de excluir, porém, que considerando a eventual divergência entre o interesse privado e o interesse público, o ordenamento jurídico, quando aceita a hipótese de uma fixação

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na sentença de fatos contrários à verdade por efeito do querer das partes manifestado no concorde silêncio dos fatos verdadeiros ou na concorde afirmação de fatos não verdadeiros, sacrifique voluntariamente o interesse público ao interesse privado prevalecente. Essa postura do princípio de disposição sobre a tutela do interesse público normalmente realizada mediante a vontade dos privados que têm interesses contraditórios e sobre a excepcional subordinação do interesse público, não é uma característica indefectível, mas uma diretriz de conveniência do processo civil, a qual pode ceder a uma diretriz oposta...

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