Fragmentos ecologizados de direitos humanos e cidadania

AutorJoão Martins Bertaso
CargoDoutor e Mestre em Direito pela UFSC
Páginas133-152
FRAGMENTOS ECOLOGIZADOS DE DIREITOS HUMANOS E
CIDADANIA
GREENING FRAGMENTS OF HUMAN RIGHTS AND CITIZENSHIP
João Martins Bertaso1
Resumo: O artigo analisa a conc epção de cidadania dirigido a operar numa socieda de multicultural. Em
sua versão moderna, foi imaginada para uma socie dade de cidadã os cotizando bens, valores e
propriedades comuns. As sociedades compostas de uma unidade de iguais, constituem-se negando o
Outro, não reconhecendo o princípio da alteridade no cotidiano de suas pr áticas políticas. A pesquisa
parte do pressuposto de que a cidadania, os direitos humanos e a soli dariedade são sinérgicos e
potencializam maneiras de viver solidári o. Os valores da dignidade e de humanidade, d e onde o
reconhecimento de tod os(as) e de cada um(a) tende a se fazer no plano da pragmática da s transrelações
humanas. O trabalho busca oferecer as con dições de como o proce sso de mediação/tradução intra, inter
e tra nscultural, via biliza as condições operacionais da cidadania em sociedades multiculturais.
Reconhecer o Outro requer medidas concre tas de responsabilidade de pessoas e de comunidades.
Palavras-chave: cidadania; direitos hu manos; alteridade.
Abstract: The article analyzes the concept of citizenship directed to operat e in a multicultura l society.
In its modern form, was devised to a society of citi zens quoted goods, values and com mon properties.
Societies composed of an equal unit, consist of denyi ng the other, not recognizing the principle of
otherness in th eir everyday political pra ctices. The research assu mes that citizenship, hu man rights and
solidarity are synergistic and potentiate solidarity ways of living. The values of dignity and humanity,
where the recognition of a ll and each tends to do in terms of the prag matic human transrelati ons. The
work seeks to offer the conditions o f h ow the process of mediation / translation intra, int er and
transcultural, enables the operating conditions of citizenship in multicultural societies. Recognizin g the
Other requires concrete measures the resp onsibility of individuals and communities.
Keywords: citizenship; human rights; alterit y.
A literatura, que é a arte casada com o p ensamento e a
realização sem a mácula da realidade, pare ce-me ser o fim
para que deveria render todo o esforço huma no, se fosse
verdadeiramente humano, e não uma super fluidade do
animal. Creio que dizer uma coisa é con servar-lhe a virtude
e tirar-lhe o terror.
Fernando Pessoa
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Na dinâmica do tempo tudo muda, na forma e no conteúdo. Na linha do
tempo tem permanecido a impermanência. A ideia de cidadania e de sua realização
não foge à regra. Os conceitos esgotam seus significados e sentidos, quando não
co-respondem mais às práticas sociais do tempo em que “ vivem”. No Direito é
assim, os conceitos são (re)definidos constantemente dada a dinâmica social, e são
descritivos e diretivos, atribuindo sentido e justificando os comportamentos das
múltiplas relações que se fazem entre pessoas e gr upos. É t empo de superar o
sentido atribuído pelo poder , que paira na i deia de cidadania, e tomá-la para além
de seu aspecto de dominação e de seu significado reduzido ao exercício de regras
juridicizadas. A ideia de cidadania quase sempre esteve ligada a sujeitos portadores
1 Doutor e Mes tre em Direito pela UFSC; Coordenador Acadêmico do Programa de Pós-Graduação e m
Direito – Mestrado da U RI/Santo Ângelo, RS. Professor dos cur sos de graduação e Mestrado na mesma
instituição. Pesquisador e m Direito, Cidadania e Psicanális e. Trabalho associado ao projeto de Pesquisa
Cidadania Intercultural: dimensão d o reconhecimento social. Líder do Grupo d e P esquisa: novos
direitos na sociedade contemp orânea. Coordenador do Projeto de Pesquisa Cidadania e direitos
culturais: a proteção dos direitos de minoria s nos tribunais brasileiros, incluído no PROSUP/CAPES.
134 Direitos Culturais, Santo Ângelo, v.6, n.1 1, p. 133-152, jul./dez. 2011
de uma vontade política, no âmbito de um território estatal, e como legitimação
que opera, modo especial, a democracia por representação. Mas a questão da
representação, política ou jurídica, tem sido uma maneira de sustentar o poder de
outro(s) em benefício de al guns, motivo pelo qual camufla formas de opressão em
nome de liberdades. Já a questão da emancipação se direciona para o poder como
um lugar vazio, um lugar de interação e de articulação, onde voz e vez de todos e
de cada um se fazem presentes. A questão da cidadania, entendido assim, se coloca
por meio de uma luta permanente contra o poder social, que tende a estar ocupado
por corpos reais, desde sempre.
Na proposta iluminista, a cidadania foi imaginada assim: uma sociedade
de cidadãos cotizando bens, valores e propriedades comuns, buscando melhorar a
qualidade de vida, individual e coletivamente. Resultaria numa comunidade de
iguais, com soberania política, uma sociedade estatal legitimada a partir do
princípio do controle do poder social por meio das n ormas do Direito. No entanto,
essa sociedade composta de sujeitos de diretos “iguais”, se fez negando o outro,
não reconhecendo o princípio da alteridade no cotidiano de suas práticas políticas.
Ainda que estejam assegurados formalmente, um conjunto de direitos civis,
políticos e sociais, as relações de poder e os mecanismos que os promovem, foram
construídos na modernidade, ou seja, seus focos de l egitimação se fizeram
legalistas/estatalista, não reconhecendo, e por vezes desconsiderando qualquer
possibilidade alternativa, sensível de entendimento com base na mediação e no
diálogo. O sentido atribuído à cidadania ficou associado aos interesses d o Estado
nacional e de suas instituições, restando reduzida a cidadania aos mecanismos
simbólicos de sistematização do poder de seleção e de controle. Desvelar esse
sentido ocultado da cidadania implica concebê-la, em sua genética, associada ao
reconhecimento e ao respeito pelo outro, uma vez que reconhecer o outro –
estranho, estrangeiro, diferente, migrante –, é aceitar que a dignida de do ser
humano repousa num princípio que se presta generalizável e universalizável. Essa
compreensão não traz consequências negativas/impeditivas as comunidades
estatais e suas múltiplas relações no concerto dos demais Estados. Se não for
suficiente considerar o mundo globalizado, plural e diversificado, e os continuados
fluxos que fazem a dinâmica das transrelações de pessoas, bens e in formações,
aonde chegaríamos se todos, estados e comunidades, continuassem fechados, não
reconhecendo o outro como sujeito de direitos universais?
A motivação a esta pesquisa partiu do pr essuposto de que a cidadania, os
direitos humanos e a solidariedade são sinérgicos, e potencializam maneiras de
viver, por m eio das quais se pautam os valores da dignidade e de humanidade, de
onde o reconhecimento de todos(as) e de cada um(a) tende a se fazer no plano da
pragmática das transrelações humanas. Entender assim, como processo de
mediação/tradução intra, inter e transcultural, viabiliza a cidadania das condições
de possibilidades no plano operacional, em sociedades multiculturais. Agregar e
significá-la por meio dessa compreensão, requer medidas concretas de
reconhecimento do Outro, de pessoas e de comunidades. Importa ressaltar que foi
por meio da quela visão burocratizada e cientificista da cidadania, antes referida,
que fez, em alguma medida, com que os cidadãos fossem silenciados(as) no
processo que acabou un ificando o político e a cultura, e que gravitou em torno de
uma sociedade asséptica de iguais. Ao meu modo de ver, toda vez que a burocracia
suplantar os pesquisadores e os filósofos, não teremos ma is conhecimentos,

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