Foucault, um arqueogenealogista do saber, do poder e da ética

AutorInês Lacerda Araújo
Páginas38-55

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Este estudo* resulta de uma observação que Foucault fez a respeito de sua obra, em uma entrevista a Dreyfus e Rabinow. Afirma que ele tratou de três modos de objetivação que transformaram o ser humano em sujeito: as práticas discursivas (domínio do saber), as práticas disciplinares (domínio do poder) e as confessionais (domínio da ética).

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Para tanto, ele procede como um arqueólogo, escava os domínios do saber de uma época que estão estabilizados em formações discursivas, e servem como material para a crítica que o genealogista faz do poder desses mesmos discursos, quando relacionados a práticas não-discursivas, como as disciplinares, as tecnologias do eu, a normalização.

O procedimento arqueogenealógico

O domínio de trabalho de Foucault (1926-1984), o campo de sua reflexão, é a história do presente, a questão de como nos tornamos esse indivíduo que objetivou a si por meio de ciências ( As palavras e as coisas e Arqueologia do saber ), esse sujeito dividido em normal e anormal, disciplinado, controlado ( História da loucura e Vigiar e punir ), e esse sujeito que forjou tecnologias para constituir um “eu”, uma subjetividade ( História da sexualidade ). As marcantes influências em seu pensamento foram o movimento estruturalista, a história “epocal” do ser de Heidegger 2 e, principalmente, a genealogia de Nietzsche. Da epistemologia francesa, ele retirou as noções de descontinuidade, de irrupção, de acontecimento discursivo, que compõem sua arqueologia.

Para isso, ele analisa os delineamentos, os arquivos do saber de uma época, tal como se fosse um trabalho de arqueólogo, mostrando como eles são constituídos de diferentes formas em cada épistemê , de modo a responder a diferentes necessidades. Um objeto não se encontra pronto na realidade, bastando ir até ele, descobri-lo, estudar sua organização interna. Um objeto é armado numa trama de relações nas chamadas “formações discursivas”, que permitem mostrar seu lugar e seu uso por um dado saber. Por exemplo: o modo como a loucura entrou no campo do saber médico faz da loucura objeto de saber; a tendência da modernidade em “psicologizar” e “medicalizar” as relações humanas faz da normalidade o parâmetro de avaliação do corpo saudável; o tema da circulação das riquezas mostra a moeda como meio universal de troca; o ser vivo, como tendo uma estrutura invisível, dá início à vida como objeto por excelência da biologia.

Foucault vê o homem como um ser que pensa a si próprio e o faz de modos diferentes em configurações históricas também diferentes. Daí fazer a história dos diversos modos pelos quais ele pensou e como esses modos de pensamento se ligam à sociedade, à política,Page 40à economia, à história e também a certas categorias bem gerais, bastante distantes de princípios ou formas a priori de uma racionalidade transcendental. Ele não faz uma história das idéias, nem uma história da evolução da ciência, nem sobre se certo pensador ou cientista está correto ou não. Foucault analisa o modo como o saber se dispõe, vai se constituindo, fabricando temas e produzindo verdades. Seu objetivo é mostrar que, se os saberes foram sendo produzidos, não se deve tomá-los como simplesmente verdadeiros ou falsos, o que pode interessar do ponto de vista epistemológico, mas não do ponto de vista arqueológico. Assim, podemos criticar e destruir certas evidências, certas certezas, uma vez que estaremos desobrigados de comensurar, de fazer ciência.

A partir de fins dos anos 1960, com Ordem do discurso e textos preparados para as aulas no Collège de France, reunidos numa edição italiana sob o título de Microfísica do Poder , Vigiar e Punir e História da Sexualidade , Foucault adota o procedimento genealógico, o qual se mostra mais apropriado para pensar certas práticas, como a loucura (mesmo sendo História da loucura anterior, nela o poder já era questão), a medicina, a prisão, a sexualidade. Trata-se de práticas não discursivas que sujeitam os indivíduos a mecanismos de poder; o indivíduo moderno “nasce” de relações de saber e poder; os sistemas filosóficos e as ciências, especialmente as ciências psicológicas e as ciências bioestatísticas, que são vistas pelo ângulo epistemológico e consideradas como métodos de conhecimento, para Foucault, em contrapartida, são um produto de certas transformações históricas . O genealogista aborda as práticas que tomam o ser humano como objeto de estudo científico, cujo resultado é a formação de um novo tipo de saber. Esse saber, afirma Foucault, “é organizado em torno da norma que possibilita controlar os indivíduos ao longo de sua existência. Essa norma é a base do poder, a forma do poder/saber que dará lugar não às grandes ciências da observação [...], mas àquelas que chamamos de ‘ciências humanas’: Psiquiatria, Psicologia, Sociologia” (1994, p.595).

Entendemos, ao contrário da maioria dos estudiosos de Foucault, que o procedimento genealógico não substituiu a descrição arqueológica, isto é, não dispensou o uso dela, porque o tema do poder já estava presente na descrição arqueológica dos discursos. O procedimento arqueológico continua apropriado para circunscrever as práticas discursivas, enquanto o genealogista relaciona-as às demais práticas. Dentre os estudiosos que consideram haver duas fases distintas na obra de Foucault,Page 41estão Habermas, que, em O discurso filosófico da modernidad e, insiste na diferença entre as abordagens arqueológica e genealógica; Eribon que, em sua biografia, afirma que o foco deslocou-se “da ordem do discurso para as práticas sociais” (1990, p.218); Merquior, o qual sustenta que “agora, o nome do jogo é o poder” (1985, p.128); a mesma interpretação é dada por R. Machado, como se depreende de sua Introdução à coletânea Microfísica do poder , onde mostra que a arqueologia explica como os saberes aparecem e a genealogia é uma análise do “porquê” desses saberes; e Ternes, que diz que Arqueologia do saber e A ordem do discurso , marcam o “fim de um período” (1998, p.97).

Consideramos Foucault um arqueogenealogista, isto é, nele a função do arqueólogo não desaparece, porque o tema central não é o poder, como ele afirmou em entrevista a Dreyfus e Rabinow, e sim o sujeito, e, para dar conta desse tema, continua a analisar as formações discursivas, mesmo após a virada genealógica, considerando-as material fundamental para o genealogista trabalhar. Isso implica que Foucault descreve o modo como um objeto se delineia para o saber, e, em seguida, esse material é interpretado genealogicamente. Seguimos a tese de Dreyfus e Rabinow, que consideram que Foucault elabora uma análise interpretativa, em que o arqueólogo usa as formações discursivas como meio para isolar temas, conceitos, objetos de análise, os quais serão tratados pelo genealogista, que localiza essas práticas e considera o seu papel para disciplinar, normalizar, medicalizar. Eles propuseram essa hipótese ao próprio Foucault, que concordou com ela. A arqueologia é posta a serviço da genealogia, especialmente em suas últimas obras, e assume uma nova feição, a de “reconstrução de sistemas de práticas que possuem uma inteligibilidade interna [...] a racionalidade interna dos discursos e das práticas que ela estuda” (DREYFUS e RABINOW, 1984c, p.351).

O procedimento arqueogenealógico é crítico por excelência, mostra que aquilo que tomamos por evidente e certo foi saber produzido, tem um lugar, uma marca. Por isso mesmo, pode ser criticado, transformado e até mesmo destruído. Foucault considera que a filosofia pode mudar alguma coisa no espírito das pessoas. Aquilo que se toma por óbvio é fruto de um certo tipo de dominação, embutida em saberes que carregam poderes, e que a própria humanidade produziu. Esse é o trabalho do genealogista, crítico do presente, desestabilizador das evidências. Não há necessidades universais na existência humana. Tal como Nietzsche,Page 42o filósofo/historiador vê o lado cinza da história. Enquanto a história tradicional é finalista, contínua, progressiva, para o genealogista, não há essências fixas, leis de base, nem verdade fundamentada em moldes metafísicos. As recorrências, os jogos localizados dispensam a busca de um sentido mais profundo, causal. Seu olhar contempla a superfície, detectando nossas máscaras, atento a detalhes, a minúcias.

O sujeito moderno é fruto de certas interpretações, que, muitas vezes, cristalizam-se em essências, que provêm de práticas. Como não há o segredo, pois tudo é já interpretação, o arqueogenealogista não é um exegeta, quer dizer, não faz hermenêutica, não busca o sentido escondido, nem a proliferação de sentido, porque as interpretações foram impostas e os limites são elas mesmas que traçam, mediante regras, institucionalização de práticas, estabilização de sistemas, cujo funcionamento cria valores, saber, poder. O genealogista faz a história dessas interpretações, e o que ele analisa e deixa à mostra não é a verdade, mas sim as dispersões, os acidentes, os...

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