A forma da Lei

AutorMayr Godoy
Ocupação do AutorMestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo
Páginas130-146

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1. A vontade do legislador

A ideia do Legislador em propor um direito novo, em criar a lei, o obriga a elucubrações para conceituar essa vontade em condições de poder externá-la com força suficiente para atingir os fins imaginados.

Essa atividade exige uma aplicação metodológica que transforme aquele pensamento inicial em um texto normativo; todavia, de princípios lógicos que o engaste no sistema jurídico, onde deverá vigir.

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A transformação do produto da imaginação legislativa conjuga, sob uma primeira angulação, o estudo do fundo e da forma, depois, cuida da elaboração científica.

Nestes aspectos, pela ordem, a apreciação da vontade legislativa antecede à filologia legislativa: a primeira, que cuida da complexidade de vontades que formam a vontade a ser expressa na lei, somando as vontades de todos quantos participam da criação da lei, é vista como o fundo; a segurança, inseridas na forma, se dirige à redação da lei, com seu estilo, sua terminologia, sua gramática, para propiciar, ao final, a elaboração científica da lei.

2. A vontade legislativa

Entende-se por vontade legislativa o conteúdo da lei consequente da ideia imaginada pelo legislador como o direito abrangido pela nova norma legal a ser introduzida no mundo jurídico de lege ferenda. Este é o resultado de uma decisão de fazer valer uma concepção filosófica-política-sociológica em torno a um problema, por força do mandato que a comunidade conferiu aos seus juris conditores.

Afora isto, se a lei revelar mais, houve defeito elaborativo, que escapou à vontade legislativa, algo além da vontade do legislador, visto este como em quando após criada, todo complexo que se manifesta na criação da lei.

Desdobra-se, assim, a vontade contida na lei, daquele que se quer criar e, dela própria, na sua execução.

A mens legislatoris não pode ser confundida com a mens legis; naquela que foi criada. A vontade do legislador pode diferir da vontade da lei. Nesta, o preponderante, é o espírito da lei, a revelação das disposições normativas como estão na lei, pela ação do seu interprete.

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O espírito da lei, muitas vezes não corresponde aquilo imaginado pelo legislador, podendo ocorrer, até, traição à vontade legislativa: basta ter sido a redação imprecisa ou a aparição de fatos novos ou mudança da linguagem, modificando o quadro abrangido no texto normativo.

A vontade do legislador, a mens legislatoris, está nas justificativas do projeto, no processo ou nos anais do Poder Legislativo; todavia, como o interprete nem sempre busca as fontes e há uma tendência consolidada nos tribunais de se dar maior ênfase ao espírito da lei, a mens legis; daí, maior é a necessidade de a redação ter de fazer transparecer, apenas e sem outras possíveis interpretações, somente aquilo contido na mente de seu criador, no instante da concepção do direito novo.

A vontade legislativa nasce com o autor do projeto: somam-se-lhe a participação de todos que se integram na formação do ato complexo da lei: Poder Legislativo e Poder Executivo, como expoentes do poder de criar a lei, inclusive, a própria comunidade pelos grupos de pressão, pela mídia, e pelo lobismo, para afinal, refletir numa complexa vontade do legislador.

Às vezes o projeto só foi encampado pelo legislador e aí está subsumida a vontade de partidos, de grupos, de chefes políticos, não necessariamente participantes diretos do Poder. A comuni-dade é outra parcela a ser adicionada à produção da lei, na sua originalidade ou pelos grupos de pressão ou pelo lobismo. A lei aprovada resulta, pois, de uma somatória de vontades, ainda que concretamente estas não se tenham manifestado, todavia, tacitamente, o fizeram por força dos mecanismos legislativos3.

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3. A vontade do autor

Para evitar o desvio da vontade legislativa, pelo intérprete, na execução da norma, quer na via judicial ou na via administrativa, o autor do projeto deve oferecer um texto preciso e conciso; todavia não lacunoso nem hermético. A precisão, na concisão, afasta a oportunidade de emenda ou veto, expedientes desnaturadores do texto original. O ponto importante da propositura deve ser posto de maneira a mais científica possível, a ponto de não ensejar alteração; forçosamente, o autor precisa dar tratos ao texto4. É uma arte semelhante a do ourives engastando o brilhante nas garras do anel: a pedra fica a vista de todos, brilhando, porém, bem presa. As emendas podem aperfeiçoar o texto revelador da vontade do autor, mas, podem, também, desnaturá-la, como, igualmente, o instituto do veto, que é outro expediente que altera a vontade do autor.

Se o chefe do Poder Executivo veta parcialmente o projeto, e o pode fazer sob vários pontos, o Legislativo, ao apreciá-lo, também, o pode fazer, desdobramento, acatando uns e derrubando outros. Nada impede esse expediente processual legislativo, daí ser oportuna a lembrança da possibilidade eventual de um fato dessa natureza abrindo outra ocasião para modificar o projeto original, isto é, modificar a vontade do autor.

Há casos, não impossíveis, de uma deliberada dubiedade ou um hermetismo tendencioso destinados a criar, na lei, condições para que alguém possa se beneficiar desse estranho expediente do legislador. Pura teratologia, porém, pode ocorrer!

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A vontade legislativa, buscada pela interpretação, deveria dirigir-se às justificativas do projeto e ao contido no processo da elaboração da lei: destaca-se da chamada interpretação autêntica, que outra coisa não é, senão, a edição de uma nova lei, a lei interpretativa, pelo mesmo corpo legislativo, explicitando o texto, inclusive, se for o caso, derrogando disposições contrárias contidas na norma interpretada. Uma legislação perigosa porque, no período anterior à publicação da lei interpretativa, poderá a lei interpretada ter atuado concretamente, advindo, nesse tempo, conflito legal indesejado.

A técnica legislativa oferece a metodologia jurídica para somar as vontades atuantes no processo da criação da lei, a partir da vontade do autor, de maneira a fazer resultar, delas, um produto mais perto da vontade geral5.

Pode o autor ser do legislativo, do executivo ou do judiciário. O governo, como personalização do poder, preocupado em assegurar o absoluto respeito à norma, por ele concebida, tem de se precatar, garantindo-lhe uma redação precisa e insuscetível de atendimento diverso da vontade original.

Os exemplos do desvio da vontade legislativa medram mais na legislação tributária e fiscal, na normatização do regime jurídico dos funcionários públicos, textos onde elocubrações interpretativas imaginosas conseguem, amiúde, resultados bem diferentes dos idealizados no instante da criação da lei.

O expediente prático mais eficiente para o legislador evitar a alteração de sua vontade consiste na redação do projeto de maneira a não permitir emendas, ou possível vetos, sobre expressões importantes do texto.

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As emendas, substituindo, suprimindo, acrescentando ou modificando, bem como o veto, que, alterado, podem desnaturar a vontade original, incidente até sobre desdobramentos do artigo, podem acarretar o desvio da vontade do autor. Deve-se, aqui, distinguir a vontade do autor, stricto sensu, da vontade do legislador, lato sensu.

A vontade do legislador é a resultante da ação do Poder Legislativo sobre o influxo da ação da comunidade apresentando o projeto, rejeitando ou acatando o veto e, do Poder Executivo, apresentando o projeto, apondo o veto, só sancionando ou promulgando as leis.

A promulgação, pelo Legislador, não é ato de vontade, porém, mandamento constitucional6.

A lei é um ato complexo, dependente da ação dos dois poderes componentes do governo com poderes para editá-la. Somente o decreto legislativo e a resolução se iniciam e são promulgadas no seio do Poder Legislativo. A vontade do legislador, portanto, é expressão de amplo sentido; por isso, quando se impõe a restrição, como o contido nestas partes, deve-se falar em vontade do autor.

4. A vontade do poder

O governo, entendido como o Poder, tendo maioria parlamentar firme, detém o comando da ação legislativa.

Pode até a comunidade forçá-lo à edição de...

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