Serviços financeiros: Litígios e resolução extrajudicial

AutorCátia Marques Cebola
CargoDoutora em Direito. Professora adjunta na ESTG-Instituto Politécnico de Leiria
Páginas159-181

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Excertos

"Os fatores de surgimento da conlitualidade no sector inanceiro prendem-se reiteradamente com a falta de informação e formação do consumidor relativamente a produtos inanceiros de contornos complexos, com inúmeras variáveis e vicissitudes, de difícil compreensão por parte de um não especialista na matéria e expostos a riscos elevados pela inerente aléa que os caracteriza"

"Pode ser tentada a conciliação ou proposta às partes a solução que lhe pareça mais adequada, pelo que o mediador poderá assumir uma intervenção mais ativa, não cingindo a sua ação à mera promoção do diálogo, ao contrário da prática corrente no âmbito dos sistemas públicos de mediação"

"A importância que os conlitos inanceiros granjeiam à escala mundial manifesta-se na preocupação evidenciada pela criação institucional de centros de arbitragem e mediação para a resolução de disputas no âmbito de operações e produtos inanceiros de índole internacional"

"A igura do mediador do crédito, o PERSI e a RACE demonstram uma clara aposta legislativa em instrumentos extrajudiciais de resolução célere e gratuita dos conlitos no sector inanceiro, pelo que lhes dedicaremos seguidamente maiores desenvolvimentos"

"O mediador do crédito deve também colaborar com o Banco de Portugal no sentido de contribuir para o cumprimento das normas legais e contratuais em matéria de concessão do crédito"

"A função que confere ao mediador do crédito um caráter singular é, contudo, a de coordenar a aplicação da mediação entre clientes bancários e instituições de crédito, exercida com a finalidade de contribuir para melhorar o funcionamento do sistema inanceiro a este nível"

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1. Sistematização dos atuais meios de solução de litígios

Nos primórdios da história a autotutela constituía o meio típico de resolução de conlitos, através do uso da força pelos sujeitos envolvidos numa determinada disputa1. "Olho por olho, dente por dente", ditava a Lex Talionis numa vã tentativa de introduzir uma certa exigência de proporcionalidade no âmbito deste mecanismo.

Proibida desde o direito romano2, a autotutela é hoje consentida somente em casos excepcionais e devidamente justiicados3. Na verdade e como bem aponta Carnelutti, o emprego da violência para solucionar conlitos torna difícil, senão impossível, a permanência dos homens em sociedade4.

Superada a autotutela, e sendo premente garantir a harmonia social e a resolução dos inevitáveis conlitos emergentes em todas as sociedades, despontam, em substituição, sistemas de composição de interesses5, os quais, tendo por objeto pretensões e contrapretensões dirigidas aos mesmos bens, as tentam satisfazer através da atribuição ou repartição desses bens, quer pelo recurso a formas processuais, quer por formas não processuais ou extrajudiciais6.

Efetivamente, perante a ineludível necessidade de solucionar disputas entre os cidadãos e proibida a autotutela, o Estado sentiu a contingente obrigação de instituir instrumentos de realização da justiça e concretização do direito fundamental à tutela jurisdicional efetiva7, em que se consubstanciam os tribunais judiciais. Contudo, o processo judicial não representa o único meio de solução de conlitos. Concomitantemente, coexistem outros mecanismos que concorrem para a composição dos interesses em disputa num concreto conlito, mas que operam fora do cenário judicial, designando-se, por isso, de extrajudiciais8e nos quais poderemos incluir a mediação, a conciliação e a arbitragem.

Face ao exposto, o atual quadro dos meios de resolução de conlitos compreende a atividade jurisdicional exercida pelos tribunais no âmbito de um processo judicial e, bem assim, os mecanismos que concorrem para a composição do conlito de forma extrajudicial e de que são exemplo paradigmático, no hodierno contexto de realização da justiça, a mediação, a conciliação e a arbitragem.

No âmbito do presente estudo cingiremos a nossa análise aos meios extrajudiciais, por constituírem formas reveladoras de inúmeras vantagens

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na resolução dos contemporâneos conlitos inanceiros que entretecem as relações jurídicas entre os agentes económicos e os consumidores, ao nível do fornecimento de bens, da prestação de serviços ou da transmissão de direitos de índole inanceira, mormente bancária. Efetivamente, a atual "sociedade de consumo"9, aliada à democratização do crédito10e à diversiicação e acessibilidade de produtos inanceiros estão na origem de inúmeros conlitos ligados à concessão de crédito, contratos de seguros ou operações relativas a valores mobiliários, cuja solução se revela imperiosa não só para os consumidores afetados, como para as instituições envolvidas.

2. A resolução extrajudicial de conflitos no setor financeiro

Os fatores de surgimento da conlitualidade no sector inanceiro prendem-se reiteradamente com a falta de informação e formação do consumidor relativamente a produtos inanceiros de contornos complexos, com inúmeras variáveis e vicissitudes, de difícil compreensão por parte de um não especialista na matéria e expostos a riscos elevados pela inerente aléa que os caracteriza.

Acresce que, nesta sede, inúmeros conlitos assolam consumidores em situação económico-inanceira difícil, ou mesmo de iminente insolvência, tornando-se premente a sua resolução através de formas extrajudiciais, mais céleres, sem custos acrescidos, que permitem encontrar por acordo a melhor solução para cada cidadão, possibilitando o cumprimento dos seus compromissos, sem periclitar a sua sobrevivência diária e a da família a seu cargo e que não acarretam a estigmatização social ainda inerente ao recurso aos tribunais judiciais.

Neste sentido, a mediação sobrevém como o instrumento de participação das partes na resolução dos seus conlitos, permitindo a obtenção de um acordo que ponha cobro à disputa através do diálogo intercedido pelo mediador imparcial ao conlito. No âmbito inanceiro, a mediação encontra concretização institucional na igura do Mediador do Crédito (que desenvolveremos no ponto seguinte) e consagração legal no Código de Valores Mobiliários (CodVM)11, competindo à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), nos termos do art. 33º, n.1, do referido diploma, organizar um serviço destinado à resolução de conlitos por mediação entre investidores não qualiicados12, por um lado,

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e intermediários inanceiros, consultores para investimento, entidades gestoras de mercados regulamentados ou de sistemas de negociação multilateral ou emitentes, por outro.

O Regulamento 23/2000 da CMVM consagra os procedimentos a adotar no âmbito dos seus serviços de mediação, os quais poderão ser solicitados a este organismo, de forma expressa, pelo investidor não institucional ou associação de defesa dos investidores, descrevendo-se o objeto do litígio, a pretensão e os seus fundamentos e a entidade ou entidades visadas (art. 2º do Regulamento). Após a recepção do pedido de mediação e uma vez designado o mediador, notiica-se a entidade ou entidades visadas para que procedam à sua aceitação ou declinem a submissão do conlito a este mecanismo.

Se a mediação for aceite, o mediador reúne-se informalmente com as partes, por forma a averiguar a possibilidade de acordo prévio e delinear a agenda da mediação. O mediador, se considerar que é possível a obtenção do acordo através de contatos informais, pode prescindir de reunir as partes simultaneamente13(art. 5º, n. 2, do Regulamento). Poderá ainda veriicar-se uma mediação multilateral quando o mediador agregue e trate conjuntamente vários pedidos dirigidos por pessoas com interesses idênticos e homogéneos, sem prejuízo da intervenção, a título principal ou acessório, de associações de defesa dos investidores, tal como prescreve o art. 4º do predito Regulamento.

Os mediadores escolhidos para cada caso concreto são designados pelo conselho diretivo da CMVM, podendo ser pessoas pertencentes aos seus quadros ou personalidades externas de reconhecida idoneidade e competência (art. 33º, n. 2, CodVM).

No que concerne ao papel do mediador no âmbito da CMVM, prescreve o art. 34º, n. 4, do CodVM, que pode ser tentada a conciliação ou proposta às partes a solução que lhe pareça mais adequada, pelo que o mediador poderá assumir uma intervenção mais ativa, não cingindo a sua ação à mera promoção do diálogo, ao contrário da prática corrente no âmbito dos sistemas públicos de mediação14.

O procedimento de mediação está sujeito aos princípios de imparcialidade, celeridade e gratuitidade (art. 34º, n. 1, do CodVM). A conidencialidade constitui, de igual modo, um baluarte fundamental do procedimento de mediação na CMVM, estando o mediador obrigado a guardar segredo relativamente a todas as informações obtidas no decurso da sua atuação e não podendo a CMVM usar em qualquer processo

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quaisquer elementos, cujo conhecimento advenha deste procedimento (art. 34º, n. 3, do CodVM).

O terminus da mediação veriica-se ou com a desistência das partes em qualquer fase do procedimento; ou sempre que o mediador considere fundadamente ser impossível alcançar qualquer transação entre as partes; ou, por último, quando for obtido acordo que colocará im ao conlito (art. 6º do regulamento). O acordo resultante da mediação, quando escrito, tem a natureza de transação extrajudicial, ou seja, contrato estabelecido entre as partes (art. 34º, n. 5, do CodVM)15.

A título de exemplo, o procedimento de mediação da CMVM foi aplicado em 2008 para a resolução de conlitos entre o Banco Comercial Português, S.A. (BCP) e os seus clientes, surgidos entre 2000 e 2001, no âmbito do...

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