Filosofia do Direito, modernidade e religião
Autor | Maria Lúcia de Paula Oliveira |
Cargo | Doutora em Filosofia do Direito. Professora do Programa de Mestrado em Direito (Universidade Cândido Mendes). Procuradora da Fazenda Nacional |
Páginas | 106-126 |
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“Falta ainda muito para que os homens tomados em conjunto, da maneira como as coisas agora estão, se encontrem já numa situação ou nela se possam apenas vir a pôr de, em matéria de religião, se servirem bem e com segurança de seu próprio entendimento, sem a orientação de outrem”. (Immanuel Kant)
É provocante começar um texto que pretende correlacionar filosofia do direito, modernidade e religião nos dias de hoje com uma referência a Kant, particularmente ao seu marcante “O Que é o Iluminismo?”. Kant inicia tal texto, esclarecendo que o iluminismo é saída do homem da menoridade da qual ele mesmo é o culpado, consistindo tal menoridade na incapaci- dade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. O próprio homem seria o culpado por isso, pois não é que lhe falte o entendimento, mas o que ele não teria seria a decisão e a coragem em se servir de si mesmo, não se valendo de tutores, daí resultando não só o preconceito, como a opressão gananciosa ou dominadora. Sair de tal menoridade só seria possível por meio do uso público da razão.
Ora, sem se diminuir a imensa importância do ponto de vista da história das idéias da filosofia kantiana para a secularização da ética, é curioso per-ceber que o diagnóstico kantiano parece ter se perenizado até os nossos dias, particularmente no que tange à importância da religião no contexto da vida do homem no Séc. XXI. Com efeito, ainda que a modernidade tenha trazido, com propriedade, a secularização da filosofia e da ética, é indiscutível a contínua importância da fé e da religião para o homem con-Page 107temporâneo, não se justificando uma postura absenteísta, alguns diriam até desconfortável1 da filosofia em relação à religião. Um diagnóstico pare-cido poderia, me parece, ser feito em relação à filosofia do direito, onde a questão religiosa é sempre afastada, em nome de uma fundamentação laica ou secular. Não se pretende, a toda evidência, uma teologização da filo-sofia do direito ou a remissão de tal saber a bases religiosas. Mas, menosprezar ou diminuir significativamente o papel que a religião tem nas socie-dades complexas do Séc. XXI, não nos parece ser a forma mais adequada de lidar com os próprios fundamentalismos de matriz religiosa já bastante influentes nos dias de hoje.
Três pontos iniciais merecem esclarecimento. Primeiramente, é interessante começar distinguindo as relações possíveis dos filósofos do direito com a modernidade. Em segundo lugar, investigar a correlação entre modernidade e religião. Em um terceiro momento, é interessante nos aproximarmos da discussão filosófica contemporânea acerca da religião e das posições modernas e pós-modernas.
É possível identificar, de forma sintética, três formas distintas da filo-sofia do direito lidar com a herança da modernidade. Há aqueles que, sau-dosos da forma antiga de pensar, pretendem um retorno aos clássicos da Antiguidade, mas avaliando negativamente a contribuição da modernidade filosófica, particularmente no que tange à laicização da filosofia do direito e da ética. Para estes, do ponto de vista da filosofia do direito, nada mais restaria do que voltar a um referencial de matriz teológica, ainda que racionalista, como por exemplo, a tradição tomista2. No outro extremo, poderíamos encontrar os pós-modernos, que pretendem que a herança da modernidade está superada. Para os pós-modernos, a busca de uma fundamentação racional, nos moldes dos ideais iluministas é algo insustentável. Do ponto de vista da filosofia do direito, tal posição resulta num relativismo e na negação da questão do fundamento do direito, visto sempre como resultado de uma contingência política e econômica. Assim, Gianni Vattimo, a partir de Nietsche e Heidegger, afirma que a proclamação do fimPage 108da metafísica implica no abandono de qualquer tentativa de fundamentação3. Na filosofia do direito, tais teorias conduzem a uma relativização da fundamentação moral do direito, com valorização dos aspectos políticos e contextuais.
Entre esses dois extremos, a filosofia do direito floresce sob o impulso da valorização da fundamentação moral do direito, sob a inspiração kan-tiana. Dando conta da mudança de paradigma da filosofia da consciência para a filosofia da linguagem, a filosofia do direito do Séc. XX conseguiu, sem abandonar o projeto emancipatório do Iluminismo, rever tal projeto, incorporando os contributos da mudança para uma ética dialógica, não mais fundada no sujeito, mas na comunicação. É inegável como a teoria liberal (Rawls, Dworkin, por exemplo), a teoria democrática de Habermas, dentre outras importantes contribuições, trouxeram uma inflexão pode-rosa para o pensamento jus-filosófico de hoje. A proposta é a busca de uma fundamentação moral para o direito, proposta essa que se opõe à forte tradição do positivismo jurídico, avessa a ela.
No que tange à correlação entre modernidade e religião, normalmente se associa a modernidade ao processo de secularização, o que numa apreciação precipitada poderia significar o estabelecimento de uma oposição entre o projeto da modernidade e a religião. Numa avaliação mais cuida-dosa, porém, se verificará que: a) historicamente, é possível afirmar que foi o próprio cristianismo que plantou as bases da secularização da política e da ética; e 2) o pensamento habitualmente associado ao projeto iluminista, não é, em grande parte, ateu ou preconiza o fim da religião ou de Deus – pelo contrário, são os críticos da modernidade que normalmente defendem teses deste tipo. Passaremos a desenvolver estes dois pontos.
Charles Larmore começa um texto acerca do mundo moderno e da religião, afirmando que “Deus é tão bom que não precisa existir”4. Com tal assertiva, pretende ele esclarecer o que estaria subjacente no processo de secularização que caracterizou a sociedade moderna. É devido à transcendência divina, por meio da qual Deus foi posto acima das coisas finitasPage 109e do nosso uso para fins cognitivos, que o domínio da moralidade aban-dona sua fundamentação no religioso. Duas importantes conseqüências poderiam ser tiradas desse processo, como nos lembra Larmore: a) esse processo teria sido trilhado no próprio monoteísmo judaico-cristão; b) isso implicaria que a autonomia da ciência e da moralidade não traria o desaparecimento da experiência religiosa. Com relação ao primeiro desses pontos, é bom lembrar a famosa tese weberiana de que o protestantismo calvinista (com seu ascetismo interiorizado) estaria na base da cultura moderna, que Larmore pretende seja possível generalizar quando afirma que a transcendência de Deus teria levado à sua “retirada” deste mundo. Com relação ao segundo ponto, Larmore lembra que o fato de que a religião não mais tem a função de prover as explicações últimas para a natureza ou para as justificações da moralidade, não significa que tenha se excluído a possibilidade de que ainda se possa achar em Deus uma insubstituível fonte para o sentido de nossas vidas5. É possível que tal secularização tenha permitido que a experiência religiosa finalmente tenha vindo a ter seu ver-dadeiro significado, a partir do momento em que se deixou de apelar ao divino para explicar os fenômenos da natureza ou justificar a moralidade. Do ponto de vista sociológico, de outro lado, lembra-nos Habermas que:
Numa perspectiva sociológica, é possível dizer, inclusive, que as formas de consciência modernas relacionadas com o direito abstrato, a ciência e a arte autônoma, que gira em torno do quadro profano, não poderiam ter-se desenvolvido sem as formas organizacionais do cristianismo helenizado e das igrejas cristãs, sem as universidades, os conventos e as catedrais. E isso vale especialmente para as estruturas mentais6.
Fica evidenciado, portanto, que o projeto iluminista não precisa ser, e talvez não seja, necessariamente ateu, sem que com isso a emancipação da razão humana se tenha inviabilizado7. E isso fica muito claro quando os críticos da modernidade filosófica começam a dirigir suas baterias contra a religião. Veja-se, por exemplo, a crítica marxista ou ainda, principalmente, as referências à morte de Deus por Nietszche.
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Sedimentou-se nos debates filosóficos contemporâneos a menção a uma série de filósofos, que não só são chamados de pós-modernos, mas que admitem explicitamente tal designação. Gianni Vatimo, um dos principais filósofos italianos, se insere neste grupo. Em geral, o chamado pen-samento pós-moderno é antimetafísico, tendo como referência importante Nietszche e Heidegger. A relativização e contextualização do pensamento são uma das tônicas, bem como uma afirmação de que o ideário da modernidade já estaria superado. Uma das marcas é a valorização da estética, decorrente da diluição das distinções que marcam a herança iluminista (ciência, moral e arte não seriam, como se teria apresentado a partir de Kant, domínios ou esferas distintas).
Em obra que já se tornou referência para os debates acerca da religião, Vattimo pretende esclarecer o que seria uma fé cristã pós-moderna. Evi-dentemente, o Deus de tal fé não é aquele das certezas metafísicas, mas “o Deus do livro”, um Deus que não “existe” como uma realidade objetiva fora do anúncio de salvação que, de formas historicamente mutáveis e predispostas a uma contínua reinterpretação por parte da comunidade de crentes, nos foi feito pela Sagrada Escritura e pela tradição viva da Igreja”8...
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