A fenomenolgia da comunicação no direito tributário: o crédito tributário como produto da comunicação

AutorAna Paula Gomes Nardi
CargoPós-Graduada em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário. Mestranda em Direito Tributário pela PUC/SP.
Páginas71-85

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1. Introdução

Este artigo pretende abordar o momento da constituição do crédito tributário, com fundamento na "ciência-consciência" dos sujeitos ativo e passivo, partindo da Teoria da Linguagem. Para a consolidação do raciocínio, propõem-se uma evolução histórica, estabelecendo um paralelo entre a visão do mundo para a ciência física e a visão do direito para a filosofia do ser, da consciência e da linguagem, passando pelo movimento do giro-linguístico.

Algumas questões impulsionam o pensamento, dentre as quais: qual é a função da mensagem na comunicação? A mensagem deve coincidir com a realidade? Que mensagem representa o conteúdo mínimo e suficiente para a constituição do crédito tributário? Esta mensagem permite a identificação do termo a quo no qual se instaura a relação intersubjetiva? Há que se falar em definitividade? A ciência das partes é relevante? E a anuência? São estas as questões que permeiam o desenvolvimento deste trabalho.

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2. A realidade-em-si: concepções sobre o mundo1

Para chegarmos à concepção do mundo sobre a filosofia da linguagem, convém mencionarmos a evolução das concepções do homem sobre mundo, de forma a pontuar as mudanças de paradigma firmados no decorrer do tempo. Neste sentido, fazemos estas breves considerações.

Estabelecendo um paralelo, assim como o sistema jurídico, no que se refere à hermenêutica vinculada à literalidade textual, a visão do mundo pelo homem passou por inúmeras fases.

Até o século XVI, o homem enxergava o mundo sob uma perspectiva holística, enquanto sistema completo - orgânico, vivo e espiritual -, predominando pensamentos de integração e cooperação, voltados a questões referentes a Deus, a alma humana, à ética. Predominavam a filosofia aristotélica e os valores da igreja (Tomás de Aquino): comunidades pequenas e coesas, integradas à natureza orgânica. Respeitava-se a ordem natural das coisas, o TAO da ciência chinesa.

Os fenômenos materiais-naturais e os fenômenos espirituais eram eventos interdependentes, harmonizando-se a identidade individual (fenômenos espirituais) e o meio ambiente (fenômenos naturais). A ciência na Idade Média, "baseava-se na razão e na fé, sua principal finalidade era compreender o significado das coisas e não exercer a predição ou o controle".2Neste sentido, o mundo era visto sob uma concepção egocêntrica: a terra como o centro do universo e o homem como o foco principal da criação divina.

Posteriormente, Copérnico defendeu a filosofia do domínio e do controle da natureza pelo homem. Galileu conseguiu comprovar cientificamente a teoria de Copérnico, de acordo com uma concepção heliocêntrica, segundo a qual a terra não seria mais o centro do universo, mas apenas um dos planetas em meio a um imenso número de outros planetas. Combinando a experimentação científica e a linguagem matemática, Galileu formulou as "leis" da natureza.3O foco da ciência voltou-se à matéria, a fim de medi-la e quantificá-la. O mundo poderia ser "medido, quantificado, fragmentado, estudado por partes, a fim de se dominar o todo".4Os aspectos sensoriais e intuitivos do homem foram desconsiderados. O mundo passou a ser visto e investigado enquanto máquina fragmentária e não enquanto organismo completo e integrado - visão holística. A metodologia de estudo através da fragmentação ou do reducionismo do objeto promoveram grandes descobertas no século XVII e são critérios utilizados até hoje para estudo nas mais diversas ciências humanas e sociais.

O crescimento da crença no domínio humano em face da natureza e da subserviência desta em face do homem potencializou a filosofia cartesiana,5na qual o homem poderia conhecer o mundo "por completo" (a certeza completa), através da redução dos fenômenos

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naturais a fórmulas matemáticas, verificáveis através de cálculos (prevalência da mente - res cogitam - sobre a matéria - res externa).

Isaac Newton, por sua vez, promoveu uma revolução científica ao sintetizar os estudos de Copérnico (concepção heliocêntrica) e Kepler (movimento planetário), de Bacon (método empírico indutivo), de Galileu (redução a leis matemáticas, com foco na matéria) e de Descartes (experimentação científica e dedução à geometria analítica). Através do cálculo diferencial, Newton propôs uma descrição do movimento de corpos sólidos, através da Força da Gravidade.6Combinando os métodos de Bacon e de Descartes, Newton concluiu que "tanto os experimentos sem interpretação sistemática quanto a dedução a partir de princípios básicos7sem evidência experimental não conduziriam a uma teoria confiável".

A concepção newtoniana,8da Física Clássica, prelecionava uma visão mecanicista do universo, com rigoroso determinismo. O universo formado por átomos - estruturas irredutíveis - que pode ser previsto com absoluta certeza através de leis matemáticas exatas. Nesta concepção, o observador, ser humano e suas percepções sensoriais foram completamente ignorados. O mundo existia além e aquém do ser humano.9O ser huma- no - observador - corresponderia a apenas mais um elemento do mundo do ser. Mundo e Intelecto (Conhecimento) não interagiam. O real existia além da linguagem e independente desta. Uma visão de mundo finito, controlável e previsível. Mundo como máquina, como engrenagem finita, que - se reduzida a equações matemáticas - torna-se previsível e controlável. A concepção evolucionista do mundo, neste momento histórico, era ignorada pela ciência.

A noção de evolução constante do mundo surge no século XIX, com os estudos da geologia, que concluíram no sentido de que a terra no seu estado atual é resultado da atuação de fenômenos naturais ao longo de grandes períodos de tempo. A terra estaria, portanto, em desenvolvimento contínuo, contestando a noção primária de uma criação divina em sua integralidade. Passou-se a acreditar em uma recriação contínua,10em um desenvolvimento e evolução constante. O universo estaria voltado à ordem e à complexidade crescentes.

Feitas estas considerações, é possível identificar uma evolução na visão do mundo, passando da concepção egocêntrica para a concepção heliocêntrica; da concepção holística para a concepção mecanicista; da concepção de "natureza e espírito" para uma concepção de mundo e "intelecto" enquanto entes independentes, na qual a natureza é

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uma grande engrenagem, finita, controlável e previsível através dos cálculos matemáticos. Esta concepção finita evoluiu para uma concepção evolucionista, dando ensejo às primeiras noções de incompletude e de imprevisibilidade. As noções de continuidade e de complexidade crescente do mundo provocaram uma mudança na previsibilidade do mundo já que, obviamente, não seria possível prever fenômenos naturais em constante mudança e evolução. Restaria algum aspecto não previsto. O cálculo estaria sempre aquém do requerido pelo fenômeno natural.

Em paralelo, a hermenêutica jurídica também passou por fases semelhantes, que contemplam a visão do direito enquanto instituto que deve ser "justo" - como se a justiça consubstancia-se o objeto máximo do sistema e como se a "justiça" fosse um valor a ser atingido - a hermenêutica do direito segundo a literalidade do texto, ignorando a presença do interlocutor observador, momento no qual considerava-se uma essência imanente ao texto de direito positivo. Neste período, entendia-se a literalidade enquanto determinação proposta pelo texto de lei, desconsiderando qualquer subjetividade na aplicação do direito. E no período moderno e pós-moderno, com o advento do giro-linguístico11e a Filosofia da Linguagem este paradigma foi alterado novamente, de forma a integrar o intérprete no processo de positivação e aplicação do direito, considerando-o peça fundamental para o manejo dos institutos jurídicos, de forma a atingir as condutas intersubjetivas, cumprindo a função do direito enquanto objeto cultural.12REVISTA DE DIREITO TRIBUTÁRIO-122

3. O conhecimento como pressuposto da realidade - Da filosofia do ser à filosofia da consciência e desta à filosofia da linguagem

A realidade e a existência (realidade-em-si), na Física Clássica, confundiam-se, como institutos idênticos. A noção de realidade compreendida não existia. Considerava-se apenas a realidade-em-si, alheia à compreensão humana. Com o advento da Física Moderna e da Física Pós-Moderna, a previsibilidade converteu-se em probabilidade e a estabilidade converteu-se em progressividade. A Filosofia do Ser passou à Filosofia da Consciência e, posteriormente, à Filosofia da Linguagem.

Nas palavras de Fabiana Del Padre Tomé, "A teoria do conhecimento, originalmente, centrava-se no estudo da relação entre sujeito e objeto, fazendo-o a partir do objeto (ontologia), do sujeito (gnosiologia) ou da relação entre ambos (fenomenologia). Com base na filosofia da consciência, via-se a linguagem como instrumento que ligava o sujeito ao objeto do conhecimento, sendo a verdade resultado da correspondência entre a proposição linguística e o objeto referido".13Para Villem Flusser, filósofo da Teoria da Linguagem (ênfase na linguística), aquilo que a língua é capaz de organizar para o nosso conhecimento, é realidade. Aquilo que não pode ser constituído em língua não é realidade.

A Teoria da Linguagem aponta para a perspectiva sob a qual o objeto será analisado. É possível aproximar-se do objeto, considerado como o dado bruto, a coisa em si, palpável, tangível, e neste caso estaremos na filosofia da linguagem por correspondência e

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é possível visualizar a teoria da linguagem sob a...

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