Federação e guerra fiscal à luz dos Tribunais Superiores

AutorMaria Rita Lunardelli
Páginas20-37

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Maria Rita Lunardelli - De imediato, eu já vou passar a palavra à professora Misabel, que é Professora Titular de Direito Tributário da Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG e das Faculdades Milton Campos; Doutora em Direito Público pela UFMG; Membro da. Fondation deFinance Publique e ex-Presidente da Associação Brasileira de Direito Tributário, que nos brindará com a palestra "Guerra Fiscal do ICMS e a Proposta de Súmula Vinculante 69". Professora Misabel, muito obrigada pela presença, e tem a palavra.

Guerra Fiscal do ICMS e a Proposta de Súmula Vinculante 69

Misabel Derzi - Eu é que agradeço o convite para estar aqui, no Instituto IDE-PE-Geraldo Ataliba, do qual tenho a honra de participar. Quero saudar a todos os que aqui se encontram, a doutora Maria Rita Lunardelli, o querido professor, jurista e colega Roque Carrazza, sempre brilhante nas suas intervenções. O tema que me coube foi exatamente a questão da "Guerra Fiscal e a Proposta de Súmula Vinculante 69" do STF. Bem, a questão toda de fundo versa sobre federalismo e, agora, crise do federalismo brasileiro. Desejaria realçar àqueles que estão presentes um aspecto da questão federativa que muitas vezes fica na sombra, mas que tem relação direta com a questão da guerra fiscal.

O federalismo, sobre ele já se falou tanto e já se deram várias conceituações e definições. Resumidamente, nós podemos dizer, plagiando autores alemães, que o federalismo é um Estado composto de outros Estados, entre aspas. Falamos de autonomias que se integram para compor um único Estado. Mas é um conceito em contínua transformação histórica. E temos que fazer um esforço enorme para compreender os fenômenos da nossa ordem política e social, na atualidade. Não vou me alongar sobre esses aspectos conceituais do federalismo, porque nosso tempo é curto para falar sobre a proposta de súmula vinculante e as soluções relativas à guerra fiscal.

O federalismo é visto como meio de se preservar a diversidade, a cultura, a realidade socioeconómica das comunidades locais e regionais. É visto como uma proteção das minorias políticas. E funciona, muitas vezes, exatamente como proteção dessas minorias. E visto - e muitos juristas se dedicam ao tema seguindo a tradição da doutrina social católica - como a forma de Estado que melhor realiza a eficiência, por meio do princípio da subsidiariedade. O federalismo é, ao mesmo tempo, promotor da liberdade, da democracia e da eficiência, por essa razão. Porém, o que é que ele supõe, exatamente? Ele supõe integração. Aliomar Baleeiro sempre realçou, na sua obra Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar, o princípio constitucional da integração político-territorial, de mercado, sobre o qual se fala pouco no constitucionalismo brasileiro. Temos autonomias relativas no que tange aos Estados Federados e aos Municípios, que se integram necessariamente em um mercado único em um território único. Romper o federalismo coloca em risco algo da maior preciosidade para nós, que é a integridade nacional e a integridade do mercado. Quando os Estados Federados se debruçam na guerra fiscal não se pode esquecer desse fenômeno, para o qual devem estar voltados e que interessa a

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todos, Estados pobres e ricos da Federação Brasileira. Nós temos, assim, que o federalismo, quando funciona bem, repousa - todos nós sabemos - na aliança entre os Estados Federados; repousa na lealdade, na solidariedade e na reciprocidade entre os entes políticos da Federação. Isso é o que está fallante entre nós.

Muitas vezes os Estados mais ricos nesse mercado integrado supõem que não precisam dos Estados mais pobres. Mas onde está o grande mercado consumidor paulista? Além de estar internamente, ele está nos outros Estados da Federação Brasileira. A integração de mercado, o mercado único, sem barreiras alfandegárias - á Constituição as proíbe -, por livre circulação direta de mercadorias, pessoas, atividades e serviços, favorece a formação de um mercado consumidor. G que seria da riqueza de São Paulo e Minas Gerais sem esse mercado consumidor nacional? Então, vamos ouvir, vamos prestar atenção nesse fenômeno, ou seja, nessa hora das trocas: os Estados mais pobres da Federação Brasileira - Norte, Nordeste e Centro-Oeste - sempre se queixaram, é uma queixa histórica, de que o ICMS, nas operações interestaduais corre para os Estados mais ricos. Nós sabemos muito bem que o ICMS é considerado, do ponto de vista econômico, como um tributo indireto, que, se obediente aos princípios da Constituição para que seja neutro e não pese sobre as empresas, deve ser custeado e pago pelo consumo das famílias. E, na balança comercial de compras e vendas entre os Estados da Federação, São Paulo tem uma balança superavitária, porque é um Estado produtor que mais vende para os demais Estados do que deles compra. Minas Gerais tem balança superavitária, porque mais vende para os demais Estados da Federação do que deles compra. Então, são Estados que têm uma responsabilidade nesse olhar, olhar para os demais Estados. No mundo inteiro se pratica o imposto cobrado no destino, porque se entende que são as famílias, os cidadãos - enfim, o consumidor -, que custeiam o tributo. De modo que os Estados mais pobres sempre se acharam injustiçados pelo fato de o ICMS paulista ser custeado por eles, por seus consumidores, ao final das contas, em razão dessa balança superavitária. Nunca resolvemos convenientemente este problema.

Os Estados mais ricos não têm o espírito solidário que deveriam ter. Eu não estou falando só de São Paulo. Já ouvi grandes juristas sustentarem que, nessas operações interestaduais, o ICMS tem que correr mesmo para o Estado da origem, e que não tem que haver mudança. Porque São Paulo concentra a maior riqueza do País. Pura verdade. E que, portanto, o IR arrecadado pela União é basicamente arrecadado no Estado de São Paulo. Verdade? Verdade. Não obstante, quero trazer à sua consideração o seguinte: todos nós devemos ser solidários. E as dívidas paulistas, renegociadas com a União, tanto do Estado quando do Município de São Paulo, que são as maiores do. País, estúpidamente maiores, são financiadas por todos nós, inclusive pelos nossos concidadãos pobretões dos Estados mais pobres da Federação. Portanto, este argumento não se sustenta.

Observem que a luta por um mercado consumidor integrado é a luta para o progresso. A União Européia se esforçou no pós-guerra durante 50 anos para implementar o quê?.Um mercado integrado. Daí a pujança - hoje, um pouco abalada - da economia. Mas os Estados Unidos da América do Norte cuidaram sempre de ter um grande mercado interno. E têm. Mas, não satisfeitos, aproximaram-se do Canadá, do México, na ALCA. E mais: aproximam-se, agora, da União Européia. E nós, brasileiros, com um mercado interno integrado maravilhoso, somos incapazes de mantê-lo - eu estou incluindo Minas também nisto, para não dizer que eu estou, aqui, pregando contra os interesses de São Paulo. Nós somos incapazes de cuidar dos nossos consumidores em geral? Somos incapazes de enxergar que os Estados mais pobres

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têm uma grande dificuldade no campo da infraestrutura, pela grande desigualdade socioeconómica, no campo da logística, no campo dos transportes e da educação e da mão de obra qualificada?

Os Estados mais pobres da Federação Brasileira, ao fazerem guerra, acham-se no exercício de um direito de sobrevivência. Por isso, ali se instala aquilo que no Brasil se chama "guerra' mas que, na verdade, é a competição fiscal. Que não é nenhuma peculiaridade nacional. O mundo inteiro está em competição fiscal. Ela existe internacionalmente, ela é gravíssima no campo internacional. Gravíssima. Mas, internamente, assume essas características perigosas, de risco de desintegração.

Por que o Estado de São Paulo, que é muito mais rico do que os demais Estados da Federação, deveria ficar preso a um País com mercado integrado? Por que ele deveria ouvir o que nós estamos a lhes dizer - e que, de certa forma, o professor Paulo de Barros também cobrou? Porque ao Estado de São Paulo interessa o mercado que gera a sua riqueza. Ao Estado de São Paulo interessa essa integração, esse mercado integrado.

Então, nesse contexto, em que os Estados mais pobres da Federação se acham no direito de praticar uma guerra fiscal, é que surgiu a proposta de Súmula Vinculante 69 do STF, cujo enunciado diz o seguinte: "Qualquer isenção, incentivo, redução de alíquota ou de base de cálculo, crédito presumido, dispensa de pagamento ou outro benefício fiscal relativo ao ICMS, concedido sem prévia aprovação em convênio celebrado no âmbito do CONFAZ, é inconstitucional". Bom, a proposta de súmula vinculante não diz mais nada. E poderia? Não. Porque os casos que chegaram ao STF só obtiveram isso. Não se pode fazer uma proposta, uma súmula vinculante criativa. Toda súmula está presa aos precedentes que levaram ao seu enunciado. O STF nunca fez mais nada do que isso. Ou seja: declarar a inconstitucionalidade desse procedimento de concessão de benefícios em geral à revelia do CONFAZ. Nunca decidiu sobre os efeitos - até se pode questionar: declarar a inconstitucionalidade significa nulidade? O STF está cansado de fazer declaração de inconstitucionalidade sem nulidade. Até isso se pode questionar. Quais seriam as conseqüências? Nós sabemos que o art. 8º da Lei Complementar 24/1975, a respeito de glosa de créditos etc, não tem viabilidade e eficácia, porque ele é contraditório e não resolve o problema. E o STF, embora sistematicamente tivesse declarado inconstitucionais esses benefícios fiscais à revelia do CONFAZ, nunca avançou além da declaração de inconstitucionalidade. Então, tudo continua do mesmo modo.

Do ponto de vista jurídico, claro que uma súmula vinculante facilita reclamações por parte dos Estados, em um processo muito mais rápido, diretamente ao STF, se houver novo procedimento inconstitucional por parte do outro Estado concedente do benefício, de forma irregular. Eventualmente, pode ser que...

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