Famílias homoafetivas e sucessão mortis causa

AutorCarlos José Cordeiro/Josiane Araújo Gomes
Páginas67-82

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Introdução

Viver em família consistiu, desde tempos imemoriais, mais do que uma opção: foi um modo (ou o modo) de sobreviver. Famílias agregadas, que uniam ascendentes, seus descendentes e respectivos companheiros formaram agrupamentos humanos essenciais para a sobrevivência a agruras climáticas, disputas por território, busca de alimentação. Linguagem e trabalho foram os dois grandes instrumentos de diferenciação humana dos demais animais, e isso somente se acelerou pela vida social agrupada. Freud indica que o homem primitivo descobriu que o trabalho era um instrumento de alteração das suas relações com os meios naturais de subsistência, e nesta descoberta cresceu a importância do ‘outro’, como um companheiro de trabalho2. É fácil deduzir que essa correlação com os outros foi um grande combustível para o desenvolvimento da linguagem.

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A espécie humana, assim, expandiu-se e predominou graças ao fato de que o ser humano adaptou-se às variadas condições naturais, ajustando-as aos seus próprios fins vitais, o que fez recorrendo a práticas cooperativas para a sobrevivência, nas quais se destacou o desenvolvimento cooperativo de instrumentos de trabalho3.

Por consequência, a preocupação com a formação de casais, que estabelecessem relações conjugais prolíficas – a descendência era essencial – e, ao mesmo, estáveis temporalmente, esteve no bojo das relações sociais primitivas e assim continuou por milênios. Somente nos últimos séculos, especialmente com a consagração do capitalismo, as relações familiares começaram a ganhar importância diversa nas relações sociais. Isso se deu em grande parte porque as sociedades foram gradativamente ganhando contornos mais complexos, com convivências mais pulverizadas e modos de vida e sobrevivência cada vez mais despregados das relações familiares.

É fato, no entanto, que as sociedades humanas foram historicamente se ampliando quantitativamente (geográfica e demograficamente) e suas inter-relações foram se tornando mais complexas, de forma que as regras de convivência igualmente foram ganhando maior quantidade e complexidade. Nos últimos três séculos, em que se consagrou uma separação entre religião e Estado, o Estado laico passou a operar como efetivo núcleo das relações finais de poder e como pretenso centralizador da solução dos principais conflitos interpessoais e interinstitucionais. Isso, em muito, se deu e se dá por meio do Direito, enquanto conjunto normativo regulador dos conflitos referidos.

Houve a consagração do entendimento de que o conjunto de regras jurídicas estaria ordenado de tal modo que se caracterizaria como um sistema – o sistema jurídico. Pode-se colocar como crescente, nas últimas décadas, a concepção de que o Direito consiste num sistema jurídico (normativo) axiológico e teleológico4. As normas jurídicas, dentro do sistema jurídico, traduzem valores superiores (por meio dos princípios) e valorações específicas (por meio das diversas regras de conduta, procedimento e forma).

Há uma vinculação normativa de diversas áreas aos valores superiores. Assim se dão, no essencial, as relações do Direito das relações privadas ao sistema jurídico, especialmente por meio da sua vinculação às normas constitucionais. O

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Direito de Família e o Direito das Sucessões, que tratam de forma mais estreita das relações conjugais, estão vinculados a princípios jurídicos gerais que indicam os valores superiores do sistema (num plano geral) e a princípios jurídicos específicos que indicam os valores superiores para as relações jurídicas.

Dentre os valores constitucionalmente consagrados, especial importância tem a dignidade da pessoa humana, consagrada no art. 3º da Constituição Federal, do qual decorre que todos os seres humanos devem ser preservados em sua condição de humanidade, resguardando-se para tanto sua dignidade de existência no mundo, com ênfase na liberdade e na igualdade. Essa fundamentação valorativa perpassa e fundamenta todo o Direito, não sendo diferente com as questões familiares e sucessórias.

1 Família e relações conjugais

As relações conjugais foram, historicamente, consagradas como relações entre um homem e uma mulher. Embora existam relatos de práticas homoafetivas desde períodos remotos da antiguidade, estas foram culturalmente colocadas à margem das relações sociais incorporadas, ou ao menos não eram trazidas a lume com constância. Seguramente, essa priorização das relações heteroafetivas no discurso corrente significa mais do que a predominância da heteroafetividade – inegável –, mas também a preocupação em se preservar a matriz das relações sociais: a matriz reprodutiva.

É perceptível, porém, que nas últimas décadas os discursos têm se modificado pouco a pouco e são cada vez mais permeados pela lógica da inclusão e do respeito à diversidade. O foco passa a ser menos o modelo de família e mais a entidade familiar que é construída entre parentes e cônjuges. Assim, a família é revalorizada no discurso jurídico.

Mas, o que é família? Essa definição envolve parentesco e afinidade. Por um lado, trata-se de reunião em (con)vivência direta de pessoas ligadas por um tronco ancestral comum. Por outro, envolve a (con)vivência por afinidade entre cônjuges (casados ou unidos estavelmente) e, quando for o caso, de agregados (sobrinhos, por exemplo). Podem-se ter pais e filhos ou apenas um dos pais e os seus filhos reunidos em família5.

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Sob o ponto de vista da entidade familiar, do núcleo de vivência comum, a família é o núcleo de (con)vivência entre pessoas ligadas pelo parentesco de ascendência e/ou pela afinidade, em busca de mútuos cuidados, assistência e co-responsabilidade.

As famílias podem ser conjugais ou monoparentais (embora existam famílias pluriparentais). Estas consistem na reunião em (con)vivência de um ascendente com os seus descendentes. Já as conjugais consistem na reunião familiar de um casal (com seus filhos ou não). Interessam em especial ao tema aqui abordado as famílias conjugais.

Uma família conjugal se constitui, fundamentalmente, por meio de três formas, duas legitimadas pelo Direito e uma forma ilegítima: casamento, união estável e concubinato.

O casamento, forma de constituição familiar consagrada cultural e juridicamente há milênios, define-se como um contrato sui generis, lavrado por instrumento público, entre duas pessoas capazes de consentir, pelo qual os contratantes estabelecem o vínculo conjugal de convivência. Quanto ao aspecto capacidade, há situação consistente na possibilidade singular de autorização para o casamento em caso de gravidez de menor de dezesseis anos (art. 1.520 do Código Civil), que não afeta, por sua excepcionalidade, a definição geral.6Já a união estável consiste em estabelecimento de vida em comum, conjugal, independente de existência ou não de contrato escrito. Seus requisitos de caracterização são, nos termos do art. 1.723 do Código Civil, “convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família”.

Essas duas formas de constituição das famílias são juridicamente consagradas como lícitas, em virtude das proteções conferidas pela Constituição e pelo Código Civil, e protegidas pelo Direito, em virtude de serem base da existência de entidades familiares.

Já o concubinato configura-se, se não como fato ilícito, ao menos como uma relação ilegítima perante o direito. O art. 1.727 do Código Civil é claro: constitui concubinato a relação não eventual entre um homem e uma mulher. Trata-se, assim, de uma prescrição de caráter negativo.

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Quanto à caracterização do concubinato como fato ilícito, cabe ressaltar que os fatos humanos ilícitos são aqueles que geram danos materiais ou morais a outrem dando causa à busca de reconstituição do status quo ante, ou de uma compensação pela impossibilidade de tal reconstituição da realidade prejudicada. Nesse sentido, o concubinato, em face do concubino desimpedido, não pode ser identificado como ato ilícito, pois não produz, por si só, danos materiais ou morais. O próprio adultério, aliás, não gera por si só tais danos, que devem ser avaliados pela violação de direito de personalidade7.

Entretanto, não se o pode colocar o concubinato como relação acolhida pelo Direito. Pelo contrário: o Direito o trata como relação ilegítima e não protegida. Se não há sanção ínsita ao concubinato – até porque a condição concubinária pode ser desconhecida por um dos concubinos – os efeitos decorrentes da caracterização de uma relação amorosa como concubinato são negativos, desfavoráveis aos amantes.

Ao colocar o concubinato como relação ilegítima, afasta-se, a princípio, reconhecimento de direitos previdenciários, alimentares e, especialmente, sucessórios. Não se deve desprezar, no entanto, que o concubinato de fato serve, por vezes, à existência de entidades familiares felizes e longevas, o que possibilita, diante do caso concreto, o reconhecimento de alguns direitos.

2 Casamento e união estável homoafetivos

Parte-se das formas válidas para constituição de família – casamento e união estável – para se verificar socialmente que as práticas familiares e os modelos de configuração das entidades familiares são muito diversos. Tem-se famílias conjugais tradicionais (pai, mãe e filhos), famílias conjugais sem prole, famílias monoparentais e até famílias pluriparentais (estas de discutível aceitabilidade jurídica).

Instigante questão, porém, tem sido debatida nos meios jurídicos nas últimas duas décadas: se é ou não aceitável enquadrar-se as relações homoafetivas como constituidoras de entidade...

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