A família na Constituição Federal de 1988 Uma instituição plural e atenta aos direitos de personalidade

AutorJoyceane Bezerra de Menezes
Páginas119-129

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1 Introdução

O Estado Brasileiro sempre dedicou importância a esta instituição, muito embora por longo período haja reconhecido apenas a família matrimonial. 1 A Constituição de 1988 não adjetivou a família, mas lhe dedicou tratamento constitucional mais extensivo, vez que expandiu os efeitos jurídicos da família legítima para além da família matrimonial. Mas quais seriam os contornos da família objeto da proteção constitucional? Confinam-se aos modelos citados nos parágrafos do art. 226?

A dignidade da pessoa humana é o epicentro das normas constitucionais, o sustentáculo dos direitos fundamentais e a base dos direitos de personalidade. A pessoa, compreendida na lógica kantiana - como um fim em si mesmo -, dotada de dignidade e não de preço, passa a ser o centro Page 120 das instituições e não mera peça de sua composição. Nesta medida, a família é traduzida como uma comunidade de afeto, usando a locução da psicanálise, lócus do desenvolvimento e amparo da pessoa; é uma instituição a serviço da formação e bem-estar da pessoa e não o contrário. O direito de personalidade à autodeterminação ético-existencial do sujeito também não pode ceder a um modelo único de estrutura familiar, haja vista que é permitido ao cidadão o seu próprio planejamento familiar. Não cabe ao Estado dirigir a conduta do cidadão para este ou aquele modelo familiar, pois esta decisão envolve aspectos de sua autonomia ético-existencial.

Sendo o Brasil um estado laico, que consagra o pluralismo, o respeito à diversidade e a autonomia da pessoa, não é coerente que a ordem infraconstitucional estabeleça modelos ideais de família, excluindo outros já existentes no cenário social. Uma vez reconhecida a autonomia da pessoa na formação da sua família e a natureza sócio-cultural desta, o ordenamento jurídico terá de reconhecerlhes os efeitos apesar dos matizes com as quais se apresentar. Importa destacar o vínculo afetivo e o reconhecimento de pertença dos membros ao grupo por eles designado como família.

Para responder o questionamento acima, identificando a extensão do conceito de família na Constituição Brasileira de 1988, partir-se-á da hipótese de que a família possui uma natureza sócio-cultural e de que o tratamento jurídico dispensado pelo legislador brasileiro ao instituto vem transitando da perspectiva da instituição para a perspectiva da pessoa. É exatamente quando o centro da família se firma na pessoa, na figura do membro, que a organização familiar revela a sua função humanizante, cujo motor propulsor é o afeto e a solidariedade. A família promove o desenvolvimento da personalidade dos seus membros e o planejamento familiar é da livre decisão da pessoa. Assim, com ênfase na função humanizante e no afeto, outros modelos de organização familiar poderão ser considerados destinatários da proteção constitucional. A família homoafetiva, a família anaparental e a família concubinária seriam exemplos de modelos familiares que não cabem na moldura jurídica infraconstitucional atualmente existente.

2 Família matrimonial - apenas um modelo

A família corresponde a um núcleo social primário disciplinado constitucionalmente em capítulo específico, no Título da Ordem Social e em alguns dispositivos esparsos. A proteção deferida à família pelo Estado se funda na importância que este grupo social desenvolve na formação psicossocial do indivíduo. É na família que a pessoa recebe as primeiras orientações para a vida coletiva e é neste organismo que os atos de solidariedade e de ajuda mútua acontecem mais recorrentemente. Não sem razão, a família tem deveres constitucionais, como o de assegurar às crianças a sociabilidade, a educação básica e a saúde, bem como o de proteção e cuidado com a pessoa do idoso.

O caput do art. 226 dispõe que: " A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado ." Nos parágrafos que se seguem ao caput, há referências a modelos específicos de família: os parágrafos primeiro, segundo e sexto, fazem alusão ao casamento; o parágrafo terceiro anuncia o reconhecimento da união estável entre homem e mulher como entidade familiar e o parágrafo quarto dispõe sobre a família monoparental, formada por um dos pais e seus descendentes. A doutrina civilista mais conservadora defende que apenas estes seriam os modelos de família admitidos pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Anteriormente à Constituição Federal de 1988, apenas a família matrimonial tinha o reconhecimento e a proteção do Estado. Embora as demais organizações familiares não tivessem existência jurídica, palpitavam na vida social, sendo alvo da discriminação e da negação da religião e do Estado. No plano social, a organização da família e a sua própria essência sofreram alterações, mantendo, contudo, a sua importância na formação da pessoa. Tratar da família na atualidade com o olhar voltado para família do século XIX conduzirá a conclusões escatológicas não muito animadoras. A família mudou.

O fortalecimento dos direitos fundamentais e, em especial, dos direitos de personalidade, destacou a importância da pessoa humana em face das instituições e no âmbito do ordenamento jurídico estatal. A formação da personalidade, a autodeterminação ético-existencial do indivíduo e a solidariedade entre os membros seriam os principais objetivos da família, o que reflete o seu papel instrumental e não finalístico. À vista disto, tem-se o art. 226, parágrafo sexto, que funda o planejamento familiar na dignidade da pessoa humana; o art. 227, caput, atribuindo à família Page 121 o dever de assegurar às crianças e aos adolescentes as condições essenciais à formação de sua personalidade e inserção social, dentre outros.

Seguem-se doutrinadores que, a exemplo de Lobo (2002), atribuem à família uma conceituação mais abrangente, em face da interpretação extensiva do caput art. 226, caput. O próprio Caio Mário (2006, p.39) assevera que "novos tipos de grupamento humano marcado por interesses comuns e pelos cuidados e compromissos mútuos hão de ser considerados como novas entidades familiares? a serem tuteladas pelo direito". Uma interpretação sistemática e teleológica da Constituição não permitiria o confinamento da idéia de família aos três modelos específicos ali consignados. Especialmente considerando um modelo constitucional firmado na defesa da dignidade da pessoa humana, nos direitos fundamentais, no respeito à pluralidade e à diversidade, que prima pela inclusão.

Lobo (2002, p. 4) entende neste sentido quando afirma que, "no caput do art. 226 operou-se a mais radical transformação, no tocante ao âmbito de vigência da tutela constitucional à família. Não há qualquer referência a determinado tipo de família, como ocorreu com as constituições brasileiras anteriores. Ao suprimir a locução "constituída pelo casamento" (art. 175 da Constituição de 1967-69), sem substituí-la por qualquer outra, pôs sob a tutela constitucional "a família", ou seja, qualquer família. A cláusula de exclusão desapareceu. O fato de, em seus parágrafos, referir a tipos determinados, para atribuir-lhes certas conseqüências jurídicas, não significa que reinstituiu a cláusula de exclusão, como se ali estivesse a locução "a família, constituída pelo casamento, pela união estável ou pela comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos". A interpretação de uma norma ampla não pode suprimir de seus efeitos situações e tipos comuns, restringindo direitos subjetivos".

Para delimitar a extensão da família albergada naquele artigo, há que se compreender o fim social a ela atribuído e ainda a sua natureza complexa, cuja disciplina não se dá somente no campo do direito, mas também na seara da sociologia, da antropologia, da psicologia e da psicanálise. Interessa à ética, à moral, à religião e aos costumes (PEREIRA, 2006, p. 21).

Historicamente, a família sempre teve importância para a estrutura social. Na Antigüidade Grega e Romana, afirmava-se como associação religiosa que celebrava, sob a direção do pai, o culto doméstico. Embora a origem da família não seja creditada à religião, fora esta quem lhe cunhou as principais regras. Por muito tempo, a família caminhou apenas como uma instituição regulada pela religião, de sorte que se confundiam a disciplina da religião e a regulamentação desenvolvida ulteriormente pelo Estado confessional.

A família brasileira no período do Brasil-Império seguia exatamente a disciplina da Igreja Católica Apostólica Romana, religião oficial proclamada pela Constituição Imperial (art. 5º). Assumia o modelo matrimonial, resultante do casamento religioso e uma organização patriarcal. Somente a partir de 1890, por via do Decreto nº.181, de 24 de maio, o casamento passou a ser civil. Mesmo com o advento da República, quando também se instituiu o Estado laico no Brasil, a família prosseguiu com disciplina muito semelhante àquela professada pela Igreja.

Mas as relações familiares mudaram muito nos últimos anos e, certamente, as estruturas luso-brasileiras que delimitavam a disciplina da família não perduraram sem alterações. Uma das principais mutações observadas está relacionada ao resgate da importância da pessoa no contexto do Estado e do próprio ordenamento jurídico e, conseqüentemente, em face das instituições. A família é uma instituição a serviço da formação e bem-estar da pessoa e não o contrário. O direito de personalidade à autodeterminação ético-existencial do sujeito não pode ceder a um modelo único de estrutura familiar.

A Constituição de 1988 foi um marco normativo que possibilitou a ampliação do conceito de família, porém o Código...

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