Extinção da delegação do artigo 236 da Constituição Federal: uma nova hipótese

AutorOdemilson Roberto Castro Fassa
Páginas171-249

Page 171

4. 1 A lacuna normativa a ser colmatada

Como já analisado em tópicos anteriores, o regime jurídico dos oficiais de registro e notários, no Brasil, desde a sua instituição através do art. 351da Lei n. 317, de 21.10.1843, e artigo 1º2 do seu Decreto Regulamentador n. 482, de 14.11.1846, tem experimentado diversas alterações.

Entretanto, para demonstrar tais alterações, já sob o regime republicano, partiremos da Emenda Constitucional n. 7, de 13.4.1977, que acrescentou o art. 206 à Emenda Constitucional n. 1/1969, estabelecendo a oficialização das serventias do foro judicial e extrajudicial (leia-se: ofícios de justiça, registradores e notários).

Como se depreende do próprio texto, o regime jurídico dos oficiais de registros de imóveis, notários e demais trabalhadores dos

Page 172

ofícios de justiça, a partir de então, passou a ser o de típico funcionário público, nos termos do art. 97, e, sujeitos à aposentadoria compulsória aos setenta anos de idade, por força das disposições do então vigente artigo 101, II3, da Emenda Constitucional n. 1/1969, consagrando, na verdade, entendimento jurisprudencial consolidado no Supremo Tribunal Federal desde 1947, como pode ser constatado do julgamento do RE n. 8.500, de 6.10.1947 (Rel. Castro Nunes); MS. n.
5.422 (Rel. Luiz Gallotti); Rp. 891, de 13.6.1973 (Rel. Djaci Falcão). No entanto, pouco mais de cinco anos depois, por força da

Emenda Constitucional n. 22, de 15.11.1982, também ao artigo 206 e artigo 207 da Emenda Constitucional n. 1/1969, operou-se nova mudança do regime jurídico dos titulares das serventias extrajudiciais (leia-se registradores e notários), posto que excluídos da oficialização constitucional, por força do disposto no artigo 207, que estabeleceu que tais serventias seriam providas na forma da legislação dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios, observada a ordem de concurso público de provas e títulos, de modo que os oficiais de registro de imóveis e também notários passaram a ter regime jurídico desvinculado do texto constitucional, totalmente dependente da legislação dos Estados, cuja atuação passou a ser regulada pelos Códigos de Organização e Divisão Judiciárias.

Em alguns Estados da Federação a estatização foi mantida e outros procederam à privatização de tais serventias, de modo que se pode afirmar que nos Estados onde a estatização foi mantida, os oficiais de registros de imóveis e notários continuaram submetidos ao regime jurídico dos funcionários públicos típicos e, portanto, sujeitos à aposentadoria compulsória aos setenta anos de idade, por força das disposições do artigo 101, II, da Emenda Constitucional n. 1/69, que impunha aposentadoria compulsória, aos setenta anos de idade, aos funcionários públicos.

Nos Estados em que a legislação estabeleceu a privatização das serventias extrajudiciais (registros e notas), como autorizava o ar-

Page 173

tigo 207 da Emenda Constitucional n. 1/1969, já citado, o regime jurídico dos oficiais de registro de imóveis, na prática, não foi alterado, porquanto o Supremo Tribunal Federal continuou a entender que tais oficiais qualificavam-se como funcionários públicos por equiparação e, portanto, ainda estavam sujeitos à aposentadoria compulsória aos setenta anos de idade, conforme estabelecia o inciso II do artigo 101 da Emenda Constitucional n. 1/1969, já mencionado. A este respeito, confira-se Rp. 1.489, de 5.8.1988 (Rel. Octávio Galloti). (Grifo nosso)

Todavia, a Constituição de 1988, no artigo 236, dispôs sobre a privatização da execução dos serviços notariais e de registros (até então serventias extrajudiciais), estabelecendo: “Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público”, dispositivo que foi regulamentado pela Lei n.
8.935, de 18 de novembro de 1994.

Estabeleceu ainda, o texto constitucional de 1988, no inciso II do artigo 40, que o servidor será aposentado aos setenta anos de idade. (Grifo nosso)

A alteração constitucional de 1988, constante no artigo 236, não obstante expressa quanto à privatização da execução de tais serviços, não abalou a posição instalada no Supremo Tribunal Federal, que continuou a entender, embora não à unanimidade, que registradores e notários continuavam equiparados, agora a servidores públicos e, portanto, ainda sujeitos à aposentadoria compulsória aos 70 anos de idade, como decidido pelo Pleno, no RE. n. 178.236, em
7.3.1996, Rel. Ministro Octávio Galloti. (Grifo nosso)

Ocorre que a Emenda Constitucional n. 20/98 conferiu nova redação ao inciso II do artigo 40 da Constituição de 1988, restringindo a aposentadoria compulsória aos setenta anos de idade a servidores titulares de cargos efetivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, alteração que de imediato não abalou a posição dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, mantida ainda por quase meia década e que só foi revista em 18.03.2003, na Petição n. 2.890/SP, da relatoria da Min. ELLEN GRACIE, que, agora sim, com fundamento no caput do artigo 40, c.c o § 1º e in-

Page 174

ciso II, da CF (redação dada pela Emenda Constitucional n. 20), excluiu da aposentadoria compulsória, aos setenta anos de idade, os registradores e os notários, ao argumento de que são agentes delegados não titulares de cargos, entendimento consolidado posteriormente pelo Pleno do Supremo, em 24.11.2005, na ADI n.
2.602 e em outros tantos julgados que se lhe seguiram.

Note-se que, a partir do julgamento na Petição n. 2.890/SP antes mencionada, instaurou-se uma lacuna normativa em relação à temporariedade da delegação conferida a registradores e notários, porquanto os Ministros do Supremo Tribunal Federal nada dispuseram sobre a extinção da delegação do artigo 236 da Constituição Federal.

Doravante, só ocorre a extinção da delegação, nas hipóteses do artigo 39 da Lei n. 8.935/94: I – morte; II – aposentadoria facultativa; III – invalidez; IV – renúncia; V – perda, nos termos do art. 35; VI – descumprimento, comprovado, da gratuidade estabelecida na Lei
n. 9.534, de 10 de dezembro de 1997, as quais não guardam compatibilidade com o princípio constitucional republicano (art. 1º), que impõe temporariedade, não só dos mandatos dos governantes, mas também na delegação de função; de serviços; na concessão de serviços públicos e demais atividades estatais cuja execução seja transferida a terceiros não integrantes dos quadros da Administração Pública, como ocorre em relação aos delegados do artigo 236 da Constituição Federal, daí a necessidade de um termo, de uma nova hipótese, com a finalidade de colmatar a lacuna mencionada.

4. 2 Integração e interpretação da norma jurídica

Consuetudinário, impregnado de formalismo e do sagrado também para os egípcios, babilônicos, chineses e gregos, o direito ainda não se distinguia da moral e da religião até o início da Idade Média.

Coube aos romanos, organizadores do direito, através de seu jurisconsulto Paulo, sustentar que “o permitido pelo direito nem sempre está de acordo com a moral”4.

Page 175

Através dos romanos o direito tornou-se ciência, onde o jus preexiste à actio e, não obstante o colapso de Roma, através dos glosadores de Bolonha, o Direito Romano ressurgiu na alta Idade Média (séculos XII e XIV) e influenciou outras tantas gerações.

A partir do renascimento (século XVIII) ocorre a dessacralização do direito, que, como regra de convivência, passa a ser construído pela razão, sendo incorporado pelo Estado Moderno, como regulador racional, superior até mesmo ao Estado, que o cria5.

Na concepção sintetizada de DOMENICO DE MASI6, milhares de anos passaram-se até que o cão fosse domesticado, o fogo dominado e a flecha lançada com precisão. Há 10.000 anos a mulher laborou na agricultura e o homem desenvolveu o pastoreio. A sociedade rural consumiu cem séculos para gerar a sociedade industrial e esta, em dois séculos, deu origem a uma terceira, denominada sociedade pós-industrial, sob a égide da qual a humanidade, em quatro décadas, experimentou mais progresso do que nos 40.000 anos precedentes.

A esta fantástica evolução do homem, o direito sempre esteve atrelado nas mais variadas formas, constituindo-se eficaz instrumento de regulação social até o Estado Liberal inclusive, mas a mutabilidade cada vez mais rápida da sociedade humana passou a exigir um direito muito mais dinâmico, até mesmo com pretensão de antecipar-se aos conflitos sociais, constituindo, no dizer de BOBBIO7, “instrumento de direção social” com realce da “função promocional”, em substituição a “função tradicionalmente repressiva”.

Page 176

Ainda assim, como não poderia deixar de ser, o legislador não consegue antecipar-se às muitas das situações de conflito, presentes e futuras, bem como antecipar-se a todas as possibilidades de comportamento social, de modo que a existência de omissões, de lacunas da lei, não obstante algum posicionamento em sentido contrário8, mostra-se realidade inafastável, especialmente em relação ao ordenamento jurídico nacional, onde é admitida expressamente no artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro (n.
4.657, de 4 de setembro de 1942), cabendo aos magistrados integrá-las ao sistema, valendo-se para tanto da analogia9, dos costumes10e dos princípios gerais de direito11, dado que não lhes é permitido eximirem-se de sentenciar...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT