Liberdade de expressão, pluralismo e o papel promocional do estado

AutorDaniel Sarmento
CargoProfessor Adjunto de Direito Constitucional da UERJ. Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UERJ. <i>Visiting Scholar </i>da Yale Law School (2006). Procurador Regional da República.
Páginas1-39

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1. Introdução

A visão tradicional sobre a liberdade de expressão1 é a de um direito negativo, que se esgota num dever de abstenção do Estado. De acordo com ela, a liberdade de expressão Page 2 constitui uma limitação para os poderes públicos, erigida para que eles não tenham como impedir nem coibir a manifestação de quaisquer opiniões ou idéias.

O propósito central do presente estudo é mostrar que tal concepção não é incorreta, mas incompleta. Embora a dimensão preponderante da liberdade de expressão seja realmente negativa, a garantia deste direito, sobretudo no quadro de uma sociedade profundamente desigual, também reclama ações positivas do Estado, visando a assegurar a todos a possibilidade real do seu exercício e o enriquecimento do debate público2. É claro que o Estado deve ser limitado nesta esfera, para refrear os impulsos naturais dos governantes de cercear a difusão de opiniões ou informações que contrariem os seus próprios interesses, ou de silenciar aqueles que defendam idéias impopulares. Mas o que se almeja sustentar neste artigo é que o regime do laissez-faire não é suficiente para permitir a todos a efetiva fruição desta tão importante liberdade, e produz como conseqüências práticas o reforço do poder dos ricos na esfera comunicativa, o empobrecimento dos debates públicos e a manutenção de uma estrutura social desigualitária e opressiva.

Sem embargo, não deve haver espaço para inocência no tratamento desta questão, pois muita coisa importante está em jogo. Não há como ignorar os riscos de intervenções estatais que possam resultar não em pluralização do debate público, mas em censura disfarçada ou favorecimento aos pontos de vista preferidos pelos governantes. Contudo, estes riscos de abusos - que sempre existem onde quer que o poder esteja envolvido - não são razões suficientes para que se adote um modelo de completo absenteísmo estatal, descartando-se liminarmente quaisquer iniciativas voltadas à efetiva democratização do espaço comunicativo. Deve-se, isto sim, pensar e desenvolver mecanismos para minimizá-los.

No Brasil, este tema reveste-se de uma relevância extraordinária. Por um lado, não há como negar os enormes avanços que obtivemos no campo da liberdade de expressão após a redemocratização do país e a promulgação da Constituição de 88. Não há mais censura pública, a imprensa exerce sem maiores temores o seu papel de fiscalização dos governos e os artistas produzem as suas obras com liberdade. São vitórias importantíssimas que não devem Page 3 ser desmerecidas3. Não obstante, os meios de comunicação de massa, cujo poder nas sociedades contemporâneas nem precisa ser enfatizado, permanecem fortemente oligopolizados, em que pese a expressa vedação constitucional (art. 220, § 5º, CF), o que gera evidentes distorções no funcionamento da nossa democracia4. Ademais, os pobres e excluídos em geral continuam sem voz na esfera pública.

Tal situação, flagrantemente contrária aos valores da nossa Constituição, não será corrigida pelo mercado. O seu combate, pelo contrário, reclama atuações estatais positivas que, obviamente, enfrentarão resistência da parte daqueles que se beneficiam com o status quo. Neste estudo, pretendemos oferecer alguns argumentos em favor da adoção pelo Estado de uma postura mais ativista no campo comunicativo, voltada não para a repressão de idéias e pontos de vista enjeitados pelos governantes ou pela maioria - o que seria absolutamente incompatível com os princípios mais caros a um Estado Democrático de Direito -, mas para a efetiva pluralização do espaço público, ou, para usar o expressivo lema do movimento nacional das rádios comunitárias, "para dar voz a quem não tem voz".

Assim, num primeiro momento, dedicaremos algumas páginas a um estudo do Direito Comparado, analisando como outras democracias constitucionais avançadas - Estados Unidos, Alemanha e França - vêm enfrentando a mesma questão. Em seguida, discutiremos as relações entre esta visão "ativista" da liberdade de expressão com os principais valores que fundamentam a proteção deste direito: democracia e autonomia individual. Passaremos, logo após, ao estudo do tema no âmbito do Direito Constitucional positivo brasileiro. Nosso objetivo neste item será o de demonstrar como a Carta de 88, interpretada com os olhos voltados para a realidade empírica do país, requer esta leitura não abstenteísta das nossas liberdades comunicativas.

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2. Liberdade de Expressão e o Estado Ativista no Direito Comparado
a) Estados Unidos: Ascensão e Queda da Fairness Doctrine e Primazia da Teoria Libertária da 1ª Emenda

Embora a garantia da liberdade de expressão no Direito Constitucional norteamericano exista desde a edição da 1ª Emenda, em 1791, foi só no começo do século XX, depois do final da 1ª Guerra Mundial, que este direito começou a ser efetivamente protegido pelo Judiciário daquele país5. Após um início titubeante, a jurisprudência constitucional americana foi expandindo e fortalecendo a proteção do free speech, que é hoje certamente o mais valorizado e protegido direito fundamental no sistema jurídico dos Estados Unidos6, sendo considerado uma "liberdade preferencial"7, à qual se atribuiu um peso superior na ponderação com outros direitos, como privacidade8, reputação9 e igualdade10. Page 5

De forma muito esquemática, pode-se dizer que há no debate constitucional norteamericano duas grandes linhas ou tradições em relação ao papel do Estado em matéria de liberdade de expressão11. Uma libertária, que vê o Estado como o grande adversário deste direito, e tem como ideal regulativo o modelo do "mercado de idéias", em que agentes privados comunicar-se-iam uns com os outros livremente, sem qualquer interferência estatal. Esta corrente parte da premissa de que, ainda que o mercado possa ter as suas falhas, elas são preferíveis à intervenção do Estado, cuja atuação sempre tenderia a desfavorecer as idéias que fossem prejudiciais aos governantes ou contrárias às preferências das maiorias12. A outra linha é a ativista13, que aceita e às vezes até reclama a intervenção estatal na esfera comunicativa, visando a suprir e corrigir os desvios e as falhas mercadológicas, a fim de assegurar as condições para um debate público mais plural, do qual também possam participar aqueles que, por falta de dinheiro ou poder, não conseguiriam se fazer ouvir num sistema baseado exclusivamente no mercado14. O seu ideal regulativo é a democracia deliberativa.

De um modo geral, a tradição libertária tem quase sempre prevalecido na trajetória histórica da 1ª Emenda e é ela que hoje impera no Direito Constitucional norte-americano. No entanto, em alguns momentos, a visão ativista teve as suas vitórias, e a mais expressiva delas foi a chamada fairness doctrine15, empregada até meados da década de 80 do século passado. Page 6

A fairness doctrine foi criada pela FCC (Federal Communications Comission) - agência reguladora norte-americana dedicada à área de comunicações eletrônicas - e consistia numa série de medidas que visavam a assegurar que as rádios e televisões destinassem uma boa parte da sua programação à cobertura de questões de interesse público, e que, nesta cobertura, oferecessem oportunidade para apresentação de pontos de vistas diversificados e conflitantes, visando, com isso, a proporcionar ao público o acesso a versões e opiniões variadas sobre temas relevantes para a coletividade.

Embora a preocupação com a diversificação dos pontos de vista das emissoras de rádio remontasse ao final da década de 20, a primeira explicitação da fairness doctrine só ocorreu em 1949, num relatório público da FCC. E, em 1959, o Congresso introduziu uma emenda ao parágrafo 315 da Lei de Comunicações norte-americana que, aparentemente, abraçou esta doutrina, e que mencionava as obrigações impostas às emissoras de "operarem visando o interesse público e de assegurarem razoável oportunidade para a discussão de pontos de vista conflitantes em questões de importância pública"16.

Com base na fairness doctrine, a FCC exercia fiscalização sobre as rádios e televisões, e podia impor às emissoras uma cobertura mais eqüitativa em relação a temas de interesse público, obrigando-as a veicularem os pontos de vista relevantes em cada debate, quando se evidenciasse a sua parcialidade. Ela também tinha como determinar que as emissoras noticiassem questões importantes de interesse da coletividade, que elas tivessem omitido de suas programações - muito embora este aspecto da doutrina tenha sido pouquíssimo aplicado pela agência17. A fairness doctrine permitiu ainda que a FCC instituísse uma espécie de direito de resposta em favor de pessoas atacadas no curso de discussões relacionadas a questões de interesse público18. Page 7

Em 1969, a Suprema Corte norte-americana foi chamada a pronunciar-se sobre a constitucionalidade da fairness doctrine no julgamento do caso Red Lion Broadcasting Co. vs. Federal Communications Comission19. Alegara-se, no caso, que a doutrina em questão violaria a 1ª Emenda, por restringir o direito das emissoras de veicularem em suas programações aquilo que desejassem. A Suprema Corte, em decisão proferida por unanimidade e redigida pelo Justice White, rechaçou o argumento. Segundo a Corte, a escassez das ondas...

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