Execução Concentrada de Título Judicial Contra a Entidade Desportiva: Aspectos Críticos e Vantagens

AutorGabriel de Oliveira Ramos
Ocupação do AutorAssessor de Ministro do TST. Bacharel em Direito pela USP.
Páginas296-304

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Ver nota 1

Refletir sobre o esporte é procurar compreender uma esfera de atividade dotada de uma aura paradoxal. Primeiro, porque ele tem uma notável autonomia, sendo uma dimensão social marcada por normas, gestos, valores, objetos, vestimentas, espaços e temporalidades singulares que ultrapassam um mundo construído e rotinizado em torno do trabalho e do "econômico", como base do progresso e eixo de redenção moral. Realmente, um dos elementos mais marcantes da paisagem urbana antiga e moderna são as arenas, os estádios, os autodrómos, as quadras, os ginásios e piscinas, destinadas aos "jogos" e aos esportes. No mundo antigo eles rivalizavam com templos e igrejas, tornando o "ir a rua" (esse universo perigoso e ameaçador para as boas famílias, porque, no Brasil, era o lugar dos inferiores, dos marginais e dos escravos) um deslocamento aceitável. Hoje em dia pairam isolados, dominando a cena, pois seus competidores mais próximos - arranhas-céus e shoppingcenters - são espaços explicitamente destinados aos negócios, não ao espetáculo ou ao ritual.2

1. Histórico da centralização de execuções

Aproveitando a aproximação da Copa do Mundo no Brasil, a ser realizada em 2014, um dos mais populares clubes de futebol brasileiro passou a veicular peça publicitária na qual destaca a existência de uma nação de torcedores. Em que pese a imprecisão dogmática decorrente da aplicação do conceito de nação em confusão ao de Estado, a ideia de nação de torcedores não é de todo inapropriada.

Verifica-se que, no período anterior à Revolução Francesa, o emprego do termo nação remontava à ideia de grupo, sendo atribuído a qualquer coletividade3. Destaca-se, ainda, a distinção conceitual entre sociedade e comunidade, sendo esta marcada por se constituir num fato social no qual, independente de um ato de vontade, os membros de uma coletividade humana tenham afinidades espirituais ou psicológicas4. Assim, verifica-se que há razoabilidade na utilização da terminologia para identificar um grupo de torcedores de determinada equipe de futebol.

Ainda nesse animus elucidativo da relevância sociocultural do futebol, jocosamente, defende-se que a qualificação jurídica, para atos contratuais ou judiciais, deveria conter a indicação, logo após a nacionalidade, o estado civil e a ocupação profissional, da torcida a que faz parte o qualificado. Afirma-se que este seria, em tempos recentes, o elemento menos sujeito à variabilidade ou suscetível de dúvidas.

Essas considerações iniciais despojadas de maior formalismo teórico ilustram a relevância sociocultural do futebol, e, por consequência, das entidades desportivas. Foi exatamente esta relevância socio-cultural que fundamentou a decisão de reunir em juízo centralizado das execuções em face de entidade desportiva pelo 3º Tribunal Regional do Trabalho. Lá aconteceu, pela primeira vez, a concentração, em juízo auxiliar ao juízo de execução, dos atos processuais em face de determinada entidade desportiva.

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Diversamente das atividades econômicas, a ausência de competitividade não favorece a entidade desportiva. O aniquilamento da competitividade implica em redução da atratividade dos eventos desportivos e tem como consequência a diminuição de bilheteria e de outras receitas decorrentes do evento, em comparação àquela que seria arrecadada caso fosse mantida a rivalidade, ou competitividade.

No universo do futebol mineiro, a rivalidade entre as entidades desportivas de maiores torcidas costuma despertar sentimentos intensos dos torcedores e, nos dias de clássico, movimenta a cidade de Belo Horizonte, materializando-se no acréscimo na venda de camisetas, bandeiras e outros artigos para torcida, e repercutindo nas discussões, em âmbito pessoal ou profissional, nos dias que antecedem e sucedem o evento esperado.

Nesse cenário de intensa rivalidade, evitar que as execuções de reclamações trabalhistas, com valores extremamente elevados, inviabilizassem as atividades de uma das principais entidades desportivas do estado era de interesse, até mesmo, do principal rival da entidade esportiva em dificuldade financeira.

Apesar da origem em Minas Gerais, a existência de créditos judiciais vultosos e as dificuldades para concluir execuções em face de entidades desportivas não são exclusivos desse estado. Logo a experiência mineira foi reproduzida no 1º Tribunal Regional do Trabalho, Estado do Rio de Janeiro, no qual teve destaque e foi objeto de regulamentação por atos e provimentos da Presidência daquele Tribunal, os quais constituem a principal fonte de análise da centralização de execuções em face de entidades desportivas.

2. Fundamentos legais para centralização de execuções

Cumpre observar que a concentração de execuções, em Minas Gerais, iniciou-se antes da promulgação da Lei n. 11.101/2005, Lei de Falências e Recuperação de Empresas, e teve como escopo a preservação das entidades desportivas em crise financeira, que poderiam ter as atividades desportivas inviabilizadas pela constrição da integralidade das receitas mensais para satisfação de débitos judiciais.

As normas referentes à execução, no processo do trabalho, estão previstas nos arts. 876 e seguintes da CLT, sendo que o art. 889 da CLT5 dispõe sobre a aplicabilidade dos preceitos que regem os processos executivos fiscais, referentes à cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública Federal, naquilo em que não for incompatível com as normas da CLT.

Já o art. 28 da Lei n. 6.830/806, que dispõe sobre a cobrança judicial da dívida ativa da Fazenda Pública, estabelece a possibilidade de, a requerimento das partes, ou por conveniência da unidade de garantia da execução, ordenar a reunião de processos contra o mesmo devedor, tendo sido esse o fundamento legal inicial que amparou a execução concentrada, ou centralizada, em face das entidades desportivas.

Acrescente-se a previsão do art. 620 do CPC - segundo o qual, "quando por vários meios o credor puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o devedor" - também constitui motivação ao procedimento, sobretudo em relação aos processos em trâmite no Rio de Janeiro7.

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A esse respeito, Sérgio Shimura8 afirma que o princípio da menor gravosidade para o executado constitui desdobramento do princípio da dignidade da pessoa humana, que impede a realização de atos executórios que ofendam a dignidade do executado como indivíduo, e da patrimonialidade, que limita a execução da dívida além das coisas e pertences do executado, não podendo ser objeto a pessoa física do executado.

Verificando-se que os princípios da dignidade da pessoa humana e da patrimonialidade, dos quais decorre o princípio da menor gravosidade, estão relacionados, indubitavelmente, à pessoa física executada, questiona-se a adequação da utilização do princípio da menor gravosidade como fundamento para o deferimento de pedido de reunião de processos em execução centralizada em face de pessoa jurídica de direito privado.

A 3a Turma do 1º Tribunal Regional do Trabalho, em decisão em agravo de petição, tratou, com bastante proprie-dade, sobre a interpretação do art. 462 do CPC em relação às entidades desportivas, conforme se denota da leitura da ementa abaixo9:

Execução. Penhora dos troféus do Fluminense Football Club. Bem com alto valor sentimental, mas pouca importância monetária. Indicação de quadros da pinacoteca do clube. Execução menos gravosa para o devedor. Provimento do recurso. Cabe ao juiz, nos termos do art. 620 do CPC, promover a execução pelo modo menos gravoso para o devedor. Se o executado indicou bens da mesma categoria daqueles penhorados, de acordo com a gradação estabelecida pelo art. 655, III, do CPC, consistentes em quadros que decoram a pinacoteca da sua sede, avaliados por profissional do ramo da arte em montante bem superior ao da dívida trabalhista e também ao dos troféus apreendidos, nada mais justo do que se dar preferência às referidas pinturas, cujo interesse comercial se mostra maior do que o das taças, além de representar uma forma de se prosseguir na execução de uma maneira menos prejudicial ao executado, ao mesmo tempo em que se atende a preocupação do exequente de garantir o pagamento do seu direito. (AP - 0060900-76.2006.5.01.0036, 3a Turma, 1º Tribunal Regional do Trabalho, red. Des. Rildo Albuquerque Mousinho de Brito, DO de 18.6.2010)

Dessa decisão extrai-se que, ainda que o princípio da execução menos gravosa tenha origem em princípios atrelados, em essência, à pessoa física, ele é plenamente aplicável às entidades desportivas profissionais, cabendo a utilização do art. 620 do CPC para encontrar solução que atenda à necessidade de satisfação dos créditos judiciais trabalhistas, resguardando a manutenção da entidade desportiva, cujo encerramento das atividades teria relevante repercussão social.

3. A centralização de execuções e o princípio do juiz natural

Desde as primeiras centralizações de execução, houve o questionamento quanto à constitucionalidade da medida, sob o argumento de que a reunião de processos de execução em face de um devedor, num juízo diverso daquele a que originalmente distribuído o processo, implicaria em afronta ao princípio da garantia do juiz natural.

Conforme leciona Nelson Nery Júnior, "a garantia do juiz natural é tridimensional. Significa que: 1) não haverá juízo ou tribunal ad hoc, isto é, tribunal de exceção; 2) todos têm direito de se submeter a julgamento (civil ou penal) por juiz competente, pré-constituído na forma da lei; e 3) o juiz competente tem de ser imparcial"10.

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