O Excesso de Jornada como Ofensa do Direito ao Lazer

AutorRodrigo Maia Santos
CargoAdvogado
Páginas27-34

Page 27

"A infelicidade dos homens ativos é que sua atividade é quase sempre um pouco irracional. Não se pode perguntar ao banqueiro acumulador de dinheiro, por exemplo, pelo objetivo de sua atividade incessante; ela é irracional. Os homens ativos rolam como pedra, conforme a estupidez da mecânica. - Todos os homens se dividem, em todos os tempos e hoje também, em escravos e livres; pois aquele que não tem dois terços do dia para si é escravo, não importa o que seja: estadista, comerciante, funcionário ou erudito"

(Nietzsche, 2000b, aforismo 283, p.191).

Introdução

O presente trabalho científico aborda o excesso de jornada como ofensa ao direito ao lazer, com o objetivo de encontrar os limites da prorrogação de jornada, tendo como paradigma o fundamento da República Federativa do Brasil: a dignidade da pessoa humana.

Foi de extrema necessidade conhecer a natureza do direito ao lazer e sua eficácia para visualizar as limitações da prorrogação da jornada de trabalho. A partir daí, interpretou-se, com extremo rigor sistemático, a norma infraconstitucional sobre este tema, ou seja, identificando o que foi recepcionado pela Constituição da República na Consolidação das Leis do Trabalho. Logo após, foram analisadas as implicações da extrapolação dos limites identificados na prorrogação de jornada.

Em seu íntimo, como se notará, é um estudo sobre a liberdade humana.

1. A natureza do direito ao lazer

Em escritos antigos, em especial os do povo hebraico, o trabalho já era considerado algo contrário à natureza humana. Era uma punição divina por conta do pecado original. Veja a fala atribuída ao deus hebraico1:

"E a Adão disse: Porquanto deste ouvidos à voz de tua mulher, e comeste da árvore de que te ordenei, dizendo: Não comerás dela, maldita é a terra por causa de ti; com dor comerás dela todos os dias da tua vida. Espinhos, e cardos também, te produzirá; e comerás a erva do campo. No suor do teu rosto comerás o teu pão, até que te tornes à terra; porque dela foste tomado; porquanto és pó e em pó te tornarás." (grifos nossos).

A grande motivação deste ensaio é o ressentimento causado pela leitura do aforismo2 do filósofo Frederick Nietzsche, citado no início. Ele classifica os homens3 em duas categorias: escravos e livres. E foi enfático em dizer que o estadista, comerciante, funcionário ou erudito, por exemplo, não são pessoas livres necessariamente.

O escravo, na concepção de Nietzsche, pode ser o próprio senhor de engenho, possuidor de escravos; pode ser não só o bancário, como, também, o banqueiro. É escravo quem não tem tempo para si. Este conceito é assustador, porém real. Quem "rola, conforme a estupidez da mecânica" é um alienado;

Page 28

não vive conforme sua natureza (ser individual), não expande sua personalidade; e, no fundo, não se diferenciará de um equipamento de uma empresa.

Por ser algo tão invisível, não nos surpreende como a maioria das pessoas vive: acorda, toma banho, alimenta, desloca-se para o trabalho, trabalha, alimenta-se, trabalha novamente, desloca-se pra casa, toma banho, alimenta-se, assiste televisão, dorme. Normalmente esta é a rotina do dia inteiro! Se for estudante, então adicione "estudar" na lista.

Qual a diferença destas atividades com as de um computador? Vejamos:

Acordar x Ligar, Banhar x Limpar, Alimentar x Carregar, Trabalhar x Usar, Estudar x Atualizar, Assistir TV x "Modo de espera". Como se pode verificar, nenhuma diferença: são atividades obrigatórias, voltadas, mesmo que indiretamente, à produção de capital; não foram dedicadas para si mesmo.

Partindo do aforismo nietzsche-ano, para focar em apenas um dos significados, esta pesquisa conceituará o lazer como "tempo livre dedicado para si". Enfim, o homem que não tem tempo livre para si não exerce seu direito ao lazer, não é uma pessoa livre.

Diante disso deve-se classificar o tempo de acordo com seu uso, a fim de identificar qual é o tempo livre dedicado para si (ou, simplesmente, tempo livre). Alexandre Lunardi (2010, p. 29) classifica o tempo da seguinte forma:

  1. o tempo vinculado à produção de capital, no qual se encontra a jornada de trabalho, ou mesmo o tempo destinado à procura de emprego;

  2. o tempo vinculado a uma ativi-dade obrigatória, que corresponde a atividades legais, sociais, ou mesmo fisiológicas, como o tempo da consulta médica, da internação;

  3. e o tempo livre, isto é, aquele que está totalmente desvinculado das atividades obrigatórias e da produção de capital, determinados pela escolha do próprio indivíduo, como conversa com amigos, o tempo dedicado à família, os esportes, as atividades artísticas, entre outros.

O tempo vinculado a uma atividade obrigatória é, na verdade, relacionado com a "produção indireta do capital" (Lunardi, 2010, p. 29). Uma pessoa, por exemplo, que trabalha oito horas por dia e faz um curso universitário4 não é uma pessoa livre; não possui tempo livre. É como uma máquina que, metaforicamente, quando não está sendo usada, está aproveitando o tempo que resta do dia para adquirir uma peça mais moderna para ser usada em atividade mais complexa no futuro.

Ou seja, o tempo para o estudo profissionalizante não será considerado tempo livre; assim como qualquer atividade ligada, mesmo que indiretamente, à produção de capital. O conceito de "tempo livre" de Lunardi acaba sendo o mesmo de Nietzsche: tempo dedicado para si.

Uma vez delimitado o que é realmente tempo livre, poderemos prosseguir com o estudo do lazer no nosso ordenamento jurídico. O direito ao lazer está positivado no plano internacional através da Declaração de Direitos Humanos da ONU, desde 1948 (Lunardi, 2010, p. 26), que traz expressamente que: "Artigo XXIV - Todo ser humano tem direito a repouso e lazer, inclusive à limitação razoável das horas de trabalho e a férias remuneradas periódicas."

A atual Constituição brasileira também positiva o direito ao lazer nos seguintes termos:

"TÍTULO II

Dos Direitos e Garantias Fundamentais

(...)

CAPÍTULO II

DOS DIREITOS SOCIAIS

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição." (grifos nossos)

Conforme o exposto, podemos notar que o direito ao lazer é um direito humano, fundamental e social.

Vale acrescentar que nossa Constituição foi pioneira na proteção expressa do direito ao lazer, conforme Camilo Ferraresi (2010, p. 95):

"Manoel Gonçalves Ferreira Filho salienta que a Constituição Brasileira de 1988 é a primeira do mundo a incluir o direito ao lazer em seu texto, como se observa: ‘Lazer. Este direito não estava nas Constituições brasileiras anteriores. Não se tem notícia de que conste de Constituições estrangeiras’."

Sergio Pinto Martins (2008, p. 56), preocupado em classificar corretamente os direitos humanos, ana-lisa o trabalho de outros pesquisadores e chega à conclusão que o mais adequado é classificar por "grupos":

Paulo Bonavides prefere a palavra dimensões, pois, se fosse geração, a posterior suprimiria a anterior. (...) Dimensão, porém, tem sentido de tamanho, grandeza.

(...)

Noberto Bobbio faz referência a fases. O título de seu livro mostra que elas também poderiam ser eras. Uma era su-cede, porém, outra, que desaparece.

Arion Sayão Romita faz menção a famílias ou naipes, porque uma família não substitui outra. Há uma interação entre uma família e outra. Uma recebe influência da outra. Naipe tem sentido de categoria ou classe.

(...)

Seria melhor falar em grupos, pois haverá interação entre um grupo e outro.

Logo em seguida Sergio Pinto Martins (2008, p. 57) classifica os direitos sociais em direitos humanos do segundo grupo:

"Os direitos do segundo grupo são os direitos econômicos, sociais e culturais,

Page 29

bem como os direitos coletivos e das coletividades. Decorrem do princípio da igualdade. É a ideia do Estado do BemEstar Social, com caráter individualista."

Da leitura das normas expostas podemos concluir que a natureza jurídica do direito ao lazer é um direito humano fundamental do segundo grupo.

2. A eficácia do direito fundamental ao lazer nas relações de trabalho

Uma vez delimitado o conceito de direito ao lazer e sua natureza de direito fundamental é necessário determinar agora seu alcance nas relações de trabalho.

Os direitos fundamentais devem ser interpretados sob o paradigma da "dignidade da pessoa humana":

"O princípio da dignidade da pessoa humana há de ser considerado como o fundamento de todo o sistema dos direitos fundamentais, no sentido de que estes constituem exigências, concretizações e desdobramentos da dignidade da pessoa humana e com fundamento nesta devem ser interpretados" (Queiroz Junior, 2006 apud Gamba, 2010, p. 41).

E, especialmente para este artigo, também estão ligados ao "valor social do trabalho".

Ambos são fundamentos da atual Constituição brasileira:

"Art. 1º A República Federativa do Brasil (...) tem como fundamentos:

(...)

III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho (...);"

Vale ressaltar que os fundamentos não são os objetivos fundamentais: aqueles são citados no artigo 1º e estes no artigo 3º da Constituição. Em outras palavras, fundamento é causa, objetivo é efeito. Fundamento é a maneira de ser e agir da Constituição: é o caminho. O objetivo é o horizonte.

Portanto, conforme já exposto, é com base nestes fundamentos que se deve interpretar as normas constitucionais referente aos direitos...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT