Excerto do direito societário I - fundamentos

AutorHerbert Wiedemann
Páginas66-75

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Em memória do Professor Waldirio Bulgarelli

A - Introdução

O texto a seguir constitui tradução de um trecho constante das páginas 16 a 24 da obra clássica de Herbert Wiedemann, Direito Societário I - Fundamentos (Gesell-schaftsrecht I — Grundlagen), publicado pela Editora Beck, de Munique, em 1980 (em 2004 Wiedemann fez publicar, pela mesma editora, o Direito Societário II, dedicado às sociedades de pessoas). A presente tradução, dedicada à memória do Prof. Waldirio Bulgarelli, tem sua razão de ser. Uma das constantes preocupações do ilustre autor foi com a teoria da empresa, à qual, inclusive, dedicou uma de suas teses de concurso.1 O conceito de empresa em direito, como se sabe, pode ser examinado sob diversos perfis, segundo o texto clássico de Asquini:2 o perfil subjetivo (a empresa como empresário ou sociedade empresária), o objetivo ou patrimonial (a empresa como património aziendal e como estabelecimento), o funcional (a empresa como atividade) e o coiporativo (a empresa como instituição). Pois bem. A abordagem feita na mencionada obra de Wiedemann, cujo trecho ora traduzimos, sugere a visualização desses perfis sob as lentes do direito societário.3 Com efeito, no capítulo II de seu livro, dedicado aos "princípios estruturais do direito societário", Wiedemann afirma constituir objeto desse ramo do direito estabelecer uma disciplina ou ordenamento da sociedade, uma disciplina ou ordenamento do património, e uma disciplina ou ordenamento da empresa (para as sociedades empresárias, evidentemente, e aqui compreendendo a empresa como ativida-

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de, mas também trazendo à tona aspectos institucionais4). A partir desse ângulo de visão é que Wiedemann elaborou sua obra magistral. No capítulo introdutório, porém, há um resumo dos mencionados princípios estruturais, no item em que o eminente autor examina o objeto do direito societário. Como, ao que consta, inexistem traduções do livro de Wiedemann, pareceu-nos oportuno trazer aos leitores pátrios a sua singular abordagem da matéria.

B - Tradução
II Objeto e desenvolvimento [do direito societário]
1. O regramento da vida societária
  1. O ordenamento societário (Recht der Verbandsordnung)

    A situação da vida que o direito societário regula, em primeira linha, é a comu-, nidade de pessoas que se associaram para atingir um fim comum. Tarefa do direito societário, para as associações (Vereinigung5) privadas, é a de desenvolver regras de conduta justas e adequadas.

    Se se questionar mais de perto acerca do conteúdo das necessárias normas societárias, salientam-se - abstraídas a constituição e a dissolução - três áreas para as quais o legislador e, complementarmente, os próprios membros devem atentar: a determinação da finalidade (Zweckbestimmung6), a organização e o status socii (Mit-gliederstatus). A cláusula do objeto ou cláusula da finalidade (Zweckklausel) dos estatutos constitui a "estrela polar" do universo societário, pela qual todos os órgãos e membros devem se orientar. Isso pode até

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    mesmo levar a que uma associação7 somente em consequência da fixação da finalidade (por exemplo, como associação profissional) na elaboração do estatuto esteja, no mais, vinculada (aqui com relação ao círculo dos membros). Além disso, a determinação da finalidade delimita a esfera coletiva da vida societária perante os membros e perante terceiros, porque os sócios coletivizaram os seus interesses nos exatos limites desta fixação de objetivo. As regras correspondentes do estatuto preenchem, portanto, duas fundamentais tarefas simultaneamente, na medida em que fixam os princípios orientadores e o raio de ação da associação8. A segunda área que necessita de regulamentação é a organização, mediante a qual a formação da vontade interna e a sua manifestação externa são disciplinadas. Visto que uma associação de pessoas, como tal, não tem capacidade de manifestar a vontade ou de exercer direitos, tanto a decisão (Willensentschluss), quanto a sua implementação fática, necessitam de uma certa ordem. Quando os sócios não deliberam de forma unânime e não implementam medidas conjuntamente, deve ser determinado quem deve ser competente para determinadas questões, como se realizarão as deliberações e por quem as mesmas deverão ser executadas. Estas normas representam, em regra, como estatuto or-ganizatório, parte preponderante das determinações legais ou estatutárias, especialmente quando a sociedade (Verbandi9) explora uma empresa. O terceiro grupo diz respeito à disciplina dos direitos e deveres dos sócios perante a organização societária e perante os outros sócios, por conseguinte, ao status socii. Entre os direitos, distinguimos os direitos de participação10 (direito de voto, poderes de gestão social), os direitos patrimoniais (participação nos lucros, direitos de fruição), os direitos de informação e fiscalização, bem como, por fim, o direito de se retirar da organização societária (direito de retirada). Entre os deveres, enumeram-se o dever de contribuir, o dever de colaborar para a gestão social e o dever de lealdade.

    As áreas supracitadas são reguladas, em parte diretamente pelo legislador - e, então, conforme os arts. 74, incisos 1, 3 e 11, da Constituição, pelo legislador federal -, ou projetadas pelos próprios fundadores e posteriores sócios, no exercício da autonomia associativa assegurada pelo art. 9", primeiro parágrafo, da Constituição.11 Até que ponto o legislador deve limitar-se a propor condutas ou estabelecer regras cogentes depende, de um lado, se é provável esperar das convenções privadas uma justa composição dos interesses, de outro, em que medida os direitos de terceiros e da coletividade podem ser afetados.

    O direito societário caracteriza-se como um "pequeno estado de direito" ("kleines Staatsrecht"),12 porque também

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    nas sociedades a formação da vontade deve ser organizada e surge uma relação de supremacia e de subordinação, uma vez que sejam permitidas decisões por maioria. Por isso, o direito societário (Verbandsrecht) tem, tematicamente em comum com o direito público, a organização do poder cole-tivo e os direitos e deveres dos "cidadãos societários" (Verbandsburger). Enumeram-se, outrossim, uma série de problemas paralelos: a distribuição de competências, a renúncia à soberania, a estruturação dos órgãos, a votação nas assembleias, a exclusão do direito de voto, a incompatibilidade de muitas funções, a vigência de direitos individuais perante a maioria, o exercício do poder repressivo e assim por diante. Abstraídas as questões mais técnico-jurí-dicas (p. ex., a condução dos debates ou da votação),13 prossegue a comparação entre o direito público, de um lado, e o direito empresarial e societário, de outro, apenas de modo limitado, porque o estado não pode ser entendido como uma supra-sociedade de sujeitos de direito privado e porque falta a ele a voluntariedade (Freiwilligkeit) e a orientação final ística (Zweckrichtung) características da sociedade.14

    Em casos isolados, todavia, não está excluído o recurso a princípios do direito público também no direito societário, quando uma associação possui caráter público (associações de categorias económicas e profissionais), ou quando o associado está submetido ao poder da organização societária de forma semelhante ao poder público. Não apenas os direitos fundamentais, mas também os princípios estruturais do direito constitucional permitem a propagação da sua eficácia sobre outras regras (Drittwirkung15). A transplantação de princípios de direito público necessita, no entanto, especial fundamentação e não pode ser deduzida simplesmente da presença de uma relação de supremacia e de subordinação, ou de um grande número de sócios.16

  2. O ordenamento do património especial (Recht der Sondervermõgensordnung)

    Ao lado do ordenamento societário, abrange o direito societário, como uma parte essencial, o ordenamento do património especial próprio da organização societária (Verband), com o qual a finalidade social deve ser alcançada. Quando esse património é também património de todos os sócios - que, nessa esfera, também são chamados de "co-proprietários" - é ele necessariamente, todavia, mais ou menos rigorosamente separado dos respectivos patrimónios privados, surgindo uma massa patrimonial especial, que necessita de regras jurídicas independentes. O significado do ordenamento do património especial varia de acordo com o tipo e a dimensão da organização societária. Para as associações ideais, as energias sociais são empregadas, em primeiro lugar, na consecução dos projetados objetivos políticos, científicos, artísticos ou esportivos, e a administração do património social é compreendida mais como uma providência de apoio. Quando, ao contrário, uma empresa deve ser explo-

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    rada com o património, como é o caso nas sociedades comerciais,17 a estruturação da esfera patrimonial é deslocada fortemente para o centro da vida da sociedade.

    Nos limites do ordenamento patrimonial entendido em sentido amplo, devem ser tomadas providências acautelatórias com relação à competência para o exercício de direitos e sua execução, à transferência do património entre a organização societária e os sócios e à responsabilidade nas relações internas e externas. Para isso acorrem, relativamente às sociedades de capital, regras especiais abrangentes, que dizem respeito à provisão de capital próprio e à sua manutenção. O direito das coisas e os demais direitos patrimoniais são, no direito vigente, relacionados ao invidí-viduo: é enunciada a relação de uma pessoa com um determinado objeto patrimonial. Regras que dizem respeito a uma unidade patrimonial, e semelhantes, que atribuem um património especial a uma coletividade de pessoas, não se acham nos §§ 854 e ss. do Cód. Civil. Os §§ 1.007 e ss. do Cód. Civil compreendem apenas a situação de condómino com...

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