Sobre Ética e Corrupção

AutorLuiz Fernando Coelho
CargoProfessor do Curso de Direito da Faculdade Internacional de Curitiba (FACINTER) e do Programa de Pós-Graduação em Direito Processual e Cidadania, da Universidade Paranaense (UNIPAR), de Umuarama, Paran&aacute
Páginas5-14

    Sobre Ética e Corrupção1

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1. O mal-estar na civilização brasileira

Num momento especialmente tormentoso da vida política brasileira, em face da divulgação de fatos extremamente graves que evidenciam a corrupção generalizada nos três poderes da República, a Associação Mineira do Ministério Público vem convocar professores de Filosofia do Direito para um painel sobre ética e corrupção.

Desde logo é de indagar se é possível, no contexto da crítica filosófica, alguma resposta à perplexidade e indignação que toma conta de todos, e que se revestem de verdadeira calamidade, quando não somente corrói-se a credibilidade das instituições, como se é levado a questionar a validade da democracia e do Estado de direito.

Lembre-se a estafada citação de Rui Barbosa: [...] de tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimarse da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto2 . Nos dias de hoje temos a contundente declaração de Denise Frossard: [...] a corrupção leva o cidadão a perder a fé nas suas instituições e quando isto acontece, ele se torna cínico ou rebelde. E isto é um golpe de morte na democracia e na estabilidade que ela significa3 .

Se considerarmos que entre Rui e Frossard medeia um século, somos levados a crer que a corrupção é doença política profundamente arraigada em nosso país. Como então explicar a crise moral e o mal-estar na cultura brasileira?

Para início proponho como ponto de partida a comparação que, há quase um século, se fez entre o Brasil e o resto do mundo, principalmente a Europa, e que impressionou tanto o senso comum do brasileiro médio, a ponto de engendrar um novo significante: ufanismo. Refiro-me ao livro de Afonso Celso, Por que me ufano de meu País, publicado no início do Século XX, onde se lê: "Quando nos lançares em rosto as grandezas alheias, consideremos as suas misérias. Têm elles primores d'arte? Nós possuímos portentos naturaes, sem duvida melhores. Apresentam cultura mais fina? Lá chegaremos, pois para isso nos sobra capacidade. Pompeiam luxos esplendidos? Offerecemos incomparáveis suavidades de existência. Vangloriam-se de rutilante passado? Aguarda-nos deslumbrante porvir. Patenteiam maior força armada? Vivemos mais tranqüillos, mais fraternalmente... O brazileiro, em ultima analyse, passa dias mais felizes que o allemão, o francez, o inglez, dias mais tranqüillos, mais risonhos, mais esperançosos. Há, pois, em ser brazileiro o gozo de um beneficio, uma vantagem, uma superioridade."4

A ingenuidade do autor omitia a realidade de uma nação essencialmente agrícola, que mal conseguia disfarçar a miséria do campo, dominada pelos coronéis e recém-saída de uma economia baseada na mão- de-obra escrava.

Mas o progresso do país e a transformação de uma economia rural para uma urbano-industrial não arrefeceu o ufanismo, que recebeu o reforço da obra de Stephan Zweig Brasil, País do Futuro5e da canção de Jorge Ben Jor, que nos anos noventa celebrava o país abençoado por Deus e bonito por natureza. Chegou-se inclusive a proclamar que Deus é brasileiro e o papa é carioca.

Evocando a obra de Freud, O Mal-estar na Civilização6, o ufanismo servia, como tem servido até hoje, de mecanismo de compensação das frustrações da imensa população dos miseráveis disseminados pelos latifúndios.

Mas a alma brasileira manifestou-se ainda com nova instituição, o chamado jeito ou jeitinho, pelo qual se elogia a criatividade, a capacidade de safar-se de problemas que incomodam e adaptarse a quaisquer situações, ainda que mediante o desprezo das leis e regulamentos.

Ambos os significantes marcam o ethos brasileiro. Buscar suas origens e fundamentos importa em chafurdar o caldo de cultura de nossa herança histórico-cultural, na qual as origens ibéricas se articulam com o passado escravista- colonial que legou a prepotência das elites e a baixa estima do povo. Mas há também o fator geográfico, o calor tropical, tudo isso impregnado dos valores cristãos, a moral que abominava o pecado e de certa forma coibia a inversão e uso perverso dos valores sociais.

Quando Buarque de Holanda se refere ao brasileiro cordial7, trata-se de referência ao ponto de convergência desse amálgama histórico- cultural que concede prevalência à sensibilidade e à fantasia do Brazilian way of life em contraste com o caráter frio e calculista do europeu.

Nos dias atuais, o ufanismo se desvanece quando assistimos à destruição incessante da natureza ante as exigências de progresso econômico. A necessidade de crescer já provocou a quase total destruição da Mata Atlântica, e o Page 6 desaparecimento dos pinheirais, substituídos pelos desertos verdes de pinheiro canadense e florestas natimortas de eucaliptos. A erosão provoca cicatrizes em terras férteis, nossos rios são poluídos pelos dejetos ribeirinhos e extensas áreas da Amazônia são consumidas pelas queimadas e transformadas em pastagens.

Além disso, o ufanismo recebeu golpes mortais em virtude das tentativas autoritárias de substituir nossa herança educacional européia, que enfatizava o ensino humanístico, por modelos pedagógicos importados dos Estados Unidos, no afã de dotar o país dos engenheiros, médicos e técnicos de que necessitava.

Tratava-se, porém, de um equívoco pedagógico, que degenerou em desprezo pela cultura, favorecendo a ostentação, o mau gosto, a banalidade, a mediocridade, o ilusionismo e a frustração. Pior ainda, o Brasil tornou-se o receptáculo privilegiado do lixo cultural do primeiro mundo, principalmente quanto à música popular.

Na cultura média brasileira, hoje, todos diante da TV, assistindo aos domingões, sabadões, telenovelas e big brothers, e tornando-se presa fácil do consumismo inconseqüente, alheios à dura realidade do amanhã, às sobras do mundo-cão, ao desemprego, ao trabalho extenuante, à humilhação do salário aviltado.

E o jeitinho, outrora visto como qualidade que fazia bem ao ego, ainda que na região fronteiriça entre a lealdade e a contravenção, teve que enfrentar sua capitis diminutio, quando se articulou com outra invenção tupiniquim, a lei de Gérson, aquela que manda levar vantagem em tudo.

Mas isso não é privilégio dos brasileiros, é um aspecto da moralidade que se espalha por todo o planeta. Na ética das nações que forjaram sua estrutura espiritual na ideologia neoliberal, que se diz cristã, verifica-se o mais desenfreado utilitarismo e o mais despudorado dos hedonismos. É nossa lei de Gérson que parece contaminar o primeiro mundo.

Quando o presidente Kennedy proferiu a famosa frase: Não pergunte o que seu país pode fazer por você, mas sim o que você pode fazer pelo seu país, parece que o mundo entendeu o contrário: "Não pergunte o que você pode fazer por seu país, aproveite a oportunidade e tire dele o máximo proveito". E a lei de Gérson passou a ser utilizada para justificar o dualismo moral que manda proteger parentes e amigos dos eventuais detentores do poder político e manipular situações em proveito próprio.

Embora se conceda que tal generalização possa constituir erro de apreciação, pode-se tomá-la por hipótese extrema para elaborar um conceito de corrupção relacionado com o conceito de ética, a partir das possibilidades provindas da compreensão de uma utópica sociedade sem corrupção. Nos últimos setenta anos o Brasil transformou-se de economia rural-agrícola para urbano-industrial. Daí a pergunta: há espaço na sociedade de hoje para uma visão otimista da cultura brasileira?

Para respondê-la sugiro retomar a comparação com a Europa, seguindo a sugestão de Afonso Celso. Para não parecer pessimista em relação a nosso país, procuro salientar aspectos positivos e negativos nos quais seja possível estabelecer alguma diferenciação.

De positivo, temos na Europa a tendência à fundamentação lógica das decisões, a disciplina, o respeito às leis e acatamento às autoridades, a visão direta de objetivos a atingir e a aceitação do sacrifício pessoal em benefício da coletividade. No Brasil, também positivamente, a prevalência do sentimento e da fantasia, a espontaneidade nas atitudes, a amenidade nas relações, a transigência com a diferença, a tolerância com outrem, o amor e a caridade.

Enquanto na Europa prevalece a visão realista de quem já sofreu os bombardeios das cidades, de quem conheceu Guernica e o holocausto, nossa sociedade harmoniza os opostos e ameniza suas imensas desigualdades e tragédias com futebol e carnaval.

De negativo na mentalidade européia temos a memória da intolerância, o desprezo pelas minorias, o ódio racial e o nacionalismo exacerbado que quase destruiu a humanidade em duas guerras mundiais e estando em plena preparação da terceira, que promete ser a última.

Embora seja cediço que nada justifica uma guerra, o primeiro mundo parece haver incorporado a política da guerra como solução. E neste caso, a comparação com o Brasil leva ressaltar que, no mundo atual, a visão otimista do brasileiro ingênuo e cordial vê-se substituída pela do indivíduo desconfiado, violento, ambicioso e disposto a matar por alguns reais ou um par de tênis.

Mas o cenário mais característico do atual mal-estar na cultura brasileira tem a ver com a economia, o modo como o capitalismo vem se alastrando e impondo, o que afeta o mundo todo, incluindo o Brasil.

2. A doença social da corrupção

Deixo de lado, entretanto, as considerações sobre o momento ético deste país e permito-me algumas elucubrações sobre a antinomia "ética versus corrupção". Como o tema é extenso, procurarei ater-me brevitatis causa a dois pontos essenciais.

O primeiro toma por pressuposto que a corrupção é moléstia social com diferentes graus de gravidade. Entre uma sociedade corrompida até a alma e outra absolutamente ética...

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