A implementação do estatuto de Roma no âmbito interno brasileiro ante as recentes movimentações no Tribunal Penal Internacional

AutorPablo Rodrigo Alflen da Silva
Páginas379-298

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1 Introdução

Desde a primeira metade do século XX1 já se defendia o entendimento de que o estabelecimento da responsabilidade internacional pessoal2 por crimes contra a humanidade (delicta juris gentium) poderia ser tão eficaz como a “responsabilidade nacional”. Porém, ao mesmo tempo, criticava-se a existência de um Direito Penal Internacional face à inexistência de órgãos internacionais que aplicassem as normas penais, sendo que, a partir de então, a possibilidade de criação de um Tribunal Penal Internacional passou a se apresentar como o grande tema da humanidade. A intensificação das relações internacionais após esse período culminou com os trabalhos políticos e as Conferências da ONU para a criação do Estatuto de Roma e o estabelecimento do Tribunal Penal Internacional.

A adesão de inúmeros Estados ao Estatuto de Fundação do Tribunal Penal Internacional (a seguir, “TPI”) gerou compromissos para eles no que diz respeito à contribuição com a Corte para a consecução do seu fim primário, qual seja, o combate à impunidade, particularmente, dos crimes mais graves na ordem internacional.

Contudo, juntamente com tais compromissos, surgiu a exigência relativa à implementação do Estatuto de Roma no âmbito interno dos Estados-Partes. A realização de tal processo de implementação tem se apresentado de forma mais célere em determinados Estados do que em outros, quer seja por fatores jurídicos internos, quer seja por fatores políticos.

Nesse sentido, propõe-se analisar, primeiramente, no que consiste o processo de implementação e de onde decorre a exigência de implementação das regras do Estatuto de Roma, para, em um segundo momento, analisar alguns exemplos de esforços envidados em prol da implementação do Estatuto de Roma e os fatores que conduziram a celeridade no processo de implementação. E, apósPage 381 isso, verificar que a necessidade de proceder à implementação do Estatuto se intensifica com a entrada em funcionamento da Corte, sendo que, por fim, procede-se a um exame da implementação no âmbito brasileiro.

2 A exigência de implementação do estatuto de Roma no âmbito interno dos estados-partes

Em matéria de tratados internacionais, algumas expressões são de uso corrente, tais como, adoção, subscrição (assinatura), ratificação e internalização, posto que representam fases do processo de formação dos tratados. A expressão “implementação”, no entanto, apesar de ser utilizada na ordem internacional, especialmente em relação a tratados, passou a ser empregada com maior frequência no plano jurídico e político internacional por ocasião da instalação do Tribunal Penal Internacional.3

A implementação consiste em um processo de natureza jurídico-política que compreende a totalidade de medidas internas que devem ser tomadas para garantir que os Estados que se comprometeram com determinado organismo ou ator internacional, mediante a subscrição e subsequente ratificação de tratado internacional, estejam aptos a cumprir as regras nele estabelecidas e a cooperar com a consecução dos seus fins. Pode-se dizer, portanto, que consiste em uma parte do processo de internalização estabelecida de forma expressa ou tácita no Tratado.

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O Estatuto de Roma, isto é, o Tratado de fundação do TPI, que entrou em vigência em 01 de julho de 2002, satisfazendo o disposto no seu art. 1264, não estabelece nenhuma norma que determine expressamente a implementação, por meio da transposição de suas disposições ao plano interno dos Estados.5 No entanto, justamente em virtude disso, surge a questão acerca de que se é possível falar em implementação como decorrência exclusivamente da responsabilidade assumida pelos Estados. Em outras palavras: não havendo um mandato expresso no referido Estatuto que determine a implementação por parte dos Estados, é possível se falar em obrigatoriedade da implementação?

Por questão de política externa, no que diz respeito mais especificamente às relações internacionais, de fato, seria possível se falar que a ratificação e o subsequente depósito do instrumento de ratificação do Estatuto de per se conduziriam à observância dos fins à que se propõe este Tratado na ordem internacional. Para tanto, seria suficiente ter em vista que a concepção mesma do Estatuto está baseada na noção de que promover a investigação, processo e julgamento dos crimes mais graves que afetam o direito humanitário internacional corresponde aos próprios Estados6 e, portanto, a jurisdição do Tribunal Penal Internacional seria complementar a dos Estados. A partir daí, porém, sob outra perspectiva, se poderia afirmar que, numa ótica político-interna, a implementação representaria a melhor forma de fazer subsistir essa tarefa primária dos Estados-Partes.

Entretanto, somente sob o ponto de vista político (externo ou interno) não se teria uma base legitimante para a implementação. Com isso, é imprescindível encontrar o aspecto que legitima a necessidade de implementação, o qual somente pode ser encontrado sob a ótica jurídica. Nesse sentido, apesar de não haver regra expressa, tem-se que a exigência de implementação está implícita tanto em alguns dispositivos, como no próprio preâmbulo do Estatuto do TPI.

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Assim, o parágrafo 10 do preâmbulo do Estatuto enfatiza que a jurisdição do TPI é complementar às jurisdições penais nacionais, de forma que, com isso, os Estados-Partes expressam sua vontade de garantir o julgamento nacional dos crimes internacionais7. Por outro lado, o art. 88 prevê expressamente o dever de cooperação, sob todas as formas, dos Estados-Partes com o Tribunal.8 Porém, mais especificamente, o art. 17 do Estatuto prevê o chamado princípio da complementariedade, o qual pressupõe que os Estados-Partes sejam capazes de proceder à investigação e de promover o procedimento criminal dos crimes previstos no Estatuto9. Esse dispositivo cria uma presunção em favor da atuação por parte dos Estados10, isso porque, como se sabe, o processo perante o TPI somente é admissível à medida que não seja possível no âmbito doméstico, quer seja porque o Estado não está disposto a iniciar ações penais, quer seja porque não está em condições de fazê-lo. Isso é muito bem expressado por Schabas, ao referir:

In addition, because the Statute is predicated on complementarity, by which States themselves are presumed to be responsible for prosecuting suspects found on their own territory, many must also bring their substantive criminal law into line, enacting the offences of genocide, crimes against humanity and war crimes as defined in the Statute and ensuring that their courts can exercise universal jurisdiction over these crimes.11

Todavia, a abertura das regras no tocante a esse aspecto encontra sua ratio essendi justamente na necessidade de adequação constitucional do Estatuto,Page 384 resultando, assim, uma margem considerável de conformação.12 Disso resulta, nas palavras de Ambos, que “os Estados, no entanto, estão livres para se decidir entre uma implementação limitada ou completa”13. A solução mínima consistiria, portanto, na implementação por meio da introdução dos dispositivos processuais necessários para a cooperação e da ampliação do rol de crimes com a inclusão daqueles delitos jurisdicionados pelo TPI14.

Contudo, é mister ter em vista ainda justamente o fato de que o Tribunal Penal Internacional representa um marco na ordem internacional, posto que evidencia o entrelaçamento contínuo de atividades humanas, atuando como uma alavanca que produz mudança de conduta na direção de nosso padrão, ou seja, evidencia que as mesmas pressões operam na mesma direção, no sentido de produzir mudanças que transcendem os padrões de conduta e sentimentos. E como se poderá verificar em seguida (infra, 2), agregando-se esse aspecto à responsabilidade decorrente do compromisso assumido na ordem internacional (fator políticoexterno), de cooperar com o Tribunal Penal Internacional (fator político-interno) na consecução dos seus fins e das disposições do próprio Estatuto (fator jurídico), alguns Estados têm procedido com maior celeridade à implementação.

3 Alguns exemplos internacionais de esforços envidados em prol da implementação

Em 11 de dezembro de 2000, a Alemanha ratificou o Estatuto do TPI. Porém, face à necessidade de implementação do Estatuto de Roma, já no momento de sua subscrição, efetuada em 09 de dezembro de 1998, o governo alemão manifestava a intenção de adaptar o Direito Penal alemão interno vigente às suas regras. E tendo em vista esse propósito, em outubro de 1999 o governo alemão designou um grupo de estudiosos para trabalhar na elaboração do projeto de lei para a transposiçãoPage 385 do Estatuto (a esse grupo pertenciam seis cientistas do âmbito do Direito Penal e do Direito Internacional: Andreas Zimmermann, Claus Kreß, Gerhard Werle, Horst Fischer, Kai Ambos e Thomas Weigend). Em maio de 2001, foi apresentado o “Projeto de Trabalho de uma Lei de Introdução ao Código Penal Internacional”. Em face disso, em 30 de junho de 2002, justamente um dia antes da entrada em vigência do Estatuto do TPI, entrou em vigência o Código Penal Internacional alemão (Völkerstrafgesetzbuch)15, o qual contém as disposições penais que afetam a comunidade internacional como um todo, a saber: o genocídio, os crimes contra a humanidade e os crimes de guerra. Em realidade, o Código Penal Internacional alemão foi parte de um grande “pacote” de leis elaborado, visando à transposição do Estatuto de Roma. Com a Lei de transposição do Estatuto do TPI, publicada no BGBl. 2000, II, S. 1393, o legislador alemão criou os pressupostos para a entrada em vigência do Estatuto na...

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