Espetáculos públicos e exibição de animais

AutorVânia Tuglio
CargoPromotora de Justiça (SP), Assessora do Centro de Apoio Operacional de Urbanismo e Meio Ambiente do Ministério Público do Estado de São Paulo
Páginas231-247

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I - Introdução ao tema

Desde que se tem notícia da existência do homem sobre a terra, está ele, de uma forma ou de outra, interagindo com os animais. Das arenas romanas até nossos dias, vê-se que o homem pouco evoluiu, vez que ainda se regozija com o sofrimento alheio. Com o monoteísmo, difundiu-se a idéia de que o homem deveria dominar a natureza e as criaturas que nela habitavam, dogma que tem sido levado a efeito de forma irracional e irresponsável.

É relativamente recente a consciência da finitude dos recursos naturais. Do mesmo modo a idéia acerca da dignidade animal e, como decorrência, a visão de que os animais são, por si mesmos, detentores de direitos em face do homem.

A questão é posta, por outro lado, dentro do conceito amplo de dignidade humana e, especificamente, em comparação com as diretrizes traçadas pela União no respeitante à política de educação ambiental.

Analisa-se a questão, ainda, sob a ótica da ciência, da ética e da medicina veterinária.

Todas essas considerações são contrapostas aos preceitos e princípios constitucionais ambientais, focando, depois, a análise sobre a constitucionalidade da legislação específica infraconstitucional, propondo, ao final, adoção de medidas práticas visando a mais ampla e efetiva defesa da vida animal.

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II - Legislação aplicável

O Ministério Público fundamenta sua atuação protetiva da fauna no disposto nos artigos 129, inciso III e 225, § 1º, inciso VII, da Constituição da República e no artigo 5º, da Lei nº 7347/85.

Ressalte-se, ainda, que o Brasil é subscritor de um tratado internacional denominado "Declaração Universal dos Direitos dos Animais", firmado em Bruxelas na Bélgica, em 27/01/78, em Assembléia da UNESCO, onde é conferido a todos os bichos o direito à vida e à existência, à consideração e ao respeito, à cura e à proteção do homem. Declara o repúdio à tortura para com os animais, impedindo a destruição ou violação da integridade de um ser vivo e prevê no artigo 3º que nenhum animal será submetido a maus tratos e a atos cruéis e no artigo 5º que cada animal pertencente a uma espécie que vive habitualmente no ambiente do homem, tem o direito de viver e crescer segundo o ritmo e as condições de vida e de liberdade que são próprias da sua espécie, sendo que toda modificação desse ritmo e dessas condições, imposta pelo homem para fins mercantis, é contrária a esse direito. De ressaltar-se, por fim, que o artigo 10 prevê que nenhum animal deve ser usado para divertimento do homem e que a exibição deles e os espetáculos que deles se utilizam são incompatíveis com a sua dignidade.

Merece destaque, também, o Decreto Federal nº 24.645/34 que estabelece que todos os animais existentes no país são tutelados pelo Estado (artigo 1º), considerando maus tratos (artigo 3º) a prática de ato de abuso ou crueldade contra eles (inciso I), golpear, ferir ou mutilar, voluntariamente, qualquer órgão ou tecido de economia (inciso IV), acrescentar aos apetrechos nele utilizados acessórios que os molestem ou lhes perturbem o funcionamento do organismo (inciso IX), realizar ou promover lutas entre animais da mesma espécie ou espécie diferente, touradas e simulação de touradas, ainda mesmo em lugar privado (inciso XXIX), além de arrojar aves e outros animais nas casas de espetáculos e exibi-los para tirar sorte ou realizar acrobacias (inciso XXX).

Por fim, não se deve olvidar que a Lei Federal nº 9.605/95 prevê como crime, entre outras condutas lesivas ao meio ambiente, a prática de ato de abuso e maus tratos contra animais (artigo 32).

No estado de São Paulo foi editada recentemente, em 25 de agosto do ano em curso, a Lei Estadual nº 11.977, que instituiu o Código de Proteção aos Animais do Estado e onde se vê disposições sobre caça, pesca, animais domésticos e de tração, zoonozes e experimentação animal, entre outras. Destaca-se na Seção VI

- "Das Atividades de Diversão, Cultura e Entretenimento" - disposições expressas vedando exibição de animais em circos, rinhas, touradas e simulacros, além de vaquejadas. Especificamente em relação aos rodeios e similares, proíbem-se expressamente as provas "que envolvam o uso de instrumentos que visem induzir o animal à realização de atividade ou comportamento que não se produziria naturalmente sem o emprego de artifícios."

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Fazendo uma leitura ampla das disposições acima citadas, conclui-se que a exibição de animais para fins de diversão humana e visando a obtenção de lucro é prática vedada pela nossa legislação, o que se nos afigura absolutamente correto porque a submissão desses animais aos caprichos do homem implica, necessariamente, na prática de maus tratos, revelando, no mais das vezes, tratamento cruel.

Esse conjunto normativo pode ainda ser robustecido quando analisado sob a ótica dos preceitos da política educacional, que tem como princípios básicos, entre outros, o enfoque humanista e a vinculação entre a ética, a educação, o trabalho e as práticas sociais. Como direito de todos, a educação ambiental visa, entre outros, o engajamento da sociedade na preservação do ambiente, devendo ser mantida atenção permanente à formação de valores voltados para a prevenção, identificação e solução dos problemas ambientais. Objetiva, ainda, o desenvolvimento de uma compreensão integrada do meio ambiente em suas múltiplas e complexas relações e a participação permanente e responsável, na preservação do equilíbrio do meio ambiente, entendendo-se a defesa da qualidade ambiental como um valor inseparável do exercício da cidadania.

Os maus-tratos e o tratamento cruel dispensado aos animais nas exibições públicas, além de contrariar os preceitos da política nacional de educação ambiental, constituem exemplos a serem evitados. Nesses espetáculos é livre o acesso de crianças e adolescentes, seres em formação por excelência. Assim, ignorar o sofrimento animal que permeia todas essas exibições é conduta que pode evoluir para a insensibilidade em relação ao semelhante. Até porque, em estudo desenvolvido pelo FBI, a maioria dos assassinos em série possui histórico de maus-tratos aos animais na infância. Entre nós, o maníaco do parque também tem esta particularidade.

III - Estudos veterinários

Vários estudos científicos e de medicina veterinária confirmam a possibilidade de os animais experimentarem sensações de dor física e mental. Outras experiências dão conta de que os primatas aprenderam a se comunicar com os cientistas através da linguagem dos mudos, transmitindo esse aprendizado aos seus descendentes. A bioética também tem trazido contribuições importantes no tratamento do tema. Vejamos.

Um estudo recente intitulado "Bases metodológicas e Neurofuncionais da Avaliação de Ocorrência de Dor/Sofrimento em Animais" afirma que apesar da complexidade do tema, tendo em vista que a experiência de dor é subjetiva e que os animais, tal qual os bebês humanos, não verbalizam suas sensações, é possível fazer uma avaliação baseando-se em parâmetros estabelecidos pela LASA - Laboratory Animal Science Association.

Assim, como há prova de similitude de organização morfofuncional entre o ser humano e os animais, particularmente os mamíferos, é possível a aplicação dos princípios da homologia e da analogia.

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É que tanto os homens quanto os animais possuem uma seqüência de estruturas nervosas responsáveis pela recepção e condução dos estímulos nociceptivos (causadores de dor) até determinadas regiões do cérebro. No tronco encefálico dos mamíferos há de ser ressaltada a atuação do sistema ativador reticular ascendente (SARA), que faz a passagem pelo tronco encefálico dos estímulos de sensibilidade geral (dor, pressão, calor etc), da visão do que está ocorrendo (através do nervo óptico), dos estímulos sonoros (via nervo vestíbulococlear) e dos estímulos da sensibilidade geral da cabeça (via nervo trigêmeo).

Essa complexa organização morfofuncional é indicativa de que o animal tem condição de avaliar e interpretar a adversidade da situação a que se encontra submetido, disso resultando dor física e sofrimento mental.

Assim, é cientificamente válido que para avaliar a dor animal o homem coloquese mentalmente no lugar daquele ser, constituindo esse procedimento, em poucas palavras, a realização do princípio da homologia. Em tal situação, se ainda restar dúvida acerca da ocorrência de experiência dolorosa a opção mais coerente é a de poupar aquele ser da vivência de dor ou sofrimento.

Dentro da ciência são estudados métodos de detecção da dor nos animais, destacando-se os sinais fisiológicos e o comportamento sugestivo. Dentre os sinais fisiológicos é de ser ressaltada a ocorrência de midríase na presença da luz, quando o esperado seria a miose. Essa "inversão" é indicativa de reação de alarme presente quando o animal se sente ameaçado, agredido, assustado, com medo ou em pânico. Outro sinal indicativo dessa mesma situação é a taquicardia em razão do aumento da freqüência cardíaca, decorrente do maior aporte sangüíneo para os músculos (preparação para a luta ou a fuga). Já o comportamento sugestivo refere-se a movimentos de flexão e extensão dos membros, visando expulsar do corpo o agente agressor.

Enfim, há suporte técnico abalizado e suficiente para afirmar que os animais são seres capazes de experimentar sofrimento físico e mental.

IV - Por trás dos espetáculos

É nos circos, rodeios e vaquejadas, espetáculos aberto ao público, que se dá o uso freqüente de animais.

Nos circos são utilizados animais selvagens (leões, tigres, ursos, elefantes) e domésticos ou domesticados (cachorros e cavalos) que são submetidos a "treinamentos" desde tenra idade. Esses treinamentos visam "dobrar"...

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