A escrita da Lei

AutorMayr Godoy
Ocupação do AutorMestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo
Páginas146-190

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1. A filologia legislativa

A lei está presa às regras da boa escrita que se inserem na filologia legislativa. A filologia estuda a cultura de um povo através de

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seus documentos literários30, em particular, a filologia legislativa estuda os textos escritos da lei, especialmente, o estilo legislativo e a terminologia legislativa e, complementarmente, os elementos gramaticais de aplicação essencial na redação da lei.

O estudo da filologia legislativa está possibilitando a melhor elaboração da lei, na medida em que a pesquisa legislativa, as publicações especializadas e os simpósios da espécie vão oferecendo ao legislador condições de aperfeiçoamento na escrita normativa.

2. O estilo legislativo

A lei tem seu estilo, isto é, sua característica própria na arte de ser escrita. O estilo (do latim, stilum, ponteiro com que se escrevia nas tábuas cobertas de cera ou na placa de argila fresca) passou a significar a forma literária, as marcas, as qualidades essenciais, quais sejam quantitativas ou qualitativas em relação ao uso das palavras, dos ornatos, dos tropos, das galas, das figuras de linguagem31.

Quantitativamente, nas palavras que a compõem a lei deve ter o estilo atico, lembrando Atenas32, onde foi primitivamente desenvolvida: as palavras no seu uso exato, sem abuso do número, o equilíbrio perfeito do fundo e da forma, expressando corretamente a vontade do legislador, em oposição aos estilos asiático, exagerado na figuração ou lacômico, pecando pelo hermetismo ou ródio, cheio de retórica.

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Por outro lado, qualitativamente, pelas palavras que usa, a lei é do estilo sutil: terminologia própria, com uso medido das palavras para transmitir com precisão a ideia legislativa, em oposição aos estilos médio e sublime, que incorporam os ornatos, as galas e os tropos33.

Ático e sutil, a lei vem buscando o seu estilo próprio, evoluindo e adaptando-se, no tempo, conforme os espaços geográficos, consoante os costumes dos povos.

Há, portanto, em curso, desde a antiguidade e, em todos os países, a busca de um estilo próprio à redação dos projetos legislativos.

No Brasil, o estilo da lei evoluiu muito, havendo já sinais de sedimentação. Isto importa dizer ter chegado a um estágio de maturidade no qual poucas serão as alterações, a não ser o aperfeiçoamento, pelo uso mais técnico nos parlamentos e nos gabinetes, nas três esferas onde se legisla: União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

É inegável a constatação de imperfeições em diplomas legais. Isto não tira os méritos do estágio alcançado de maneira geral, mas reforça a afirmação de que se deve redigir os projetos consoante o melhor estilo, ou seja, tendo como paradigma textos como foi o do Código Civil Brasileiro de 1916, hoje revogado face a atualização do direito.

O estilo de escrever os diplomas legais não deve ser confun-dido com a redação do projeto. A redação envolve a escrita, com o estilo literário e a fórmula. Esta, em si, tem também o seu regramento consolidado. No estilo da lei se engloba o fundo e a forma:

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naquele se descobre a vontade legislativa com seu conteúdo característico e, nesta, esse conteúdo se faz conhecido pela linguagem legislativa, com terminologia própria.

O projeto precisa ser redigido de forma clara, concisa, sem palavras dúbias, nem períodos longos, em texto não rebuscado.

A simplicidade da linguagem é a regra, todavia, nunca em prejuízo da precisão, marca fundamental do texto normativo.

3. As qualidades do estilo

Simplicidade, clareza, precisão, concisão, correção, coerência, pure-za, eufonia, propriedade, ordem, unidade e originalidade

Impõe-se, na redação, a conciliação de, pelo menos, cinco qualidades essenciais na linguagem legislativa: simplicidade, precisão, clareza, concisão e correção. Puristas, experientes, pedem ainda coerência, pureza, eufonia, propriedade e mais qualidades, algumas das quais, embora desejáveis, não formam na essência da linguagem legislativa34.

SIMPLICIDADE

A linguagem dos textos legais repudia as figuras, os ornatos, os tropos, as galas mais próprias dos estilos sublime e médio, endereçados à área literária apurada, rica, dos leitores sequiosos do expressar burilado nas figurações.

O estilo da linguagem legislativa é o sutil, com suas palavras próprias; todavia, sem pobreza de expressão, escorreito, preocupado com a mensagem do legislador, apurado na transmissão da

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ideia legislativa, com termos concisos. A riqueza está na forma precisa e clara, registrando o pensamento do autor, simplesmente, despreocupado de engalanar a frase articulada.

Já se disse ser o Código Civil Brasileiro de 1916 o exemplo frisante da obra clássica do estilo legislativo. Tanto que se fosse fazer a análise literária do seu texto, dir-se-ia tudo o respeito da boa linguagem das normas legais, com destaque maior para a simplicidade.

CLAREZA

A compreensão do texto está na razão direta da clareza de sua linguagem. Os termos ambíguos, equívocos; imprecisos, perturbam o entendimento. Não é só isso que afeta a qualidade da clareza nas frases longas, rebuscadas, com mais de uma ideia no texto, dificultam o leitor entender a lei. Redigir com clareza importa respeitar regras gramaticais, conhecer bem o assunto e ter paciência criadora.

Essa regra afasta dois assuntos num só artigo.
É aconselhável, ao legislador, submeter seu trabalho antes de levá-lo ao Plenário a testes de entendimento por pessoas acostumadas á leitura de textos legais. Parece ser experimentação comum, no entusiasmo da concepção da ideia, uma legiferação apressada, revelando o pensamento do autor, sem, no entanto, a preocupação de saber se o imaginado será facilmente compreendido pelos destinatários, ou mesmo se a terminologia se adapta ao assunto legislado. A improvisação, aqui não é confiável, ainda mesmo, aparentemente, para o bem de todos.

O projeto submetido a esses testes de clareza, se não bem entendido, abre oportunidade ao uso dos dicionários, ao cotejo com outros textos legais, à consulta à boa doutrina do assunto enfocado, resultando sempre, em aprimoramento da qualidade. A clare-

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za não deflui exclusivamente do domínio do vernáculo; ela está, outrossim, aferrada à matéria em exposição. O conhecimento do assunto, pelo autor, infunde certeza ao leitor da norma.

A clareza, para dizer melhor, dizer de forma límpida, requer do autor o somatório, pelo menos, de dois conhecimentos: do assunto e da filologia.

Por isso, muitas vezes, o legislador, no domínio da matéria a ser regulada, se vale do assessor, até mesmo os de cultura respeitável, pois a função profissional da assessoria exige dela a especiali-dade no assunto e no trato da redação da lei. O comando político, a vontade de criar o direito novo, a concepção desse direito, é própria do legislador. Sua intenção, todavia, não deve ser prejudicada por eventual falta de clareza do autor para imprimir melhor redação da norma. A razão das assessorias é, principalmente, essa, a de assegurar meios para os políticos legislarem de forma a atingir os objetivos de suas plataformas, de seus programas, de tornar penetrante a vontade do legislador.

Não se pode pretender da clareza dos textos legais a mesma exigível de outras obras literárias, onde o fim está no deleite, pela leitura. No texto legal, intelegível, compreensível, o fim é o regramento, para uma comunidade, de um assunto muitas vezes técnico, impeditivo da compreensão imediata; todavia, redigido de forma clara, excludente de obscuridades.

Deve, no entanto, ser o mais transparente possível, e aí reside a grande dificuldade a ser superada pelo redator da lei.

PRECISÃO

Constitui a precisão um eventual ponto vulnerável da norma legal. Cabe ao legislador forjar o texto com rigor para imprimir-lhe exatidão, para assegurar-lhe uma só interpretação – aquela por ele imaginada, expurgando a imprecisão.

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A precisão não deve só garantir a unidade interpretativa do texto: está ínsito nessa qualidade, o entendimento direto, fácil, imediato.

Evidentemente, essa compreensão, a ponto de saltar aos olhos, na primeira leitura, não se pretende de todo o universo dos destinatários da lei. Fica afastada a ideia do entendimento imediato pelos leigos, pelo menos afeitos aos termos legais. Seria o ideal; todavia, está no plano da utopia uma sociedade onde todos, de plano, entendessem a lei.

A precisão da linguagem da lei condiciona a eficácia do direito35.

Para elaborar o texto legal, com precisão, o legislador deve lançar sua ideia no papel, despreocupado com as palavras usadas. Terá ele a redação original, donde irá tirando termos imprecisos, para substituí-los por outros, escrupulosamente escolhidos, com o propósito de assegurar a propriedade da expressão. Refeito o texto, às vezes, se defronta com algo desagradável na eufonia, ou rebuscado, ou hermético. Opera-se, então, uma segunda atividade – a de tornar a frase mais agradável à leitura, sem transformar a busca da clareza num enfraquecimento da precisão. Essas opera-ções serão várias até se conseguir o texto ideal, palatável ao usuário do direito.

Embora a ideia central da precisão seja o entendimento insuscetível de dúvidas, percebido sem dificuldades, essa qualidade só pode ser assim aferida pela média da clientela da lei.

A busca de doutos para a interpretação denota a falta de precisão, porém, se mesmo entre os doutos pairam dúvidas na sua compreensão, fica-se diante de uma norma...

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