Escravocratas, machistas e neoliberais: discursos sobre o trabalho doméstico no Brasil

AutorLara Parreira Faria Borges e Renata Queiroz Dutra
Páginas192-212

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"13 de maio. Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos.

...Nas prisões os negros eram os bodes espiatórios. Mas os brancos agora são mais cultos. E não nos trata com despreso. Que Deus ilumine os brancos para que os pretos sejam feliz."1

"28 de maio... A vida é igual um livro. Só depois de ter lido é que sabemos o que encerra. E nós quando estamos no fim da vida é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha, até aqui, tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar onde eu moro."2

Carolina Maria de Jesus3

Introdução

Genebra, Suíça, 16 de julho de 2011 - A centésima (100ª) Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho aprova a Convenção n. 189 por 396 votos favoráveis, 16 contrários e 63 abstenções, o que equivale à aprovação de 83% dos delegados presentes, e a Recomendação n. 201, por 434 votos favoráveis, 8 contrários e 42 abstenções, o que equivale a 89% dos delegados presentes. O Estado brasileiro se manifesta favoravelmente a ambos os instrumentos, cujo objeto era a proteção jurídica aos trabalhadores domésticos.

Brasil, 2 de abril de 2013 - Como forma de adequação aos referidos instrumentos internacionais, as Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal promulgam a Emenda Constitucional n. 72, alterando a redação do parágrafo único do art. da Constituição para igualar os direitos das trabalhadoras domésticas aos direitos dos demais trabalhadores urbanos e rurais.

Brasil, 3 de abril de 2013 - A Revista Veja veicula reportagem em sua capa, com a seguinte chamada: "Você amanhã: as novas regras trabalhistas são um marco civilizatório para o Brasil e um sinal de que em breve as tarefas domésticas serão divididas entre toda a família." Por trás do título, a capa do veículo de comunicação traz a foto de um homem branco, trajando terno, gravata e avental, lavando louça com expressão de insatisfação4.

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Brasil, 27 de agosto de 2013 - Jornalista comenta em rede social a respeito das características físicas das médicas cubanas que chegavam ao Brasil para prestar serviços por meio do Programa Governamental Mais Médicos: "Me perdoem se for preconceito, mas essas médicas cubanas têm uma cara de empregada doméstica. Será que são médicas mesmo?"5.

Brasil, 26 de setembro de 2014 - A revista Carta Capital veicula matéria jornalística com o seguinte título: "Minha empregada está muito abusada." A crítica contida na reportagem se desenvolvia a partir da dificuldade de explicar a um estrangeiro, em passagem pelo Brasil, qual era o exato sentido da palavra "abusada", cujo emprego, no contexto em que se colocava, parecia de todo óbvio para os interlocutores brasileiros6.

Brasil, 12 de março de 2015 - O jornal "O Globo" publica reportagem com o seguinte título: "Polêmica: ‘As empregadas perderam a noção de limite’, diz consultora." A matéria consistia em entrevista com Lisa Mackey, consul-tora que oferecia um "curso de atualização para secretárias do lar", "ensinando-as" a evitar a violação de "limites"7.

Brasil, 2 de maio de 2015 - Anúncio veiculado em um jornal de grande circulação do Estado do Pará: "Casal evangélico precisa adotar uma menina de 12 a 18 anos que resida, para cuidar de uma bebê de 1 ano que possa morar e estudar, ele empresário e ela também."8

Brasil, 1 de junho de 2015 - A Presidenta da República sanciona a Lei Complementar n. 150, contendo a regulamentação do trabalho doméstico no Brasil após a ampliação de direitos sociais promovida pela Emenda Constitucional n. 72/2013.

Desde a aprovação da Convenção n. 189 da OIT em 2011, a sociedade brasileira se envolveu em debates públicos a respeito da inclusão jurídica de trabalhadoras e trabalhadores domésticos.

Como todo processo de regulação social do trabalho, a construção da regulação do trabalho doméstico decorre da síntese histórica possível dos diversos discursos e poderes que se opõem dentro de uma determinada sociedade acerca dessa relação social. Em se tratando de exploração de trabalho, a dinâmica é necessariamente conflitiva, na medida em que interesses opostos de patrões e patroas e empregadas e empregados atritam o processo de regulação do trabalho em direções distintas: os primeiros pela redução dos custos e diminuição das responsabilidades trabalhistas, os segundos pela melhoria de suas condições remuneratórias, de vida, de inclusão e de segurança, dentre outras pautas.

Nesse enredo, as polarizações entre os discursos encontram reforços (positivos e negativos) nos espaços de poder, na mídia e nos diversos canais de formação de opinião, que seletivamente acabam por definir as narrativas que merecem e que não merecem circulação, intervindo decisivamente no processo.

O caráter discursivo do Direito atribui importância central aos debates públicos e à autoria das narrativas que se constroem em torno de um dado tema.

No caso do trabalho doméstico, as narrativas que hegemonizam o debate ocupam lugares de fala específicos, demarcados e reforçados por condições de poder e de privilégios historicamente reproduzidos.

Os discursos hegemônicos, de outra mão, impõem o silenciamento e a invisibilidade de outras narrativas que a eles se contrapõem.

É interessante observar que em torno da discussão a respeito da regulamentação do trabalho doméstico, os principais aspectos suscitados no debate foram os impactos econômicos da ampliação de direitos sobre as famílias, sobretudo as famílias de classe média, e o risco do desemprego, como problemática colocada não somente a partir da perspectiva das trabalhadoras e trabalhadores domésticos que suportariam esse impacto social, mas também (e não seria arriscado dizer principalmente), os impactos que a dificuldade de empregar trabalhadores e trabalhadoras domésticas poderiam impor à organização das famílias que contratam tais serviços, inclusive do ponto de vista de sua disponibilidade para o trabalho e distribuição interna (em regra sexualizada) das obrigações reprodutivas.

É sintomático que o debate não tenha se estabelecido e sido enfrentado como uma pauta de inclusão social de mulheres negras que, ainda hoje, amargam os processos de exclusão decorrentes da reprodução social de estigmas e posições sociojurídicas decorrentes do nosso período escravagista.

Tal narrativa é apagada nos debates públicos, como se, ao regular o trabalho dessas mulheres negras, o Estado brasileiro estivesse partindo de condições plenas de igualdade, sem que o passado produzisse seu eco. O silenciamento dos discursos de raça e gênero que subjazem a esse debate, em verdade, faz com que subsistam, de modo violento, os discursos machistas e racistas que se lançam sobre o trabalho doméstico.

Mais ainda, a regulamentação do trabalho doméstico se insere num contexto mais geral de ofensiva contra o direito social no país, que recua de forma sem precedentes nos primeiros cem dias da legislatura 2015-20199. O discurso do liberalismo clássico, requentado pela ideologia neoliberal,

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volta a agir no sentido de culpar direitos e garantias trabalhistas e previdenciárias pelo fraco desempenho da economia do país, condicionando a possibilidade de desenvolvimento ao recuo dos custos sociais e utilizando para tanto, a clássica argumentação da ameaça de desemprego, como se houvesse uma relação direta entre redução de direitos sociais e aumento das taxas de emprego.

É esse entrecruzamento de discursos, aliado ao silenciamento de tantos outros, que se torna relevante para a análise da construção dos argumentos sociais, econômicos e políticos que conformam a concepção jurídica em disputa sobre o trabalho doméstico no Brasil. Portanto, a partir deles, em especial dos discursos machistas, escravocratas (necessariamente racistas) e elitistas (que também denominaremos aqui de neoliberais), desenvolveremos a análise do tema no presente artigo.

Os privilégios sustentam-se exatamente nas violações que excluem e discriminam socialmente alguns grupos e pessoas. A concretização de privilégios acaba por encontrar ressonância no ordenamento jurídico e nos discursos institucionais, por isso, a importância em se pensar a justiça para além do Direito posto.

1. Controles de discurso: entre direito e justiça

As instituições criam círculos de atenção e silêncio para compor os começos solenes e, nesse contexto, Michel Foucault afirma que "o discurso está na ordem das leis"10. O poder do discurso sobre as leis provém das pessoas que os proferem11. Assim, é possível observar que uma mudança no texto constitucional e posteriormente a elaboração de projetos de lei para regulamentar essa transformação constitucional apresentam começos que são cercados por discursos em círculos de atenção e silêncio.

Michel Foucault, ao questionar sobre os riscos do discurso, indaga: "[m]as, o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente? Onde, afinal, está o perigo?"12

O filósofo chega à conclusão de que a sociedade controla e seleciona os discursos que ganharão espaços de poder13.

Uma das técnicas de seleção é a exclusão de discursos do meio social, seja pela interdição em razão de o objeto de discurso ser um tabu, seja pela rejeição do locutor que é considerado louco e não merece crédito por seu discurso, seja de um jogo de verdadeiro e falso14.

Essa seleção de discursos e de espaços de silêncio permite a manutenção de um status quo de poder de modo...

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