Por um esclarecimento de conceitos

AutorIñigo Pedrueza Carranza
Páginas96-116

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Introdução

Na tentativa* de aproximar1 ao presente as discussões teóricosociológicas que têm lugar na Academia, e da mesma maneira realizar uma breve síntese da nossa dissertação de Mestrado, propusemo-nos, com a modéstia que o tamanho do problema exige, interpretar e definir o conceito de sociedade civil e a sua relação com os Novos Movimentos Sociais (NMS).

O fato de o conceito ser utilizado com grande freqüência e sobretudo com diferentes perspectivas, e a importância do termo na sociedade e na discussão política, valoriza o seu estudo crítico. Decerto, para a nossa pesquisa do Mestrado 2 foi muito importante definir o que hoje se entende por sociedade civil, o que se diferenciava e até se opõe, como veremos, aos significados atribuídos anteriormente. Desde o começo da nossa dissertação, a quantidade e a diversidade de acepções levaram-nos a desconfiar da absoluta certeza unidirecional que muitos atribuem ao conceito quando, paradoxalmente, o nosso mundo parece cheio de incertezas.

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Os conceitos sociedade civil e movimentos sociais têm mudado com o decorrer do tempo, chegando a ser nomeados com um mesmo título, fatos diferentes e às vezes até antagônicos. Este uso contraditório poderia nos levar a uma discussão sem utilidade sobre a essência do termo, na qual iriam concorrer por uma definição mais exata e verdadeira, liberais e neoliberais, socialistas, comunistas, partidários da terceira via, ambientalistas, pós-modernos e feministas radicais, entre outros. No entanto, as Ciências Sociais só são úteis quando conseguem estabelecer estruturas analíticas suficientemente precisas para permitir o encaixamento dos fatos e dos acontecimentos em argumentações mais gerais. Desta maneira são possíveis a comparação e a articulação de “teorias” baseadas na recorrência, com um certo poder premonitório. Assim, a necessidade de esclarecer as significações nas Ciências Sociais é um dos aspectos mais pertinentes e obrigatórios para encarar com maiores garantias de sucesso a análise das nossas sociedades. É por isto que tentaremos observar os problemas derivados de conceituações excessivamente restritas e deterministas que dificultam a integração dos novos fenômenos no resto da estrutura social.

Conceituação hegemônica de sociedade civil

A respeito da sociedade civil e do seu elemento complementar, os novos movimentos sociais, encontramos uma definição hegemônica, aceita normalmente, segundo a qual sociedade civil referir-se-ia ao âmbito público, mas não estatal, composto por organizações sociais de caráter privado, mas sem ânimo de lucro nem interesse corporativo 3 , as quais garantiriam ou tentariam garantir a cidadania. A cidadania será entendida como o consenso natural na procura do bem comum e na eleição das necessidades e objetivos mais adequados para a sociedade em conjunto.

Os NMS compartilhariam características comuns no que diz respeito à cultura política; à sua natureza cívica e pacifista; à descentralização e à autonomia; à tolerância pluralista fundada na diversidade cultural e humana; e também a outros elementos como a justiça social,Page 98o respeito à natureza e uma democracia mais participativa e direta. Porém, um dos traços mais importantes é a desconfiança ou a rejeição do Estado como principal marco, tanto de reivindicação como de garantia da cidadania. Precisamente, Scherer-Warren diz que é preciso estudar as relações entre os NMS e o Estado, tendo que considerar as novas concepções sobre o espaço do poder civil perante o Estado (1993, p. 24). Por conseguinte, a sociedade civil construiria uma nova cidadania essencialmente positiva e útil aos interesses de todos os seus membros, já que as organizações sociais que a compõem careceriam de interesses corporativos e teriam um engajamento norteado na procura do bem comum.

Ainda que haja várias interpretações, todas elas têm como o seu pressuposto fundamental esta nova visão da cidadania. Os NMS serão os eixos dinâmicos desta nova organização social; nós nomearemos esta conceituação de sociedade civil restrita . Isto pressupõe a modificação das acepções anteriores, nos quais o conceito tinha estado vinculado à cidadania política ou ao âmbito econômico da sociedade. Dentro da primeira visão, Voltaire, Rousseau, Sieyès e toda a tradição baseada na Revolução Francesa fez esforço por garantir que os direitos civis e políticos fossem inclusos na relação entre Estado e sociedade. De fato, o Estado não é mais do que a propriedade pública dos cidadãos representada numa instituição. Se o cidadão foi, durante a Idade Média, o mero habitante de uma cidade, depois da Révolution será um membro participante, titular de uma parte da nação, nação que no seu significado primeiro é só a comunidade política institucionalizada no Estado: “ Qu’estce qu’une nation? Un corps d’Associés vivant sous une loi commune et représentés par la même législature ” (SIEYÈS, 1982, p.31).

É claro que alguns autores ainda mantêm certa relação entre a cidadania e o Estado, mas a maioria valoriza muito pouco essa relação. Entre os primeiros, para Habermas a sociedade civil seria sobretudo um âmbito de decisão moral. O autor alemão realizou uma boa definição dos NMS e dos seus interesses e objetivos em uma versão resumida da sua obra Teoria da ação comunicativa , segundo a qual:

The new social movements are the seam between the system and life world and are symptomatic of the waning of evidence of the old value standards reflected in the concepts of natural law, economic laws, rational man, etc. They mark new conflicts, Page 99 which no longer arise in the areas of material reproduction; they are no longer channelled through parties and organisations; and they can no longer alleviated by compensations that conform the system. Rather, the new conflicts arise in areas of cultural reproduction, social integration and socialisation. They are manifested in sub-institutional, extra-parliamentary forms of protest... In short, the new conflicts are no sparked by problems of distribution, but concern the grammar of forms of life (HABERMAS, 1981, p. 34).

Ele acredita na mudança de sociedade, na passagem para uma sociedade pós-materialista que enxerga a sociedade civil e os NMS como novos eixos da sociedade. Partindo de uma teoria que diferencia a perspectiva de análise sob dois âmbitos dentro da sociedade contemporânea: o instrumental , contraditório, e o simbólico , consensual (Habermas 1987, p. 431-434), seu raciocínio remete a uma visão pouco dialética, que tem a ver com o ponto de partida, um Estado-previdência suficientemente aprimorado para reduzir e sobretudo mudar o conflito de classes no mundo ocidental. Um exemplo disto seria que os novos conflitos têm a ver com a parte “simbólica” e não com o mundo do trabalho. Assim, seria nos NMS onde seriam encontradas as possibilidades de mudança societária na procura de maiores liberdades e justiça, e seria no campo da cultura e da identidade onde surgiriam as novas lutas e os conflitos e não no âmbito material ou do trabalho. No entanto, o seu ponto de ancoragem talvez seja otimista demais, já que na atualidade o welfare state não cresce, mas se reduz.

Habermas respeita o papel do Estado, mas não é essa a perspectiva comum. Donati desloca-se para o âmbito dos NMS, que ele nomeia terceiro setor, dando-lhe uma determinação normativa, um implícito dever ser , sendo esta a opção hegemônica hoje:

Em poucas palavras, do mesmo modo que a sociedade civil da primeira modernidade tem sido associada com a figura do mercado, na segunda modernidade (ou pós-modernidade se preferir) a sociedade civil poderá se compreender em relação à figura do “Terceiro Setor” (DONATI 1997, p. 131).

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Definindo-se este assim: “De um modo sintético, a sociedade representa-se como um sistema composto por quatro subsistemas ou polaridades: a economia (mercado), as instituições político-administrativas (o Estado e as suas articulações), o Terceiro Setor (as organizações de solidariedade social) e os setores informais [quarto setor] (a família, os parentes, os vizinhos, as redes de amigos)” (DONATI, 1997, p. 117).

Por diferentes motivações, algumas justificadas, os defensores da sociedade civil restrita destinam para o Estado um papel passivo ou subordinado. Para eles, Estado e cidadania não estão relacionados, ao contrário, são geralmente inimigos. Este pensamento é muito parecido com aquele dos neoliberais, de fato ambos falaram da sociedade civil para se referir ao âmbito de liberdade e de construção da sociedade, embora cada visão fale de coisas distintas (NMS para uns, espírito empresarial do indivíduo ou procura racional individual para outros):

A sociedade civil representa a sua realização histórica na forma de um conjunto de instituições não governamentais o suficientemente forte como para se contrapor ao Estado e, embora não impeça o Estado de cumprir a sua função de manter a paz e de arbitrar os interesses fundamentais, pode evitar que domine e atomize o resto da sociedade (SUBIRATS, 1999, p. 22).

Portanto, ter-se-ia produzido um deslocamento do eixo central da sociedade, desde o âmbito ligado ao trabalho e ao Estado, para a sociedade civil dos NMS. Assim, os únicos verdadeiros NMS serão aqueles que agem supostamente livres de qualquer interesse econômico ou partidarista, e que tentam desenvolver uma sociedade mais justa e solidária. Segundo Touraine (1994):

Só existe um movimento social quando a ação coletiva é dotada de objetivos sociais, quer dizer, reconhece a existência de valores e interesses sociais gerais e, Page 101 em conseqüência, não reduz a vida política a um confronto entre campos ou classes, ainda que organize e acirre conflitos (p. 88).

Ampliando a idéia, Touraine afirma que os movimentos sociais mais “íntegros” (menos atingidos por influências...

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