Alterações no Regime da Execução das Obrigações Decorrentes do Compromisso de Compra e Venda

AutorGerson Luiz Carlos Branco
CargoAdvogado. Doutor em Direito (UFRGS). Professor em Direito Civil
Páginas14-22

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Desde 1937, quando da edição do Decreto-lei 58, tem sido travado um contínuo debate pela jurisprudência e doutrina a respeito da forma de execução de algumas das obrigações do compromisso de compra e venda, em especial a execução da obrigação de transferir a propriedade do bem imóvel pelo vendedor. Com a edição do Código Civil vigente no ano de 2003 tais dúvidas foram ampliadas em razão da forma como a matéria foi tratada, o que determina o objetivo deste artigo, que é provocar o debate a respeito da existência de um "conjunto" normativo formado por diferentes leis que regulam essa modalidade de contrato de compra e venda, a partir do qual se pode identificar o regime do cumprimento das obrigações derivadas de tal tipo contratual, desde que interpretados no contexto da formação do modelo jurídico que o tipo representa1.

É preciso verificar os efeitos da vigência do Código Civil sobre o regime dos efeitos dos contratos, em

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especial no que se refere aos mecanismos para tutela de tais efeitos, sej a no plano obrigacional, sej a no plano do direito real. Sob o ponto de vista prático, será necessário examinar se houve alteração das hipóteses em que será possível aproposituradaaçãode embargos de terceiro, da adjudicação compulsória e da ação de nunciação de obra nova com fundamento no compromisso de compra e venda. Em especial, deve-se discutir a vigência das Súmulas 842 e 23 93 do Superior Tribunal de Justiça, editadas anteriormente ao Código Civil de 2003.3

Embora a investigação proposta neste artigo sejapredominantemen-te pragmática e dogmática, dele é pressuposto a indispensabilidade de estudo do direito privado a partir de suaperspectivahistórica4, bem como do estudo dos contratos e seus efeitos a partir da experiência social, já que o próprio conceito de contrato é indissociável dos fatos sociais e das exigências valorativas de um determinado momento histórico. Ou seja, a compreensão do modelo jurídico do "compromisso de compra e venda" somente pode se dar a partir da leitura de um conjunto de elementos, de ordem histórica, social, valorativa e normativa, que determinam a sua estrutura e funcionalidade5.

A análise das leis necessárias à compreensão da matéria, editadas ao longo de oito décadas, exige a visualização do Código Civil vigente como um "eixo" do direito privado.

Nessa perspectiva também é integrado o estudo da eficácia e da efetividade, pois em modelos jurídicos como o compromisso de compra e venda não há como separar e compartimentar o direito privado e o direito processual civil em áreas estanques. É preciso compreender as diferenças principiológicas, mas não se pode esquecer que na "vida de relação" o destinatário da norma é o cidadão comum, cuja preocupação é fundamentalmente com a efetividade.

Embora ditadas ao longo de oito décadas, as leis que regulamentaram o compromisso de compra e venda estão alinhadas sob o ponto de vista principiológico, pois a socialidade e a funcionalidade foram uma marca comum que pode ser vista tanto no Decreto-lei 58/37 às reformas processuais das últimas duas décadas para facilitar a execução das obrigações de fazer.

Por isso, não se pode deixar de acentuar que o tipo legal nasceu com o Decreto-lei 58, de 10 de dezembro de 19376, editado para conter parte das consequências sociais e econômicas da industrialização e do êxodo rural7.

Na época havia um processo de transformação da realidade econômica brasileira, na qual o país deixava de ser predominante-mente agrário para ter nas cidades a maior concentração das populações e também de sua atividade econômica. O desenho da vida agrária e da vida urbana foi alterado substancialmente durante essa época, cujo marco pode ser a revolução de 1930. Enquanto no meio rural começa a surgir o problema do êxodo e o agravamento dos conflitos pela terra, nas periferias das cidades a terra começa a ser dividida pelos especuladores imobiliários.

O contrato de compra e venda, na forma como estava regulado no Código Civil de 1916, não tutelava os interesses dos que não eram proprietários ou não tinham condições de comprar um imóvel à vista. Os trabalhadores e a classe média urbana e todos aqueles que só poderiam adquirir algum bem mediante pagamento parcelado eram excluídos da possibilidade de comprar ou ficavam nas mãos dos especuladores, que recebiam as parcelas do preço e depois se negavam a transmitir o imóvel, usando como fundamento jurídico a regra do art. 1.0888 do Código Civil vigente na época, que facultava o arrependimento, cabendo à parte apenas devolver o que havia recebido, sem que houvesse uma reparação integral. No máximo havia a restituição do preço pago com juros. O exercício do arrependimento pelo comprador não era ilícito, mas exercício de um direito potestativo de escolha numa espécie de "obrigação com faculdade de substituição", ou "obrigações com faculdade alternativa

Como bem mencionam os considerandos do Decreto-lei 58/37, multiplicavam-se as fraudes, deixando os adquirentes desamparados.9

O Decreto-lei 58/37 regrou a venda de lotes, exigindo uma série de providências prévias, para o vendedor(aprovação do plano e planta do loteamento pelas autoridades públicas, regras rigorosas sobre a publicidade dos lotes etc.), podendo ser definido como uma das primeiras normas de proteção ao consumidor, assim como uma das primeiras leis que vieram a proteger o compromisso de compra e venda.

Evidentemente que houve um salto expressivo no tratamento da matéria desde 1937 até os dias de hoje, salto que pode ser observado na regulamentação da matéria pelo Código Civil.

É nesse espírito de consolidação dos avanços normativos e consolidação cultural do modelo jurídico do compromisso de compra e venda que se pode dizer o quão equivoca-

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dos estão aqueles que afirmam ter o Código Civil de 2002 provocado retrocessono regulamento damatéria, em especial em razão do que dispõe o art. 463, parágrafo único, e art. 1.417, que trata da exigência de registro do compromisso de compra e venda10

I Das alterações legislativas no regime do compromisso de compra e venda realizadas pelo Código Civil vigente

O tradicional conceito do contrato de compromisso de compra e venda, construído a partir do regime delineado no Decreto-lei 58/37, é o de um contrato pelo qual uma das partes se compromete a transferir a propriedade de um bem mediante umanovadeclaraçãode vontade aser realizada no futuro e a outra a efe-tuar o pagamento do preço. Ambas as partes comprometem-se a firmar um contrato translativo do direito de propriedade, identificado costumei-ramente como sendo o contrato de compra e venda.

Trata-se de contrato autônomo, ou, pelo menos de uma das modalidades da compra e venda, segundo o que já lecionava Darcy Bessone em 1960, quando da primeira edição da monografia intitulada Da compra e venda - promessa e reserva de domínio, que tanto o notabilizou11.

Nesse aspecto, deve-se observar que a feição atual adotada pelo contrato reflete uma das diversas escolhas que o legislador teve, tendo em vista a vasta polêmica existente a respeito da eficácia de dito contrato, assim como sua aderência à vida real e aos problemas do cotidiano, entre os quais se pode inserir a questão apresentada num clássico estudo sobre a matéria que questionava qual arazãopara se percorrer um caminho tão longo se o motivo da negociação entre as partes foi a vontade de vender e comprar12.

Evidentemente que o questio-namento foi meramente provoca-tivo, porquanto o compromisso é um dos instrumentos mais ágeis e úteis da realidade atual, pois evita a incidência excessiva de tributos na data da contratação, custos com escritura pública, dando segurança ao adquirente, bem como fornece a devida garantia ao alienante no caso de venda a prestações. Assim, com a cessação dos impedimentos fáticos ou legais, podem as partes firmar a escritura pública hábil a transladar a propriedade, com base no regulamento já estabelecido. Em outras palavras, o compromisso de compra e venda, além de conter um mecanismo eficaz para permitir que as partes atinj am o fim típico da compra e venda, também é um excelente instrumento de concessão de crédito com garantia.

Como a proposta deste artigo é verificar os efeitos das alterações legislativas, inicia-se pelo estudo do contrato no processo legislativo que resultou no Código Civil vigente.

A análise dos trabalhos legislativos do Código Civil demonstra que na exposição de motivos não houve referências expressas ao compromisso de compra e venda, servindo para tal fim as discussões ocorridas na Câmara dos Deputados, onde foram apresentadas emendas para tratar da matéria, pois foi objeto de discussão unicamente quando se tratou do contrato preliminar atualmente regulado nos arts. 462 a 466 do Código Civil.

a Artigos 462 a 466 do Código Civil

O art. 462 do Código Civil foi objeto de duas emendas durante o processo legislativo, as de n. 38113 e 38214, com o objetivo de exigir que o contrato preliminar também cumprisse a forma do contrato a ser celebrado. Ambas as emendas foram rejeitadas, tendo sido mantida a redação original.

Além de tais manifestações, o próprio Agostinho Alvim, jurista encarregado de elaborar o capítulo do "Direito das Obrigações", manifestou-se no sentido de que a emenda fosse acolhida, argumentando que "a forma em matéria de contrato preliminar, segundo o Código Civil italiano, deve ser a mesma do contrato. A lei ressalvará os casos em que a forma do contrato preliminar, como sói acontecer no caso de compromisso de venda de imóvel, deva ser outra"15.

Nessa citação, fica clara a manifestação de Agostinho Alvim no sentido de que o compromisso de compra e venda de imóvel deve obedecer à lei especial, que...

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