Definições legislativas

AutorAdrian Sgarbi
CargoDoutor em Direito. Professor de Direito Constitucional e Teoria do Direito dos Programas de Graduação e Pós-Graduação
Páginas6-32

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“Parece que uma língua pensada no sentido de possibilitar definições unívocas, na realidade fica entregue à criatividade lingüística dos seus usuários”. (Umberto Eco, A busca da lín-gua perfeita)

Introdução

O jurista romano Giavoleno Prisco (Séc. I d.C.), em conhecida máxima, assentou que “omnis definitio in iuri civili periculosa est1. De um modo um tanto comum, tem sido esta máxima citada com o objetivo de se condenar toda e qualquer incursão definidora por parte do legislador.

Em que pese essa oposição, há claros exemplos na legislação de dispo-sições que definem. Ao que está a nos parecer, tudo isso requer uma mais detida análise.

Assim, com este específico objetivo, item (1), partiremos de um con-ceito não controverso de definição para, depois, tratarmos da compreensão de definição legislativa em particular (item 5). Na seqüência, cuidaremos de seus propósitos, item (2), e da classificação e função das definições le-gislativas, item (3). Nos itens sucessivos, com base em algumas distinções necessárias entre “normas”, “disposições normativas” e “cadeias de dispo-sição”, item (4), iremos relacionar o tema da definição legislativa com sua estilização (item 6). Ademais, trataremos da questão da diferença entre as definições “legislativas” e as definições decorrentes da “doutrina jurídica”Page 7(item 7) para, ao fim, questionarmos se deve o legislador definir (item 8). Por último, concentramos nossos esforços na análise das patologias co-muns às definições legais (item 9), no como proceder para evitá-las (item 10) e em uma breve conclusão.

1. Que é uma definição?

Diz-se que um “vocábulo” é uma palavra ou termo. Um “enunciado” é uma seqüência de signos inscritos em algum meio físico (sons e imagens), seja o enunciado oral (fala) ou escrito (vocábulos); é o produzido, o resul-tado do ato enunciador. Um enunciado pode tanto atender as regras gramaticais como pode não atendê-las. Todo enunciado completo que atende as regras gramaticais compõe uma “oração”2. Quando não atende as regras gramaticais diz-se que o enunciado é “agramatical”3. A completude do enunciado está relacionada à presença dos elementos formadores de uma idéia, tais como sujeito, verbo e predicado; já a correção, isto é, à respei-tabilidade das regras gramaticais está relacionada à adequada composição dos elementos do enunciado: “completude” e “correção” do enunciado, assim, encontram-se determinados pela gramática da língua em questão4. “Definir” consiste em uma atribuição de sentido realizada com um enun-ciado. Atribuição de sentido porque definir é conceituar com o objetivo de elucidar outros conceitos. Por “definir”, contudo, pode referir-se tanto a atividade de definir quanto ao resultado da definição. Como se usa dizer, a “definição-atividade” e a “definição-produto”. Para todos os efeitos deste estudo estaremos nos referindo, sempre, à “definição-produto”.

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As definições, todas as definições, para serem definições, são compos-tas por um conceito “elucidante” e um conceito “elucidado”, de tal modo que uma definição pode ser retratada da seguinte maneira: “X se define como Y”; “‘Himenópode’ significa ‘aves cujos dedos estão em parte ligados por membranas’”; “‘Ioiô’ significa ‘dois discos unidos no seu centro por um pequeno cilindro, em que se prende um cordel’”. Daí ser compreensível o fato de que alguns autores não se privam de afirmar: “Por ‘direito’ deve-se entender ‘isto’ ou ‘(...)’”. Sendo que ‘X’ é o termo definido ou o definiendum (lat.: aquilo que vai definido; termo que se introduz; o conceito elucida-do) e ‘Y’ é a expressão definidora ou definens (lat.: o que serve para defi-nir; termo cujo emprego é conhecido; o conceito elucidante). O ‘se define como’ é expressão que aparece para estabelecer a equivalência5. Digo: “O valor de ‘π’ (definiendum) se define como ‘3,1415926535 (…)’ (definens)”. Atente-se, assim, que o definiens não é o “significado” do definiendum, mas um outro “símbolo” ou “conjunto de símbolos” que conforme a definição possui o mesmo significado do definiendum. Portanto, uma definição, em termos básicos, explica um sentido desconhecido ou duvidoso através de um sentido mais conhecido e menos duvidoso.

2. A definição e seus propósitos

É uma evidência que a aptidão para se comunicar não garante o en-tendimento do que é dito por parte do destinatário da mensagem. Porque tanto na conversação (seja ela estabelecida por palavras ou sinais) quanto na leitura é comum nos defrontarmos com vocábulos desconhecidos ou que pouco se pode aperceber do significado atentando-se para o contexto em que é transmitido. Para resolver esse dilema utiliza-se o expediente da definição. Com isso, está-se a dizer que uma das razões principais de se definir algo é ampliar o vocabulário da pessoa para quem a definição é elaborada. Mas este não é o único propósito das definições. Geralmente, as definições auxiliam na eliminação de ambigüidades, na explicação de algo, na redução de informações, a influenciar atitudes ou, ainda, para evitar repercussões emocionais6.

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  1. Eliminar ambigüidades. Quando uma mesma palavra ou expressão é utilizada para indicar dois objetos ou fenômenos distintos, diz-se haver ambigüidade. Por isso que toda vez que se afirma que uma palavra é ambí-gua isso significa que pode ser entendida de muitas maneiras na linguagem comum ou ordinária. Uma palavra ambígua, portanto, pode gerar tanto raciocínios falazes, ou seja, raciocínios fraudulentos, quanto discussões estéreis já que meramente verbais. Delimitar a extensão significativa das palavras constitui recurso útil na eliminação de tais ocorrências;

  2. Explicar algo. Nem sempre o objetivo de se definir um vocábulo é solver ambigüidades, pois se pode pretender incorporar conhecimento novo. Não se trata, porém, de apenas ampliar o vocabulário, mas formular uma caracterização adequada dos objetos a que o termo irá referir. Esse é o caso quando se define “força”, “partícula”, “sufrágio”, etc.;

  3. Reduzir informações. Algumas vezes utiliza-se uma definição objeti-vando poupar energia mental reduzindo sentenças. Matematicamente é o que ocorre quando se utiliza a notação exponencial. Pense-se no custo da leitura freqüente da notação 9 x 9 x 9 x 9 x 9 x 9 x 9 x 9 x 9 x 9 ao invés de 910;

  4. Influenciar atitudes. Demais de ampliar o vocabulário, eliminar ambigüidades, explicar algo e reduzir informações pode-se definir com a finalidade de provocar reações emocionais em quem ouve o argumento ou o lê. A palavra definida, aqui, constitui elemento crucial para isso. É o que ocorre quando se define “honra”, “fraqueza”, “heroísmo”, “covardia”, “zelar” em uma tribuna quando se está a defender alguém da acusação de homicídio. Ou mesmo quando se faz referência a “amor”, “compaixão”, “devoção” em um julgamento sobre a prática de eutanásia. Em todas essas situações o objetivo não é fornecer uma definição “exata” ou “literal” nos termos de determinada prática, mas levar estrategicamente a seus ouvintes a estabelecerem vínculos a respeito do que se diz;

  5. Evitar repercussões emocionais. Algumas vezes o peso subjetivo do vocábulo cria conturbação chamando atenção para si deslocando o foco do leitor por motivo de associação emotiva. Se por vezes quer-se com uma definição instigar a subjetividade de quem ouve ou lê o argumento, em outras se pode desejar exatamente o oposto. Por essa razão que termos como “pobreza”, “miséria”, “riqueza”, etc., em uma exposição econômi-ca podem ser substituídos por letras representando-os como variáveis em um cálculo de gastos governamentais. Isso ocorre, aliás, com freqüênciaPage 10em entrevistas quando características do entrevistado são substituídas por marcas livres de conotações sentimentais. Nestes casos, a definição deve conter uma explicação que forneça à simbologia a densidade necessária para sua adequada compreensão.

3. Breve classificação das definições

Utilizou-se, sem maiores explicações, o termo “definição” no plural. Há uma razão para isso: os significados das palavras podem ser especificados de muitas maneiras diferentes. E exatamente em razão disso que o ato de definir pode variar ao sabor do objetivo ou da idéia geral que é comunica-da a partir de um conceito7. Com vistas a se reunir essa diversidade em um catálogo inteligível, os teóricos evidenciam relevos do que entendem ser os traços fortes de qualquer definição, tais como: o (1) “objeto” da definição (a coisa a qual se refere); a (2) “função” que desempenha (efeitos da defi-nição); a (3) a “modalidade” da definição (a técnica a qual se recorre para definir); e a (4) “forma” (se explícita ou implícita).

(1) No contexto do primeiro relevo, “definições quanto ao objeto”, te-mos as definições “reais” e as definições “nominais”. De fato, essa divisão consiste na “grande divisão” das definições, pois ou bem se pretende se-jam as definições reais ou bem se pretende sejam as definições nominais. Afirmam os autores: quando uma definição corresponde a uma definição nominal para a pergunta “Que significa X”, segue-se um vocábulo; se cor-responde a uma definição real a pergunta muda: “Que ‘coisa’ é X?”; e, a par-tir dela fornece-se a “natureza” do objeto. Sendo assim, por “definição real” entende-se a expressão por meio ou através da qual se indica o que é uma coisa ou fenômeno procurando destacar, recolher, refletir, o núcleo imutá-vel do ente, o núcleo que o distingue das outras coisas ou fenômenos. Mas, epistemologicamente...

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