Instituições informais no poder judiciário

AutorHugo Cavalcanti Melo Filho
Páginas119-149

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8.1. Lacuna teórica

Na introdução deste trabalho, foi afirmado que não se encontram na literatura especializada trabalhos que busquem analisar amplamente a importância das instituições informais na atuação do Poder Judiciário no Brasil, propósito que se pretende, aqui, levar a efeito.

De fato, Eisenstadt (2006) tratou do tema pontual das concertações pós-eleitorais no México e Van Cott (2003 e 2006) analisou as questões da legislação e tribunais indígenas em alguns países latino-americanos, as rondas campesinas no Peru e as juntas vecinais na Bolívia. Helmke (2002) examinou a falta de independência da Corte Suprema argentina a partir de regras informais que permitiram a destituição de juízes, e Brinks (2003 e 2006a-2006b) abordou o problema da informalidade nos sistemas judiciais brasileiro e argentino, especificamente quanto ao tema da impunidade dos policiais responsáveis por execuções de civis.

Mesmo o último trabalho mencionado não representa, a rigor, estudo concreto da informalidade no Poder Judiciário, senão de um aspecto do sistema judicial, que envolve a polícia, o Ministério Público, a Advocacia e o Judiciário, especificamente no que respeita à persecução criminal nos casos de “uso regular e ilegal da força letal por parte da polícia” (BRINKS, 2006a:92). Aliás, no trabalho de Brinks, o papel do Judiciário é apreciado de forma enviesada. A instituição informal considerada no estudo é a que “dá à polícia a liberdade de matar à vontade, com um mecanismo de cumprimento que inclui a própria Justiça” (p. 93). Brinks considera que “se o sistema de justiça toma conhecimento

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das violações, mas não as castiga, no mínimo, a lei que proíbe o uso arbitrário da força letal não é regra efetiva” (p. 93).

Ora, todavia, a persecução criminal não se resume à atuação do Poder Judiciário. Envolve, necessariamente, a atuação da polícia e do Ministério Público.

O próprio Brinks (2006a:101-103) admite que os fiscais [membros do Ministério Público], por sua vez, dependem em grande medida dos informes iniciais da polícia para decidir […] arquivar a denúncia ou pedir ao tribunal que desconsidere o caso, sem mais. A maior parte dos fiscais admite abertamente que depende fortemente dos conteúdos destes informes; de fato a impressão de muitos advogados e juízes é que os fiscais se limitam às informações que lhes apresenta a polícia. Na verdade, os fiscais têm poucos recur-sos para dirigir suas próprias investigações e dependem da polícia com sua mão de obra; além do mais, necessitam da cooperação da polícia em centenas de casos por cada um que envolve um policial como imputado. Obviamente, têm muitos incentivos para manter relações amigáveis com a polícia. Quanto a pressões políticas, quanto mais marginal seja a vítima menos provável será que o fiscal pague um preço político por arquivar o caso […]. Em outras palavras, a polícia apresenta estes casos [execução de civis] como a repressão de criminosos violentos, fabricando provas se necessário.

E prossegue: é provável que a polícia triunfe em sua caracterização, seja porque o juiz e o fiscal têm poucos incentivos para avançar para além da versão policial ou porque não existem testemunhas críveis disponíveis em um eventual julgamento que possa contraditar a versão policial. O sistema judicial, especialmente nos casos contra a polícia, exige testemunhas e provas incontestáveis antes de condenar.

Ora, se a polícia fabrica provas, se não há testemunhas fidedignas, se não existem provas cabais, se o Ministério Público não consegue suplantar a caracterização policial por falta de meios, como se pode dizer que a impunidade policial é uma instituição observada no Poder Judiciário? Como se sabe, o Poder Judiciário não pode agir de ofício, senão provocado. No caso, pelo Ministério Público. De outro lado, é notório o princípio que preside o Direito Penal: in dubio pro reo. Não apenas nos casos de policiais imputados, a condenação de qualquer um deveria ser precedida de prova cabal da materialidade e da auto-ria. E, mais, o julgamento, no caso de crimes dolosos contra a vida, cabe a juízes leigos, integrantes do júri popular. Em suma, a “instituição informal que dá à polícia a liberdade de matar à vontade” institui a Justiça, como mecanismo

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de cumprimento, apenas de forma reflexa. É, antes, uma instituição informal criada e sancionada no âmbito policial.

A rigor, o “uso regular e ilegal da força letal por parte da polícia” talvez nem seja uma instituição informal e sim o resultado da existência de instituições formais débeis, como admite, para alguns casos, o próprio Brinks (2006:93).

De uma forma ou de outra, o objeto do estudo de Brinks não pode ser considerado “instituições informais no Poder Judiciário brasileiro”, de modo que permanece a lacuna teórica que, aqui, se pretende colmatar.

8.2. Arcabouço institucional

O conjunto principal das instituições políticas formais do Estado brasileiro se encontra na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Especificamente, quanto ao Poder Judiciário, organizam-se no Capítulo III da Constituição (arts. 92 a 126). A Constituição encontra-se no vértice da pirâmide normativa, acima das leis, regulamentos e outras normas que regem a vida social. Mas, paralelamente às numerosas instituições formais criadas a partir da Constituição e das normas que a ela se subordinam, muitas outras instituições foram e são criadas e se mantêm vigentes, a despeito de não ostentarem a característica da formalidade, muitas vezes, contrariando flagrantemente as determinações das instituições formais. E o Poder Judiciário no Brasil não escapa a essa realidade. Muitas serão as instituições informais vigentes em sua órbita.

8.3. Funções do Judiciário

No estudo da matéria, além dos marcos conceituais já fixados e da tipologia proposta por Helmke e Levitsky, que se adéquam, à perfeição, ao caso do Poder Judiciário no Brasil, admitiremos, como Ribemboim (2007), que o judiciário pode desempenhar vários papéis: ator com poder de veto, ator com poder de decisão, árbitro imparcial e representante da sociedade. O papel da instituição variará de acordo com seu grau de ativismo e independência.

Principalmente, assumirei que o Poder Judiciário não tem sua atuação limitada à função jurisdicional. Com efeito, a divisão segundo o critério funcional, ou separação de poderes ou funções estatais, não se esgota na fixação de âmbitos estanques de atuação. A organização dos chamados Poderes do

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Estado na Constituição brasileira “envolve sempre uma certa invasão de um poder na função reservada a outro” (FERREIRA FILHO, 1990:118).

Como observa o mesmo autor, “o Executivo não raro legisla (formalmente pelas medidas provisórias ou pela delegação, informalmente por meio dos “regulamentos”) e julga (no contencioso dito administrativo)”. Prossegue Ferreira Filho, afirmando que o legislativo às vezes julga (p. ex., o Senado brasileiro, os crimes de responsabilidade do Presidente — art. 52, I, da Constituição de 1988) e não raro administra (p. ex., quando admite pessoal para a sua secretaria). Igualmente, o judiciário ora administra (v. g., quando um tribunal organiza o seu secretariado), ora participa da elaboração da lei (pela iniciativa de certos projetos — v. g., Constituição de 1988, art. 96, II), se é que não legisla149 (v. g., Constituição de 1988, art. 114, § 2º). (FERREIRA FILHO, 1990:118)

Tendo em vista que a participação na elaboração das leis limita-se à iniciativa e que o poder normativo é uma particularidade da Justiça do Trabalho — já consideravelmente mitigada pela Emenda n. 45/2004 —, centrarei a apreciação das instituições informais no Poder Judiciário apenas nas vertentes de sua atuação administrativa e — pontualmente — jurisdicional.

8.4. O Judiciário como administrador e instituições informais
8.4.1. Autonomia do Poder Judiciário

A Constituição da República, em seu art. 99, assegura ao Poder Judiciário autonomia administrativa e financeira. Esta, consubstanciada na elaboração de sua proposta orçamentária, observada a lei de diretrizes orçamentárias. No âmbito da União, a elaboração e o encaminhamento da proposta cabem aos presidentes do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores, após a aprovação das respectivas Cortes e, no âmbito dos Estados e do Distrito Federal, aos presidentes dos Tribunais de Justiça, depois da aprovação dos respectivos tribunais.

Registre-se que a autonomia financeira, a rigor, é atribuída aos Tribunais de Justiça Estaduais, ao STF e aos Tribunais Superiores. No âmbito da Justiça da União, os Tribunais Regionais são apenas ouvidos, como interessados, no momento da elaboração da proposta orçamentária e, na prática, mantêm

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substancial dependência dos Tribunais Superiores, seja na contemplação dos recursos solicitados nas propostas...

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