Variações em torno da legalidade da tributação

AutorSacha Calmon Navarro Coelho
CargoProfessor Titular de Direito Tributário da UFRJ (Faculdade Nacional de Direito). Doutor em Direito Público pela UFMG
Páginas14-35

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1. As delegações legislativas e o princípio da legalidade da tributação

A permissão constitucional para a União alterar as alíquotas do Imposto de Importação, do de Exportação, do IPI e do ISOF insere-se na temática das delegações de poderes, expressa na CF.

Nos regimes parlamentares em que o parlamento governa através do gabinete, resta a salvo o arquiprincípio da legalidade da tributação.

No presidencialismo se nos afigura demasiada a licença concedida ao Executivo pela Constituição de 1988. Vá lá que os impostos de importação e exportação figurassem livres de constrição. São impostos de barreira. O Executivo precisa de mão ágil para evitar dumpings ou desabasteci-mentos causados pela intercadência ou disparidade de preços nos mercados interno e externo. A licença à legalidade e à anterioridade na espécie é tradicional, e quase todos os países atuam livremente neste campo. Quanto ao IPI e ao ISOF que são inse-ridos na produção industrial e no mercado financeiro, o Congresso Nacional abdicou de tarefas que lhe são caras, deixando os contribuintes entregues às improvisações do Executivo. Sem controle congressual e sem anterioridade, as alíquotas são, a um só tempo, instrumentos de política fiscal e fator de inquietação para os contribuintes pela ligeireza das alterações permitidas, que podem prejudicar o planejamento empresarial. As regras deveriam ser fixas ao menos por um ano. Cuide o Executivo de ter juízo, e o Legislativo, de emitir os "limites e as condições" da delegação. O dispositivo que a autoriza é não autoexecutá-vel por ter eficácia limitada. Sem condição e limites, não pode o Executivo operar a delegação.

2. A crônica do princípio da legalidade material no Brasil

A doutrina brasileira sobre o tema, talvez por atravessar, desde 1964 até 1988, um longo período de predomínio do Exe-

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cutivo federal, é das mais vastas em qualidade e quantidade. Os juristas do Brasil, como em nenhum outro lugar, escreveram páginas fulgurantes sobre o princípio da legalidade da tributação, aprofundando-o e dele extraindo todas as consequências possíveis. A produção dos mestres é inumerável. Nomes ilustres construíram, pode-se assim dizer, uma escola que, se não fora a língua portuguesa, teria hoje renome internacional. Somos uma ilha de fala culta num arquipélago cujos idiomas são o inglês, o alemão, o espanhol, o francês e o italiano.

Na pena desta plêiade de lidadores do Direito Tributário, o princípio da legalidade de tributação mereceu lugar de destaque. Por todos, de citar excertos de Alberto Pinheiro Xavier, pelo tratamento rigoroso que imprimiu à matéria, levando-a para o campo da tipificação, uma das consequências vitais do princípio da legalidade da tributação,1 em que pese ser o tipo coisa diversa do conceito fechado, como demonstrado por Misabel Derzi.

"Os tipos tributários nos seus contornos essenciais não podem, assim, ser criados pelo costume ou por regulamentos, mas apenas por lei (p. 71).

"Se o tipo tributário exprime, assim, uma especificação do conceito de imposto, cada tipo, por si, deve conter todos os elementos que caracterizam aquele mesmo conceito. Encarando a realidade de um ponto de vista normativístico, que o mesmo é dizer, partindo da norma para a vida, dir-se-á que o objeto da tipificação são os 'elementos essenciais' do tributo enumerados no art. 97 do Código Tributário Nacional (p. 72).

"A questão atrás colocada exige, decerto, resposta inequivocadamente afirmativa. Os tipos legais de tributos contêm em si os elementos indispensáveis ou necessários à tributação e já vimos a regra do nu-merus clausus. Os tipos legais de imposto encerram em si os elementos suficientes à tributação: é, vê-lo-emos em detalhe, o princípio do exclusivismo.

"Por via deste princípio, os tipos legais de tributo contêm uma descrição completa dos elementos necessários à tributação. E, se é verdade que só os fatos previstos na lei desencadeiam efeitos tributários, em não menor verdade se afirmará que bastam esses mesmos fatos para o referido desencadear, com exclusão de quaisquer outros (e daí a designação por princípio do exclusivismo). Quer dizer: cada tipo tributário contém uma valoração definitiva das situações jurídicas que são seu objeto, para certos fins" (p. 89).

3. Interpretação e princípio da legalidade - Interpretação econômica - Evasão fiscal e elisão - Distinções

O princípio da legalidade da tributação, como estatuído no Brasil, obsta a utilização da chamada interpretação econômica pelo aplicador, mormente por parte do Estado-Administração, cuja função é a de aplicar a lei aos casos concretos, de ofício. O que se diz entremostrou-se nas citas que vimos de expor de Alberto Pinheiro Xavier, retro. Inobstante, é oportuno avançar um pouco mais no trato da matéria. Para logo não existe nenhuma interpretação econômica, toda interpretação é jurídica. O Direito, alfim, opera pelajurisdiciza-ção dofático, como diria Pontes de Miranda. Ora, uma vez jurisdicizado o real, isto é, uma vez que um fato é posto no programa da lei, a interpretação que dele se possa fazer só pode ser uma interpretação jurídica. Equipole dizer que, em Direito Tributário, inexiste técnica interpretativa diversa das usualmente conhecidas. Entre outros, Ives Gandra, Sampaio Dória, Pinheiro Xavier, Geraldo Ataliba e Ruy Barbosa Nogueira, este último bem afeiçoado ao Direito alemão, onde o assunto foi intensa-

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mente discutido, têm se esforçado permanentemente na demonstração da inocuida-de da chamada interpretação econômica, muito defendida pelos Fiscos para dilargar indevidamente a tributação através de uma "compreensão econômica" dos fatos jurí-genos. Todavia, a resenha mais didática que conhecemos é de Gilberto de Ulhôa Canto, cuja escolha para ilustrar estes comentários carrega em seu prol o fato de ter sido ele um dos coautores intelectuais do Código Tributário Nacional, onde, nos arts. 109 e 110, muita gente desavisada enxerga a entronização, entre nós, da interpretação econômica, objeto, aliás, de um ensaio muito esclarecedor do Prof. Johnson Barbosa Nogueira, da Universidade Federal da Bahia.2

Com a palavra, Ulhôa Canto:3 "No Brasil vários autores têm criticado a teoria da 'interpretação econômica'. Alfredo Augusto Becker, além de versá-la longamente na sua Teoria Geral do Direito Tributário, editada pela Saraiva, em 1963, sobre ela elaborou uma pequena monografia, que ele mesmo fez imprimir em Porto Alegre, no ano de 1965, com o título A Interpretação das Leis Tributárias e a Teoria do Abuso das Formas Jurídicas e da Relevância do Conteúdo Econômico. Na última de suas duas obras, Alfredo Becker recorda que, a partir de 1919, a corrente liderada por Enno Becker prevaleceu até na lei (a RAO), expandiu-se muito, entrando em declínio a partir de 1945, quando começou a ser eliminada dos textos legais germânicos toda reminiscência do nazismo. Na sua versão inicial, dizia a RAO:

"'§ 4°. Na interpretação das leis fiscais deve-se ter em conta a sua finalidade, o seu significado econômico e a evolução das circunstâncias' (a tradução foi tomada do texto de Alfredo Becker).

"Em 1934, na Lei de Adaptação Tributária, a Alemanha introduziu o 'princípio da prevalência da ideologia política' sobre o direito, ao declarar:

“‘§ 1°. Normas tributárias:

“‘1) As leis fiscais devem ser interpretadas segundo as concepções gerais do nacional-socialismo.

“‘2) Para isto deve-se ter em conta a opinião geral, a finalidade e significado econômico das leis tributárias e a evolução das circunstâncias.

“‘3) O mesmo vale para os fatos.

“‘(...)' (tradução constante da obra citada de Alfredo Becker).

"Conforme, no segundo dos dois citados trabalhos, registra Alfredo Becker, o próprio Enno Becker afirmou (no seu artigo "Accentramento e sviluppo del diritto tributario tedesco", in Rivista di Diritto Fi-nanziario e Scienza delle Finanze, 1937, p. 161) que a regra da observância das concepções gerais do nacional-socialismo 'foi posta em lugar bem visível como guia condutor, esperando-se que ela informe e anime toda a aplicação do direito e jurisprudência'. É fácil, portanto, projetar para trás, no tempo, até o ano de 1919, quando expedida a RAO, a vocação totalitária de Enno Becker.

"Na formulação da conhecida teoria chamada de 'abuso de formas' a RAO já estipulara que:

“‘§ 5°. A obrigação do imposto não pode ser evitada ou diminuída mediante o abuso das formas e das possibilidades de adaptação do direito civil' (tradução de Alfredo Becker).

"Texto que na StAnpG foi correspondendo da seguinte maneira:

“‘6 - Abuso do Direito

“‘1) A obrigação tributária não pode ser evitada nem reduzida por abuso de for-

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mas, nem pela interpretação abusiva das possibilidades formais do direito privado.

"'2) Em caso de abuso, os impostos devem ser cobrados conforme uma interpretação legal adequada aos efeitos, situação e fatos econômicos'.

"A evolução das teorias que acabamos de mencionar operou um efeito retrógrado na cultura jurídica, por força da distorção que elas provocaram no entendimento de que o Direito proclama, dos princípios fundamentais da tributação, como atividade rigorosamente vinculada.

"O CTN é muito claro a respeito:

“‘Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.

“‘Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do...

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