Emenda Constitucional nº 66/2010 à luz do direito intertemporal

AutorPaulo Hermano Soares Ribeiro - Edson Pires da Fonseca
Ocupação do AutorProfessor de Direito Civil das Faculdades Pitágoras de Montes Claros, MG e da FADISA - MG. Tabelião de Notas. Advogado licenciado. - Professor de Direito Constitucional e Teoria do Direito na FADISA e na FAVAG - MG
Páginas177-199

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Neste tópico, serão traçadas as implicações no plano do direito intertemporal da Emenda Constitucional nº 66/2010, que alterou a disciplina constitucional do Divórcio.

O direito intertemporal tem por objetivo regular os conflitos da lei no tempo. Possui especial relevo nas situações em que ocorre a revogação de uma constituição e a consequente promulgação de outra para ocupar o seu lugar. Atua, sobretudo, na regulação de eventuais conflitos entre a nova constituição e a ordem jurídica pretérita.

Mas não é apenas a mudança completa de constituição que gera conflito no plano do direito intertemporal; o mesmo ocorre quando o texto constitucional é alterado por meio de Emendas Constitucionais, podendo revogar norma jurídica anteriormente compatível com a constituição.

Para melhor compreensão do impacto da Emenda Constitucional nº 66/2010 no plano temporal, especialmente no que tange às leis infraconstitucionais que lhes são contrárias, faz-se necessário, ainda que sucintamente, debruçarmos sobre as principais nuanças do Direito Intertemporal.

4. 1 Direito Intertemporal ou Aplicabilidade da Lei Constitucional no Tempo

Cuida-se neste título da aplicabilidade da Lei Constitucional no tempo. Com a manifestação do poder constituinte originário e o consequente advento de sua obra, a nova constituição, não há ruptura inte-

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gral com o arcabouço jurídico-normativo sustentado pela Constituição anterior79. Boa parte das normas jurídicas que integravam o ordenamento pretérito será reaproveitada pela nova ordem constitucional, pois seria impossível refazer em tempo hábil toda a legislação do país. Deve-se esse aproveitamento dos atos legislativos anteriores compatíveis com a nova constituição ao princípio da continuidade da ordem jurídica80.

Com a revogação da Constituição que lhe servia de fundamento o direito infraconstitucional vigente fica despido de seu suporte originário de validade. Caberá ao direito intertemporal a tarefa de disciplinar a aplicação da lei constitucional no tempo, de modo a compatibilizar as normas jurídicas precedentes com a nova constituição81.

Mas não é apenas a mudança completa da ordem constitucional que suscita conflitos de aplicação da Lei Constitucional no tempo; o advento de modificações no texto constitucional, sejam elas formais (Emendas Constitucionais) ou informais (mutação constitucional), também pode provocar conflito em relação ao direito anterior.

Basicamente a análise da compatibilidade entre normas pré-constitucionais e o novo texto constitucional manifesta-se na doutrina e na jurisprudência a partir de dois diferentes enfoques: de um lado, estão os defensores da tese da revogação, segundo a qual são consideradas revogadas as normas anteriores à Constituição que lhes forem incompatíveis; de outro, estão os adeptos da tese da inconstitucionalidade superveniente, para quem a norma era constitucional, mas tornou-se inconstitucional em face da mudança (total ou parcial) da ordem constitucional.

4.1. 1 Teoria da Recepção

Como é cediço, a Constituição é a fonte de validade de todo o ordenamento jurídico. Em face disso, questiona-se o que fazer com

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o arcabouço normativo infraconstitucional quando houver a substituição integral (constituinte originário) ou parcial (constituinte derivado) da constituição que lhe servia de fundamento. Para evitar que todo o ordenamento tivesse de ser refeito, o que seria impossível, algumas teorias surgiram buscando compatibilizar a ordem pretérita com o novo texto constitucional.

Tratando da compatibilização do direito pré-constitucional com a nova Constituição Gilmar Mendes lembra que as Constituições brasileiras de 1891 (art. 83), de 1934 (art. 187) e de 1937 (art. 183), seguindo a linha da Constituição de Weimar (art. 178, II), estabeleceram cláusulas de recepção do direito pré-constitucional que continham, basicamente, duas disposições: (1) assegurava-se plena vigência ao direito pré-constitucional; (2) estabelecia que o direito pré-constitucional contrário à nova ordem perdia a vigência com a entrada em vigor da nova constituição82.

De acordo com Mendes, inicialmente o STF admitiu o controle abstrato de normas pré-constitucionais; o tema era tratado como preliminar a ser decidida no processo de controle. Contudo, essa posição foi abandonada, fixando-se o entendimento prevalente até hoje, segundo o qual a ADI destina-se à apreciação da compatibilidade entre a Constituição e as normas produzidas após a sua entrada em vigor. Desse modo, resolve-se o conflito no âmbito da revogação, partindo-se do princípio de que lex posterior derogat priori (lei posterior derroga anterior)83.

No julgamento da ADI nº 2/DF, o Supremo Tribunal Federal reafirmou, agora já sob a vigência da Constituição de 1988, sua então cinquentenária jurisprudência que privilegia a teoria da recepção em detrimento à tese da inconstitucionalidade superveniente, considerando revogado o direito pretérito contrário à nova ordem constitucional.

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Justifica-se pela importância para o direito intertemporal a transcrição da ementa da decisão do STF no julgamento da ADI nº 2, na qual se consolidou a jurisprudência da Corte sobre o assunto:

A lei ou é constitucional ou não é lei. Lei inconstitucional é uma contradição em si. A lei é constitucional quando fiel à Constituição; inconstitucional, na medida em que a desrespeita, dispondo sobre o que lhe era vedado. O vício da inconstitucionalidade é congênito à lei e há de ser apurado em face da Constituição vigente ao tempo de sua elaboração. Lei anterior não pode ser inconstitucional em relação à Constituição superveniente; nem o legislador poderia infringir a Constituição futura. A Constituição sobrevinda não torna inconstitucionais leis anteriores com ela conflitantes: revoga-as. Pelo fato de ser superior, a Constituição não deixa de produzir efeitos revogatórios. Seria ilógico que a lei fundamental, por ser suprema, não revogasse, ao ser promulgada, leis ordinárias. A lei maior valeria menos que a lei ordinária. Reafirmação da antiga jurisprudência do STF, mais que cinquentenária.84(grifo nosso).

Cristalina, portanto, a opção do STF pela Teoria da Recepção, segundo a qual oordenamento jurídico anterior ao texto constitucional deve ser reaproveitado naquilo em que for compatível com a nova ordem constitucional, restando revogado na parte em que lhe for contrário.

Uma norma pré-constitucional incompatível com a nova constituição será considerada não-recepcionada e, portanto, revogada. Não se trata de inconstitucionalidade, pois este é um juízo que só pode ser feito tendo como parâmetro a constituição vigente no momento da elaboração da norma atacada. Por exemplo: uma norma editada em 1940 somente poderá ser declarada inconstitucional em face da Constituição de 1937, vigente à época de sua edição. Essa norma não pode ser declarada inconstitucional com base na Constituição de 1988, mas apenas recepcionada ou não.

Por conseguinte, leis ou atos normativos anteriores a 05 de outubro de 1988 não podem ser atacados via ação direta de inconstitucionalidade

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ou reafirmados por meio de ação declaratória de constitucionalidade, ações destinadas ao controle de compatibilidade vertical apenas de normas elaboradas após a entrada em vigor da Constituição.

De acordo com Gonet Branco, "deve-se a Kelsen a teorização do fenômeno da recepção, pelo qual se busca conciliar a ação do poder constituinte originário com a necessidade de se obviar vácuos legislativos"85. Mantém-se, desse modo, o conteúdo da norma jurídica, que passa a contar com novo fundamento de validade.

Em sede de controle concentrado de constitucionalidade apenas a arguição de descumprimento de preceito fundamental, ADPF, é ferramenta idônea a coibir a incompatibilidade das normas jurídicas pretéritas com a Constituição de 1988.

Salienta-se que o juízo de compatibilidade da ordem pretérita com a nova ordem é apenas material, não sendo vedada a incompatibilidade formal. Desse modo, um ato normativo que foi elaborado em conformidade com o processo legislativo vigente à época de sua feitura e que não contrarie materialmente a nova Constituição será considerado recepcionado mesmo que o processo legislativo para a sua elaboração tenha sido alterado; aliás, ele poderá ser considerado recepcionado mesmo que não seja mais o modelo normativo exigido para regular aquele caso concreto. Como exemplo, destaca-se o Código Tributário Nacional, que, muito embora tenha sido elaborado como Lei Ordinária (Lei 5.172/1966), foi recepcionado com status de Lei Complementar (art. 146 da CF/88). O mesmo ocorre com os inúmeros Decretos-Lei, espécie normativa não mais existente no processo legislativo brasileiro, mas que foram recepcionados, em regra, como Lei Ordinária (por exemplo: o Decreto-Lei nº 2.848/1940, Código Penal brasileiro, foi recepcionado com status de Lei Ordinária)86.

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Por derradeiro, destaca-se que não existe um procedimento formal específico para verificar a recepção ou não de um ato normativo pretérito com a nova Constituição. Como assevera Spitzcovsky, "alguém que esteja compelido a cumprir obrigação decorrente de lei, que entende não-recepcionada, deve buscar do Judiciário a declaração da inexistência dessa relação obrigacional, ao argumento de que tal ato normativo não foi recepcionado"87.

Do mesmo modo que não é possível ao Legislativo reeditar todos os atos normativos que vigiam antes do advento da nova Constituição, também é impossível ao Judiciário fazer um juízo imediato de compatibilidade de todo o ordenamento pré-constitucional com o novo texto constitucional. Diante disso, o juízo de recepção será feito a cada vez que for suscitada a incompatibilidade do direito pré-constitucional com a nova ordem jurídica.

4.1. 2...

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