Em defesa dos embargos infringentes: reflexões sobre os rumos da grande reforma processual

AutorJosé Augusto Garcia de Sousa
CargoDefensor Público no Estado do Rio de Janeiro
Páginas561-613

Defensor Público no Estado do Rio de Janeiro. Mestre em Direito pela Universidade do Estadodo Rio de Janeiro (UERJ). Professor Assistente de Direito Processual Civil da UERJ. Professor de Direito Processual Civil da Fundação Getúlio Vargas (RJ)

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1. Introdução

O Ato nº 379/09, do Presidente do Senado Federal, instituiu uma comissão de notáveis juristas, encabeçada pelo Ministro Luiz Fux, para a tarefa de reformar o processo civil brasileiro. Ao tempo em que se conclui este artigo (maio de 2010), os trabalhos da comissão já avançaram bastante, com a apresentação de propostas, como não poderia ser diferente, as mais alvissareiras.

Uma das propostas apresentadas, no entanto, preocupa-nos sobremodo, qual seja, a eliminação dos embargos infringentes, de resto um anseio que já foi ouvido com muita intensidade na doutrina brasileira, refluindo após a Lei 10.352/01, que deu maior racionalidade ao recurso. 1

Aqui, ousaremos remar contra a corrente. Sustentaremos a preservação dos embargos infringentes. Mais do que a defesa pontual de um meio impugnativo, estaremos defendendo uma determinada concepção do direito processual, marcada pelo equilíbrio entre o imperativo da celeridade e a também importante veia argumentativa do processo. Nesse sentido, o artigo servirá a uma reflexão acerca dos rumos da grande reforma processual em marcha. Page 562

Independentemente do acerto ou não das ideias expostas, ao menos uma virtude não se poderá negar ao trabalho. Qual? Enfrentar o dilema maior do processo nos dias atuais, o dilema do tempo. Atenção: não estamos nos referindo somente à luta contra a morosidade processual. Todo dilema tem dois lados. É preciso cuidar também do segundo lado do dilema, e a isto se propõe o artigo.

Sem se negar de maneira alguma o mérito da dura batalha travada contra o tempo em terras processuais, não se pode deixar de observar que o processo, paradoxalmente, carece cada vez mais do seu grande inimigo! De fato, à medida que o processo judicial vai ganhando complexidade e transcendência sem precedentes na história, um tempo mais dilatado - para argumentos e debates - lhe é indispensável em não poucos casos. Eis aí o segundo lado (frequentemente negligenciado) do grande dilema do processo nos dias que correm.

Antes de se chegar à questão específica dos embargos infringentes, algumas estações serão visitadas. A primeira delas diz respeito à época em que vivemos. É dela que brota, muito antes de habitar a esfera processual, o dilema a que aludimos.

2. Dois signos do nosso tempo: velocidade e incerteza

Dizia um dos maiores juristas que o país já teve, J. J. Calmon de Passos: "A reflexão centrada estritamente no jurídico é sempre estéril. O Direito marcha na direção em que a sociedade caminha e anda com ela e não à frente dela. A par disso, o Direito não é raiz. (...)" 2 Dessa forma, seja qual for o assunto discutido, convém abrir a janela e espiar o que se passa lá fora - além da cidadela jurídica. É o que passaremos a fazer, concisamente.

Em qualquer direção alcançada pela vista humana, a velocidade está presente, muitas vezes estonteante, vertiginosa. A velocidade é um dos signos maiores do tempo atual, obviedade que dispensa demonstração. O processo, por motivos igualmente evidentes, não pode ficar atrás. Há de engendrar, continuamente, técnicas que deem conta Page 563 de tanta velocidade. Perde legitimidade o instrumento que não consegue acompanhar a realidade. Se certos produtos restam obsoletos em poucos meses, como acontece por exemplo na área eletrônica, um processo versando sobre tais bens não pode levar anos para receber alguma decisão.

Mas não é só a velocidade que impregna o nosso século. Vivemos em uma sociedade pós-moderna - ou "pós-tudo", no dizer inspirado de Luís Roberto Barroso. 3Não se sabe bem o que significa essa decantada pós-modernidade, mas curiosamente tal indefinição lhe é bastante desveladora. A matéria-prima da pós-modernidade, afinal, são doses reforçadas de fluidez e volatilidade, banhadas em relativismos fartos. Assoma então uma era de incertezas, desprovida de verdades essenciais - todas elas devidamente desconstruídas - e órfã de heróis.

Nas palavras do consagrado sociólogo Zygmunt Bauman, levamos hoje uma "vida líquida", que vem a ser "uma vida precária, vivida em condições de incerteza constante. As preocupações mais intensas e obstinadas que assombram esse tipo de vida são os temores de ser pego tirando uma soneca, não conseguir acompanhar a rapidez dos eventos, ficar para trás, deixar passar as datas de vencimento, ficar sobrecarregado de bens agora indesejáveis, perder o momento que pede mudança e mudar de rumo antes de tomar um caminho sem volta. A vida líquida é uma sucessão de reinícios (...). Entre as artes da vida líquido-moderna e as habilidades necessárias para praticá-las, livrar-se das coisas tem prioridade sobre adquiri-las. (...) É preciso acelerar o 'alcançar' caso se deseje provar as delícias do 'largar'." 4

Tudo conspira a favor da incerteza, até mesmo o que deveria servir à segurança. Abra-se um parêntese para abordar a questão da informação. Supostamente, a revolução da informação 5 deveria multiplicar o conhecimento e as certezas do mundo. Isso em parte realmente acontece, mas só em parte. Por outro lado, efeitos os mais problemáticos Page 564 comparecem. A sociedade da informação, ao mesmo tempo em que estimula o crescimento intelectual das pessoas, tem o dom de nelas espicaçar dúvidas e angústias. Com uma disponibilidade muito maior de informações, as decisões amiúde se tornam mais complexas, eis que sortidos demais são os dados a ponderar. Profissionais altamente qualificados sentem-se inseguros por não conseguirem dominar todas as fontes bibliográficas de uma dada matéria (algo impossível para qualquer mortal). Médicos atendem pacientes que, graças à internet, acumularam - desordenadamente - informações especializadíssimas sobre a moléstia de que padecem. Exemplos não faltam desse contexto multiplicador de ansiedades e mal-estar. De uma forma geral, somos assaltados pela sensação de que estamos numa bicicleta que exige pedaladas cada vez mais frenéticas para não tombar.

À explosão da informação corresponderia mesmo uma "explosão de ignorância", conforme esclarece Maria Celina Bodin de Moraes em erudito trabalho, no qual se mencionam as circunstâncias que propiciam a atual era de incertezas e instabilidades: "(...) A segunda circunstância é a que se denominou de 'explosão de ignorância', devida à imensa, monumental disponibilidade de informações forjadas em ambiente virtual, numa espécie de biblioteca universal. À medida que crescem os horizontes do saber, cresce, na mesma proporção, o leque das questões sem solução, do desconhecimento e, mais, se incrementa a consciência da própria ignorância, a qual gera, assim, novas incertezas. Com facilidade, se substituem os 'resultados seguros' de uma investigação por mais uma eventualidade, uma possibilidade ou um ponto de vista. Logo, não haverá mais tempo hábil para transformar a enorme massa de dados que já se encontram à disposição em conhecimento e, portanto, em informações passíveis de dominação ou de certeza." 6

Fechado o parêntese relativo à questão da informação, assinale-se que a própria velocidade desconcertante dos nossos dias contribui, e muito, para a incerteza. Velocidade e incerteza são fenômenos intimamente conectados. O ritmo acelerado atropela sem dó os juízos reflexivos. O homem contemporâneo não consegue processar a contento tantas transformações súbitas, impulsionadas por uma tecnologia cada vez mais prodigiosa. E não Page 565 são apenas transformações materiais. Mexe-se com rapidez até mesmo nas questões mais sagradas para a espécie, cultuadas durante milênios e milênios, como é o caso do processo biológico de concepção do ser humano, igualmente arrebatado pela tecnologia. Ocorre que o tempo da filosofia, evidentemente, mantém-se muito mais cadenciado. Desse hiato crescente entre a filosofia e a tecnologia, já quase um abismo, derivam, como não poderia deixar de ser, perplexidades insolúveis, combustível poderoso para a grande fogueira da incerteza.

Agravando o estado de incerteza, temos a presença do pluralismo, outra força marcante do mundo contemporâneo. Conquanto não seja de agora o avanço do pluralismo - haja vista as conquistas nada desprezíveis alcançadas na Idade Moderna -, ele ganhou extraordinário impulso nas últimas décadas, quer seja em virtude da mudança de mentalidades, quer seja em função de aportes tecnológicos. Transformou-se assim em um fenômeno avassalador. Vias de mão única não se aceitam mais, o que pode ser bastante salutar. Nunca se respeitou tanto o direito à diferença. Grupos tradicionalmente discriminados ganharam voz. Mas o pluralismo não opera maravilhas apenas. Ele tem um grande potencial para gerar inquietude e desnorteamento, sobretudo quando desarruma - com o posterior endosso do direito - convicções seculares em temas-chave. Desde que o homem é homem, pessoas do mesmo sexo não podiam casar-se. Já podem, em vários lugares do mundo. O fator biológico sempre foi determinante para a determinação da paternidade ou mesmo para a identificação do sexo. Não é mais. 7 Além de tudo isso, o pluralismo visa à integração mas na prática pode implicar recorte, fracionamento, desafiando com frequência o ideal iluminista da igualdade, ainda um valor bastante respeitável entre as democracias do globo.

Sob o impacto do pluralismo, um dos filósofos mais lidos da atualidade, John Rawls (falecido em 2002), reformulou posições sustentadas na sua obra mais célebre, A Theory...

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