Processo judicial eletrônico: agentes automatizados e seus atos. Norma tecnológica e ato tecnológico (eNorma e eAto)

AutorS. Tavares Pereira/Alexandre Golin Krammes
CargoMestre em Ciência Jurídica (Univali/SC)/Mestre em Gestão do Conhecimento pela UFSC
Páginas113-140

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1. Introdução

Neste artigo, claramente multidisciplinar como requerem os novos tempos do processo eletrônico, os autores põem-se, de um lado, diante da disciplina teórica tradicional atinente aos atos processuais e, de outro lado, diante da realidade processual-eletrônica, tentando apontar possíveis dessintonias que demandem atualizações da primeira — a teoria dos atos processuais — para re?etir explicativamente, de forma adequada, a segunda — a nova realidade processual.

Após determinar o espaço a que se destinam as lucubrações expostas no artigo — a teoria do processo — o artigo faz uma síntese da tese Primeiras Linhas de Teoria Geral do Processo Eletrônico — doravante mencionada apenas como Primeiras Linhas — que Luiz Carlos

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Roveda1 apresentou no 53º Congresso Brasileiro de Direito do Trabalho. As ideias expostas em Primeiras Linhas são tomadas como linha condutora-metódica da análise comparativa procedida.

Exposta a síntese de Primeiras Linhas, seguem-se considerações dos autores a respeito do que reputam méritos e fragilidades daquele trabalho.

Como o esforço teórico está direcionado à questão dos atos processuais, na sequência se analisa o fenômeno da softwarização do processo, tentando alertar o leitor para o fato de que o software é o principal agente indutor de necessárias revisões na disciplina teórica dos atos processuais.

Três desa?os processuais, ligados à contagem de prazo, contagem de penas e à distribuição, são comparados no processo em papel e no eletrônico, sob luzes da Engenharia do Conhecimento, para demonstrar as possibilidades de o software substituir o homem como sujeito processual.

Está posta, então, a base para analisar, tecnologicamente, o conceito de “agente automatizado”, uma noção já assentada na Engenharia do conhecimento e que será necessária, dora-vante, para uma adequada teorização dos atos processuais.

A norma tecnológica (eNorma), um tipo novo, jurídico-normativo, permite incorporar, na teoria jurídica em geral, e processual, em particular, o conceito tecnológico-sistêmico de agente automatizado.

Expõem-se, ?nalmente, em rápida síntese, os traços da teoria geral do processo atinentes à classi?cação dos atos processuais para, depois, fazendo contraste com o pano de fundo desenhado ao longo do artigo, apontar-se o dé?cit teórico existente na Teoria Geral do Processo (TGP) para explicar/descrever os atos num cenário de processo eletrônico.

2. Teoria

A descoberta começa com a consciência da anomalia, isto é, com o reconhecimento de que, de alguma maneira, a natureza violou as expectativas paradigmáticas [...]. Segue-se então uma exploração mais ou menos ampla da área onde ocorreu a anomalia. Esse trabalho somente se encerra quando a teoria do paradigma for ajustada, de tal forma que o anômalo se tenha convertido no esperado2.

Este trabalho visa contribuir para a evolução da teoria geral do processo eletrônico. Nele, parte-se do pressuposto de que a ferramenta chamada Sistema Eletrônico de Processamento de Ações Judiciais — SEPAJ — impactou profundamente o processo a ponto de desatualizar, cá e lá, a teoria já assentada sobre essa entidade do Direito. No linguajar kuhniano, o paradigma vigente, até agora, está exigindo ajuste de sua base teórica.

Na epígrafe deste tópico, Kuhn chama de anomalia a esse desajuste entre o previsto no paradigma e os contornos novos que a realidade ostenta. Para o âmbito de suas considerações, ele atribui à natureza a violação de que fala no texto. No caso do processo, a violação é provocada pelo instrumento novo e revolucionário com o qual se passou a fazê-lo, como se tentará demonstrar. Portanto, debruçar-se sobre a realidade da área em que ocorreu a anomalia, é imperioso. E isso, diz o autor, só deve terminar “quando a teoria do paradigma for ajustada”.

Trabalha-se com um conceito operacional de teoria inspirado em três fontes.

No dicionário básico de ?loso?a3, colhe-se que, em acepção clássica, da ?loso?a grega,

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teoria é o “[...] conhecimento especulativo, abstrato, puro, que se afasta do mundo da experiência concreta, sensível. Saber puro, sem preocupação prática”. Em sentido mais próximo do que se busca para este trabalho, encontra-se, na mesma obra, que teoria é um “modelo explicativo de um fenômeno ou conjunto de fenômenos que pretende estabelecer a verdade sobre esses fenômenos, determinar sua natureza”. O exemplo dado é o da teoria da relatividade de Einstein.

No capítulo primeiro de O direito da sociedade (Das recht der gesellschaft), Luhmann ocupa-se especialmente do conceito de teoria, como se vê pelo próprio título do capítulo (Posición de salida respecto de la teoría del Derecho)4.

Desse autor, sempre muito profundo em suas abordagens, colhe-se que o mundo do Direito sempre se ocupou de teorias, do mundo romano ao da Common Law. A demanda pela abordagem teórica nasceu da docência ou da prática. E continua dizendo que a teoria jurídica “[...] que se origina en la praxis del derecho no cumple, en el contexto del sistema de la ciencia, con lo que promete el concepto de teoría. La teoría proveniente de la praxis es más bien un subproducto de la necesidad de que se tomen decisiones sólidas”5. Este foi, parece, o caminho trilhado por Luiz Carlos Roveda, na tese apresentada no Congresso da LTr, no qual há uma primazia do metodológico sobre o teórico. Mas é importante notar que, independentemente da amplitude ou da abordagem, todos os trabalhos realizados internamente, no sistema jurídico, contribuem para o aperfeiçoamento de uma teoria do Direito de teor estritamente cientí?co:

[...] la teoría del derecho, la dogmática jurídica, los principios y los conceptos del derecho —, no se deben entender como si se trataran de una resistencia profesional a la crítica, de una función defensiva de carácter simbólico y legitimatorio. Se trata, antes bien, de un esfuerzo por alcanzar consistencia conceptual, de llegar a la comprobación de los principios, de los conceptos, de las reglas de decisión; esto es, un esfuerzo de “ampli?cación” y, más que nada, un afán de corregir las generalizaciones demasiado extensas por medio del esquema regla/excepción6. [sem grifos no original]

Sob luzes cientí?cas, qualquer movimentação teórica tem de se esforçar na constituição do objeto. “El esfuerzo cientí?co se debe asegurar, primero, del objeto. Lo debe caracterizar y esto signi?ca: diferenciar”7. A Teoria Geral do Processo (TGP) acalenta certezas quanto ao seu objeto: ele é o direito processual jurisdicional — ação, jurisdição, processo — este, o processo, atualmente de?nido como fenômeno bidimensional: relação processual e procedimento (Dinarmarco). Este trabalho quer contribuir para a apreensão correta do fenômeno processual que, na sua dimensão procedimental, sempre foi apresentado como sequência de atos. Se o elemento constitutivo básico do processo, tomado nessa dimensão, é o ato, então, este trabalho está voltado para demonstrar que este elemento básico se transformou com a chegada das novas tecnologias ao processo. Em nome da consistência conceitual, é necessário diferenciar, no universo dos atos, esse “algo emergente”8, cujas características

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têm potencial para impactar a estrutura teórica em vigor.

Um discurso interdisciplinar, ou multidisciplinar, como se verá, levanta questões teóricas não solucionáveis no âmbito da atual teoria do processo, atinentes a normas internas, costumes e exigências de compreensão. Na corrente do procedimento, estabelecida pelo Sistema Eletrônico de Processamento de Ação Judicial
— SEPAJ —, surgem, também, questões vinculadas à legitimação, em decorrência das muitas seleções efetuadas na sua elaboração.

Lamy e Rodrigues9 apresentam esclarecedora síntese do assunto. Dizem os autores que “a teoria é um conjunto de conceitos coerentemente sistematizados a respeito de uma determinada realidade. [...] a teoria não fornece o conhecimento direto e imediato da realidade; proporciona os instrumentos que possibilitam a sua apreensão”. E acrescentam que “só se tem uma teoria quando um determinado conjunto de conceitos está orde nado, ou seja, arranjado de forma a constituir um todo unitário e coerente. Essa coe rência decorre de os conceitos e ideias que compõem o sistema estarem logicamente estruturados a partir de fundamentos comuns”.

O software e demais tecnologias da informação e comunicação, se demonstrará, tornaram obsoletos ou desajustaram conceitos fundamentais da trama teórica anterior.

A assimilação de um novo tipo de fato exige mais do que um...

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