Elementos jurídicos de dignidade da pessoa humana e a inserção social e econômica dos trabalhadores no sistema capitalista

AutorMaria do Perpétuo Socorro Wanderley de Castro
Ocupação do AutorProfessora
Páginas52-86

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3.1. Elementos jurídicos da dignidade da pessoa humana
3.1.1. A perspectiva jurídica da dignidade da pessoa humana

A dignidade da pessoa humana é um princípio afirmado e exaltado, nos tempos atuais, como repulsa e horror às violações contra ela cometidas durante a Segunda Guerra Mundial. O eixo histórico da humanidade se encontra no período em que nasceu a filosofia e a tendência à racionalização e o ser humano passou a ser considerado, em sua igualdade essencial; dessa maneira, surgiu o fundamento intelectual para a compreensão da pessoa humana e para a afirmação da existência de direitos universais a ela inerentes.

O desenvolvimento da elaboração teórica do conceito de pessoa, como sujeito de direitos universais, anteriores e superiores a toda ordenação estatal tem sua expressão moderna na filosofia kantiana.1 A instituição dos campos de concentração nazistas e do Gulag russo trouxe a inquietação de uma realidade maligna, em que se fez possível a instalação de uma máquina de despersonalização de seres huma-

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nos, aos quais foram negadas sua dignidade e sua própria existência, conforme a reflexão de Flávia Piovesan.2O pensamento pós-guerra enfrentou esse tema, conferindo-lhe um lugar central e a preeminência entre todos os valores concernentes ao ser humano. No Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do homem, aprovada pela Organização das Nações Unidas em 1948, foi consignado que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana” constitui um dos fundamentos da liberdade, da justiça e da paz no mundo (§ 1º); adiante, foi destacado que os povos das Nações Unidas reafirmam, na Carta, sua fé “na dignidade e no valor da pessoa humana” (§ 5º).

Esse mesmo texto consta no Preâmbulo dos dois Pactos Internacionais aprovados em 1966 pela Organização das Nações Unidas: um sobre direitos civis e políticos e outro sobre direitos econômicos, sociais e culturais, este usualmente designado como PIDESC, como a consideração de que a dignidade estabelece direitos iguais e inalienáveis.

Na Convenção americana, relativa aos direitos do homem, aprovada pela Organização dos Estados Americanos em São José da Costa Rica, em 1969, em vigor a partir de 18 de julho de 1978, no art. 11 (que tem por ementa “proteção da honra e da dignidade da pessoa”), está declarado no § 1º que “toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade”.

Na Declaração dos direitos e liberdades fundamentais aprovada pelo Parlamento Europeu, em 1989, é afirmado no art. 1º (ementa: “Dignidade): “A digni-dade humana é inviolável.” Também na Carta dos direitos fundamentais da União Europeia, proclamada em Nice, em 7 de dezembro de 2000, está afirmada, no art. 1º, a inviolabilidade da dignidade humana e o seu respeito e proteção, fundamentado em que ela constitui a própria base dos direitos fundamentais.

Constata-se, a partir desses documentos, que a dignidade da pessoa humana é afirmada repetidamente como princípio fundante da civilização e noção imprescindível à convivência das pessoas humanas e ao prosseguimento da sociedade. há, no entanto, dissenso conceitual sobre a pessoa humana como fundamento da dignidade.

A ideia da primazia da pessoa fundada na dignidade humana, tendo como cerne a noção de que o homem é um fim em si e não um meio, está centrada na filosofia kantiana. Diferente das coisas e dos animais, o ser dotado de razão é pessoa e centro de imputação jurídica, capaz de determinar suas próprias leis. Assim, enquanto as coisas têm preço, a pessoa humana tem dignidade, que é intrínseca a ela e constitui um valor absoluto. Enquanto os objetos têm valor condicional

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e são substituíveis ou têm equivalentes, o ser humano é único e dotado de valor intrínseco. Ele é a própria medida do seu valor, como um fim em si mesmo, único e insubstituível. herrera Flores, conforme anota Christiana D’Arc Damasceno Oliveira3 afirma que a dignidade humana da mesma forma que os direitos não são isolados nem dados com anterioridade, mas são construídos passo a passo pela própria comuni-dade ou grupo afetado, o que os torna direitos em movimento, e como tal, podendo ser gerados ou revisados segundo uma metodologia de integração.

Realça-se, assim, a continuidade da noção e sua construção, na expressão de direitos, pela comunidade e segundo uma inter-relação. Tem-se, portanto, a distinção elaborada entre o conceito abstrato de dignidade humana que a todos é reconhecida e aquele em que a dignidade da pessoa humana é construída e concretamente considerada e que configura uma segunda vertente para esse exame conceitual.

A partir de uma concepção da pessoa humana sob uma nova ética fundada no ser humano como ser integrado à natureza, Antônio Junqueira de Azevedo expôs o entendimento que a dignidade humana é de ser tida como qualidade do ser vivo, ‘capaz de dialogar e chamado à transcendência’.4 Esse pensamento, que tem como ponto central a existência da vida, pode demandar a dilargação da dignidade com sua extensão a todos os seres vivos por meio da comunhão com a natureza. Contrapõe-se-lhe o pensamento de Peces-Barba Martínez,5 que vê, na consciência sobre o valor da natureza e a existência de animais evoluídos apenas uma matização da ideia de dignidade, que não altera o antropocentrismo, e constitui um reforço à sensibilidade e respeito pela natureza e pelos animais que a compõem.

Com efeito, o ser humano integrado à natureza, e para ela voltado, mantém suas características que vêm a distingui-lo e a lhe atribuir um protagonismo na vida. Ele continua como o centro do mundo e atua centrado no mundo, isto é, envolto na realidade, que traz consigo a natureza e os outros animais, ao mesmo tempo que os engenhos e instrumentos que saíram de sua inteligência e de suas mãos.

Parte-se, pois, do conceito de dignidade da pessoa humana6 no qual se tem como cerne a qualidade que atribui a cada pessoa o direito a ser merecedora de

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respeito pelo Estado e pela comunidade, o que conforma um conjunto de direitos e deveres que constitui obstáculo a todo e qualquer ato degradante ou desumano e, ao mesmo tempo, serve para assegurar as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, em interação com os demais seres humanos.

Com base em Podlech, Ingo Sarlet7 afirma que a dignidade, sob o aspecto de tarefa, prestação imposta ao Estado demanda que as ações estatais tanto se destinem à preservação e respeito da dignidade como à sua promoção, mediante a criação de condições que possibilitem o pleno exercício e fruição da dignidade, investigando-se em que medida é possível ao indivíduo realizar, por si mesmo, parcial ou totalmente, suas necessidades existenciais básicas ou se, para essa realização, ele depende do Estado.

A versão do neocapitalismo e a perspectiva neoliberal tem como postulado a redução da atuação do Estado nas relações sociais. É o Estado mínimo, reedição tecnológica do laissez faire. A lei regente das relações sociais se torna um ditame do mercado. Os efeitos dessa política são conhecidos, com o empobrecimento da maioria e concentração de rendas, tanto das pessoas como de Estados. Somente pode ser encontrado um contraponto com a assunção, pelo Estado, de um papel de promoção da atividade econômica, levando ao equilíbrio das relações sociais ou reduzindo as gritantes desigualdades sociais, o que constitui uma exigência da dignidade da pessoa humana, seja mediante a consideração dos pressupostos materiais mínimos para a vida, seja com a possibilidade da realização de projetos de vida. Daí, a necessidade de uma política de regulação que incida sobre as novas relações de trabalho, pois a autonomia coletiva não se mostra eficaz para, por si mesma, promover o equilíbrio da atividade econômica, que tem ganho foros, não apenas de legitimidade, mas de centro exclusivo de poder; como alude Monereo Pérez,8 ocorre o “laisser-faire colectivo”.

Em uma das mais comentadas obras sobre a sociedade atual, em seu viés de economia e trabalho, da qual ficou emblemática a expressão “fim dos empregos”, seu título, com a afirmação do declínio inevitável dos níveis dos empregos e a redução da força global do trabalho, Jeremy Rifkin9 aponta um futuro com o

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fortalecimento do terceiro setor e da economia social, sobre a economia material e afirma que o estabelecimento de uma alternativa ao trabalho formal na economia de mercado é tarefa crítica para cada país. Nas linhas finais dessa obra, ele sentencia o fim do trabalho como a morte da civilização do trabalho que se conhece ou a transformação social e renascimento do espírito humano. Trata-se de uma visão que exclui a centralidade do trabalho, como forma de sociabilidade e vida, na mesma linha de pensamento de André Gorz.10Em outro giro, tem-se o enfoque do neoliberalismo, como uma doutrina estruturada e bem definida, com propósito de criação de um novo sistema político e econômico, em que as forças do trabalho, da produção e os trabalhadores são destituídos de valor e importância, e é apresentado como uma nova fase do capitalismo, com variantes, a partir da sua enunciação por hayek, em uma formulação mais extremada e radical de plena liberdade do mercado, até a aplicação atual dessa teoria e sua expansão, mediante...

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