A efetividade do direito humano e fundamental à moradia

AutorJoão Luiz Stefaniak
CargoAdvogado fundador da Banca de Advocacia Stefaniak
Páginas237-256

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Ver Nota12

1. Introdução

Todo estudioso antes de iniciar seu trabalho busca escolher um objeto de estudo que seja relevante, não somente para si, mas também para o conjunto de pessoas para quem seu estudo é dirigido. É difícil imaginar alguém dispensar horas em um trabalho extenuante de pesquisa e de reflexão, sobre um tema que entenda irrelevante ou superficial.

Ao escolher o tema regularização fundiária urbana como objeto específico de nosso projeto de pesquisa temos a convicção que a moradia, em especial o direito à moradia, trata-se de uma questão de suma relevância social. A moradia é o espaço íntimo da pessoa, da construção da sua identidade e da satisfação de sua necessidade de privacidade no convívio com sua família e seus amigos. Do ponto de vista da representação social a moradia é o "Lar", que por sua vez, para os antigos etruscos eram onde habitavam os deuses particulares de cada família. Para muitos povos e civilizações a moradia ainda guarda este sentido de espaço sagrado.

Para o nosso estudo moradia é um bem. Bem, do ponto de vista jurídico é tudo aquilo que é suscetível a se transformar em um objeto do direito da pessoa humana. Mas do que isso a moradia é um bem essencial reconhecido constitucionalmente como

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indispensável para a dignidade do homem. Portanto, o direito à moradia é um direito humano e fundamental.

Embora hodiernamente a condição de direito humano e fundamental à moradia seja algo consensual e universal, consagrada em diversos tratados de direito internacional, grande parte da humanidade não tem acesso à moradia, ou pelo menos a uma moradia digna e adequada para exercer a condição de pessoa humana em sua plenitude.

O Relatório Nacional sobre o Direito à Moradia, produzido em 2002 por equipe coordenada por Nelson Saule Junior, sob encomenda da Organização das Nações Unidas - ONU demonstrou que no Brasil "o déficit habitacional urbano é estimado em 5.414.944 e o rural em 1.241.582 de moradias, no ano de 2000. As necessidades de incremento e reposição do estoque de moradias ocorre, sobretudo nas áreas urbanas (81,3% do montante estimado de 6.656.526 novas moradias em 2000)." (SAULE JR & OSÓRIO, 2002) Já o número de brasileiros que moram em ocupações informais (favelas, cortiços, loteamentos clandestinos e irregulares, etc.) não possui uma estatística precisa, sendo que "mais da metade de nossas cidades é constituída por assentamento irregulares, ilegais ou clandestinos, que contrariam de alguma forma as formas legais de urbanização" (ROLNIK & SAULE JR, 2002).

Este cenário que constitui a (des)ordem urbanística em nosso país, é fruto de uma sistema econômico e político profundamente injusto, sendo que qualquer mente minimamente inquieta é instigada a indagar sobre o porque um direito social de tamanha relevância não é efetivado, apesar de nosso ordenamento jurídico no plano constitucional e infraconstitucional - Estatuto da Cidade - estabelecer o direito de todos à moradia digna.

O artigo abordará inicialmente os conceitos de duas das categorias centrais para o estudo da questão urbana, que são moradia digna e direito humano fundamental à moradia. Também entendemos importante, sob o ponto de vista semântico e conceitual, diferenciar os termos eficácia jurídica e efetividade, buscando a clareza terminológica indispensável para o bom desenvolvimento o projeto de pesquisa.

Em seguida, iremos discorrer sobre o papel do Estado em relação à efetividade do direito humano e fundamental da moradia. Neste capítulo específico vamos tentar responder aquela indagação que nos inquieta e demonstrar que a inércia do aparelho estatal em responder as demandas populares por moradia digna não reflete apenas um descaso dos governantes mais está imbricada no desenvolvimento das formas de produção, troca e de acumulação capitalista.

2. Moradia: algumas considerações de cunho semântico e conceitual

A busca de uma conceituação de moradia encontra certa dificuldade pelo fato de que existem outros termos em nossa língua que lhe são empregados muitas das vezes como sinônimos. Relacionadas com o termo moradia encontramos habitação, residência, domicílio, entre outras palavras.

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Outro complicador para definirmos o conceito de moradia é que o tema é objeto de estudo de diversas ciências, sendo que cada uma delas ressalta os aspectos relevantes para o enfoque da disciplina. Neste contexto, é imprescindível para uma correta conceituação usar da interdisciplinaridade (LEIS, 2005), sendo que veremos a seguir, que o conceito de moradia para fundamentar nosso estudo, aborda aspectos inerentes a ciência jurídica, política e sociológica, sem deixar de considerar o aspecto temporal e espacial, utilizando-se portando de elementos da história e da geografia.

Assim, entendemos ser pertinente, antes de buscar a definição do conceito de moradia, distingui-lo dos demais conceitos que se confundem ou se identificam com o mesmo.

Comecemos com a definição conceitual de domicílio. O domicílio é a sede jurídica da pessoa (DINIZ, 2005). Clóvis Beviláqua define domicílio da pessoa natural como "o lugar onde ela, de modo definitivo, estabelece a sua residência e o centro principal de sua atividade", sendo que para o direito a noção de domicílio é grande importância uma vez que as relações jurídicas se formam entre pessoas e "é necessário que estas tenham um local, livremente escolhido ou determinado pela lei, onde possam ser encontradas para responder por suas obrigações" (GONÇALVES, 2003).

O domicílio não se confunde com moradia, pois tanto a doutrina jurídica como a legislação pátria estabelecem que o domicílio possa, além do lugar onde a pessoa natural estabelece sua residência (Código Civil - CC, art. 70), ser os locais onde ela exerce suas atividades profissionais (CC, art. 72), bem como as suas diversas residências onde viva alternadamente (CC, art. 71) ou ainda se admite na legislação civil hodierna que o domicílio da pessoa natural que não tenha residência habitual seja o local onde for encontrada (CC, art. 73). Portanto, podemos concluir que domicílio é uma ficção jurídica, uma abstração, enquanto que moradia é um conceito real e concreto. Então para o jurista, moradia, habitação e residência são expressões que correspondem uma relação de fato enquanto domicílio uma relação jurídica. Os autores civilistas (PEREIRA, 1982), (GOMES, 1979), (DINIZ, 2005), (GAGLIANO & PAMLONA FILHO, 2004), (GONÇALVES, 2003), diferenciam residência de moradia e habitação, sendo que residência é o local onde a pessoa se estabelece habitualmente, com a intenção de permanecer, ainda quando se afaste definitivamente (GOMES, 1979). Já os termos moradia ou habitação é "o lugar onde a pessoa natural se estabelece provisoriamente" (GAGLIANO & PAMPLONA FILHO, 2004).

Embora possamos dizer que é unânime no direito privado a distinção acima explicitada entre os conceitos de domicílio, residência, moradia e habitação, com certeza tais definições não nos servem para buscar um conceito adequado de moradia. Quando falamos em direito à moradia é óbvio que não estamos nos referindo ao direito da pessoa se fixar provisoriamente em um determinado local, como ensinam os juristas. Muito pelo contrário, afirmamos que "que todas as pessoas têm o direito humano a uma moradia segura e confortável, localizada em um ambiente saudável que promova a qualidade de vida dos moradores e da comunidade" (SAULE JUNIOR & OSÓRIO, 2002), sendo inerente neste caso a habitualidade e a permanência para a definição do conceito.

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O termo habitação, por sua vez significa a edificação destinada à moradia, seja com caráter habitual ou provisório. Neste contexto, habitação pode ser o habitat de uma pessoa ou de sua família: um hotel, um albergue, um apartamento ou uma casa, e até um campo de refugiados. Como vimos anteriormente, o direito positivo admite até que qualquer um destes locais possa a vir a ser o domicílio da pessoa natural, mas com certeza ao discorrer sobre o direito à moradia como direito humano e fundamental este contexto não se admite para buscar uma melhor conceituação do termo moradia.

Todavia, podemos admitir em uma perspectiva histórica a similitude entre os termos habitação e moradia. Habitação foi o termo incluído no artigo XXV da Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, embora o texto em inglês do referido artigo utiliza a expressão housing que pode ser traduzindo para o português como moradia, sendo que já em francês o termo utilizado na redação do referido artigo, logement, que em uma tradução mais literal significa alojamento, podendo de forma mais livre também ser traduzido para moradia para nossa língua. Já a expressão política habitacional, passou a ser habitualmente utilizado para definir a intervenção estatal sobre a questão social da moradia, sendo que o termo habitação passa a ser mais usual após a criação do Banco Nacional da Habitação (BNH) em 1964.

Atualmente podemos afirmar que persiste tal similitude entre habitação e moradia. No entanto, a partir da aprovação da Emenda Constitucional n. 26, em 2000, com a inclusão da moradia no texto do art. 6o da CF., que enumeram os chamados direitos sociais, passou-se a consagrar o a expressão direito à moradia, sendo que direito de habitação é pouco empregado (SOUZA, 2004).

No que concerne esta questão semântica, que como afirmamos anteriormente, é fundamental ser enfrentada para que evitemos qualquer equivoco conceitual, concordamos com o entendimento de Sérgio Iglesias Nunes de Souza:

"Observa-se que ambas as conceições sobre a habitação e moradia estão muito próximas e identificáveis, porém desde já...

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