A Educação Multicultural, em Perspectiva Contra-Hegemônica, a Partir do Estatuto da Criança e do Adolescente: Contribuições para a Fundamentação de Políticas Públicas de Educação em Direitos Humanos

AutorClarice Seixas Duarte; Isabella Christina da Mota Bolfarini; Luís Diogo Leite Sanches
Páginas96-105

Page 96

1. Introdução

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei
n. 8.069/90) foi o primeiro texto normativo posterior à Constituição Federal de 1988 que previu um marco de direitos educacionais à criança e ao adolescente, sendo anterior à Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n. 9.394/96) e ao Plano Nacional de Educação — decênio 2001/2011. Em seu bojo, para além da repetição literal do que já constava na redação constitucional, merece especial destaque o disposto em seu art. 58, pelo qual ficou estabelecido que “no processo educacional respeitar-se-ão os valores culturais, artísticos e históricos próprios do contexto social da criança e do adolescente, garantindo-se a estes a liberdade da criação e o acesso às fontes de cultura”.

O referido artigo, ancorado no art. 215 da Constituição Federal, cuja disposição obriga o Estado a garantir a todos o pleno exercício de direitos culturais e às fontes da cultura nacional, aponta

Page 97

para um importante sentido político-pedagógico do processo formativo do cidadão, uma vez que se descortina a partir dos referenciais de sociabilidade presentes no contexto cultural da criança e do adolescente.

O presente trabalho, a partir do disposto no art. 58 do ECA, pretende apresentar algumas perspectivas sobre como tal dispositivo normativo pode contribuir para a) o desenvolvimento e a concretização de práticas pedagógicas voltadas a assegurar o multiculturalismo, na perspectiva contra-hegemônica; b) a fundamentação de políticas públicas educacionais que sejam construídas e avaliadas segundo as perspectivas culturais das comunidades que são alvo das próprias ações políticas.

Optou-se pela análise dos parâmetros teórico- -normativos que embasam os programas de educação em direitos humanos (EDH), eis que tais programas podem ser considerados exemplo de práticas pedagógicas voltadas a assegurar o multiculturalismo na perspectiva contra-hegemônica.

2. A função social da educação a partir do ECA: o processo educacional para assegurar o multiculturalismo, em perspectiva contra-hegemônica

Segundo Boaventura de Sousa Santos, a educação e o direito são dois elementos fundamentais para a reforma do Estado contemporâneo1. O reformismo — que rompe com o modelo liberal de Estado, mas não com a própria crença no ente estatal, em si —, sendo o movimento que delineia as formas políticas do Estado, pautado por parâmetros determinados pelo direito, tem na educação um exemplo de sua força de propulsão transformadora. Essa transformação, contudo, não poderia ocorrer de modo efetivo e sustentada apenas nos paradigmas epistemológicos definidos pelos agentes do centro do capitalismo2, pois, enquanto ação legitimada exclusivamente em fundamentos tradicionais de teoria do conhecimento, aliena do processo educacional o conhecimento passível de ser desenvolvido no âmbito de culturas situadas em países periféricos ou em desenvolvimento3, de modo que, ao cabo, contribuiria para o próprio afastamento entre centro e periferia, acarretando numa reforma unilateral do Estado, orientada pela epistemologia hegemônica e autorreferente dos países centrais.

Na esteira do pensamento de Paulo Freire, Boaventura de Sousa Santos4 sustenta que a educação promovida pelo Estado deve passar por uma transição paradigmática, capaz de incitar questionamentos sobre o senso comum hegemônico. A escola precisa ser repensada em seu papel, a fim de se organizar como espaço hábil à promoção de uma educação para a cidadania e para a emancipação5. Em perspectiva de transição paradigmática, contra-hegemônica, a refundação dos referenciais da educação estatal deve ser concebida colaborativamente, entre o Estado e as comunidades que serão alvo de políticas educacionais6, levando-se em consideração o saber local e o multiculturalismo7.

Page 98

Daí o papel importante do disposto no art. 58 do ECA, porquanto determina que, no processo educacional, devem ser respeitados os valores culturais, artísticos e históricos do contexto social da criança e do adolescente. Nesse sentido, impõe-se ao Estado um dever negativo8, de não ofensa à cultura local, sendo-lhe vedado instituir uma prática educacional etnocêntrica, que pressuponha a aceitação da sobreposição de uma cultura a outra. Referido texto normativo constitui uma importante garantia, podendo ser utilizado como via de oposição à vazão que, desde tempos coloniais, abre caminhos para a correnteza do ensino dirigido à subserviência.

Ademais, pelo referido artigo, é determinado ao Estado não apenas o cumprimento de deveres negativos, mas também positivos9, uma vez que este deve promover ações efetivas e criar as condições concretas para garantir à criança e ao adolescente a “liberdade de criação e acesso às fontes de cultura”. Note-se que os vetores negativo e positivo do dispositivo legal em questão estão em consonância com a concepção de cidadania presente na CF/88, pois em ambos os sentidos o multiculturalismo se desvela como pressuposto.

A Constituição Federal de 1988 assume-se como documento político de uma sociedade fundada na cidadania multicultural. Sendo assim, as práticas pedagógicas instituídas pelo Estado brasileiro devem abrir caminho para a afirmação do multiculturalismo. O processo educacional, nessa esteira, passa a se consolidar em meio ao espaço da coexistência e convivência entre culturas diversas.

O art. 58 do ECA, então, uma vez que orbita em torno do centro gravitacional constitucional, assenta-se nos valores da democracia multicultural, não etnocêntrica e, nesse sentido, está voltado à realização da função social do processo educacional, na medida em que garante à criança e ao adolescente a liberdade de criação e o acesso às suas fontes de cultura. Como se verá adiante, para efetivar essa garantia, torna-se imprescindível que o Estado institua políticas públicas construídas e avaliadas a partir de paradigmas epistemológicos contra-hegemônicos.

3. A contribuição da educação em direitos humanos (EDH) para a concretização de políticas públicas contra-hegemômicas garantidoras da diversidade cultural

Além do art. 58 do ECA, o Estado brasileiro vem adotando, nas últimas décadas, uma série de medidas normativas em cumprimento ao seu dever constitucional de respeito à diversidade cultural existente em nosso país. Na esfera educacional, podemos citar o Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos, as Diretrizes Curriculares Nacionais para os diferentes níveis de ensino e as Diretrizes Curriculares Temáticas, como aquelas que se referem à educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afrobrasileira e africana10, e à educação escolar indígena na educação básica11.

No plano internacional, durante a chamada “Década da Educação em Direitos Humanos”12, que perdurou de 1995 a 2004, houve uma preocupação explícita com o desenvolvimento de práticas pedagógicas construídas e avaliadas a partir das diferentes perspectivas culturais que identificam os diversos sujeitos da comunidade escolar13. Referidas práticas perpassam o ambiente de sala de aula,

Page 99

buscando atingir o ambiente e a comunidade escolar como um todo.

Conforme salientado por Canen e Moura, neste contexto, a formação de docentes na perspectiva multicultural é um desafio central. Daí a importância da criação de estratégias pedagógicas que possibilitem o trabalho docente num ambiente de diferenças, de modo a que a pluralidade cultural dos educandos seja respeitada. Para a implementação dessas práticas, “[...] modelos de formação docente assentados em uma pretensa homogeneidade social” devem ser substituídos por uma formação aberta à valorização da identidade cultural do sujeito que aprende, fundamentada no enfrentamento dos mais variados tipos de preconceitos14.

Como subsídio aos Estados para a implementação, em esfera nacional, dos compromissos assumidos nos tratados internacionais de Direitos Humanos a respeito da promoção e proteção do direito à educação, a Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) proclamou o Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos15 (PMEDH).

Segundo Abraham Magendzo, a EDH pode ser caracterizada, sobretudo, como um instrumento voltado à construção da democracia, a partir de uma concepção política transformadora, comprometida com a realização dos valores da igualdade, solidarie-dade e do respeito à diferença. Nesta perspectiva, a EDH constitui um modelo de educação voltado para a realização de objetivos concretos, como a construção da paz16 e a eliminação das mais variadas formas de violência, a promoção da inclusão social dos grupos vulneráveis existentes na sociedade, sempre a partir do reconhecimento de todos os seres humanos como iguais sujeitos de direitos.

A Educação em Direitos Humanos se desenvolveu mais fortemente a partir de meados dos anos 1990, materializando-se em um conjunto de práti-cas educativas efetivadas junto a crianças, jovens e adultos, tendo em vista o desenvolvimento e a promoção de atitudes e comportamentos tanto na esfera individual (como a autoestima e o senso de dignidade) quanto na esfera coletiva e social (como a solidariedade, o respeito às diferenças etc.)17.

Uma educação desde a perspectiva dos direitos humanos implica, dentre outros aspectos, no reconhecimento da diversidade cultural, no respeito ao outro e no reconhecimento do valor da heterogeneidade e da diferença. Essa perspectiva é que deve embasar a formulação de planos de ação contra-hegemônicos voltados ao desenvolvimento pleno do indivíduo a partir da valorização de sua própria cultura.

Roberto Cuéllar observou que a...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT