Bonança econômica, desenvolvimento latino-americano e o caso do Chile

AutorJuliane Caravieri Martins Gamba
CargoMestre, aluna do curso de doutorado em Integração da América Latina pela Universidade de São Paulo (PROLAM/USP)
Páginas59-77

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A ocupação econômica das terras americanas constitui um episódio da expansão comercial da Europa. Não se trata de deslocamentos de população provocados por pressão demográfica - como fora o caso da Grécia - ou de grandes movimentos de povos determinados pela ruptura de um sistema cujo equilíbrio se mantivesse pela força - caso das migrações germânicas em direção ao ocidente e sul da Europa. O comércio interno europeu, em intenso crescimento a partir do século XI, havia alcançado um elevado grau de desenvolvimento no século XV, quando as invasões turcas começaram a criar dificuldades crescentes às linhas orientais de abastecimento de produtos de alta qualidade, inclusive manufaturas. O restabelecimento dessas linhas, contornando o obstáculo otomano, constitui sem dúvida alguma a maior realização dos europeus na segunda metade desse século. A descoberta das terras americanas é, basicamente, um episódio dessa obra ingente. De início, pareceu ser episódio secundário. E, em verdade o foi para os portugueses durante todo um meio século. Aos espanhóis reverteram em sua totalidade os primeiros frutos, que são também os mais fáceis de colher. O ouro acumulado pelas velhas civilizações da meseta mexicana e do altiplano andino é a razão de ser da América, como objetivo dos europeus, em sua primeira etapa de existência histórica. A legenda de riquezas inapreciáveis por descobrir corre a Europa e suscita um enorme interesse pelas novas terras. Esse interesse contrapõe Espanha e Portugal, "donos" dessas terras, às demais nações europeias. A partir desse momento, a ocupação da América deixa de ser problema exclusivamente comercial: intervêm nele importantes fatores políticos.

Celso Furtado Formação Econômica do Brasil

Introdução

A industrialização substitutiva de importações (ISI) foi preconizada pelos estudos da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), principalmente nos anos 50, como instrumento promotor do desenvolvimento dos países latino-americanos, no intuito de romper com o subdesenvolvimento baseado na relação centro-periferia.

Esse processo foi realizado de diferentes maneiras pelos países latino-americanos, implicando em "respostas" ou resultados diferenciados para cada um deles. No caso do Chile, objeto desse estudo, houve o rompimento precoce com a política de ISI na década de 1970, como uma decisão de Estado, sendo adotado um modelo de desenvolvimento econômico fundamentado no setor primário-exportador.

Na conjuntura econômica internacional vigente, em face da elevação dos preços dos produtos primários, essa estratégia de desenvolvimento se mostra extremamente favorável. Os preços das commodities apresentaram significativa elevação no começo deste século XXI, impulsionados pela ascensão da China, principalmente, e da Índia no cenário internacional como compradores desses produtos. "Os altos preços das matérias-primas obedecem sobretudo ao fato de que a economia chinesa depende fortemente das importações de produtos básicos." (OCAMPO, 2007, p. 79.) Apesar da crise financeira mundial ocorrida em 2008-2009, essa tendência de alta se confirmou após meados de 2009, demonstrando que a valorização dos produtos primários ainda se manterá por um longo período.

Nesse contexto, a América Latina ganha novamente importância no âmbito do comércio internacional, pois é abundante em recursos naturais (terra, água, sol, energia etc.)

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e em matérias-primas (hidrocarbonetos, produtos minerais e agrícolas etc.) necessários ao ávido consumo asiático o que pode impactar positivamente (ou não), neste século, nas economias latino-americanas de acordo com as políticas macroeconômicas e o modelo de desenvolvimento econômico adotado em cada país.

Entretanto, não se pode olvidar que esse "novo" cenário não está dissociado da trajetória histórica de formação econômica e social da América Latina, construída a partir do século XVI, que converteu os países latino-americanos em essencialmente exportadores de matéria-prima e mão de obra baratas.

Essa condição se acentuou com a inserção desses países na chamada divisão internacional do trabalho1 surgida com a Revolução Industrial (séculos XVIII e XIX) e aprofundada com o desenvolvimento do capitalismo financeiro, conforme Furtado (1970, p. 61-64) também aponta:

A inserção dos países latino-americanos nas novas linhas em expansão do comércio internacional realizou-se a partir dos anos quarenta do século passado. Nesse processo de inserção tendem a configurar-se três grupos de países exportadores de produtos primários: a) países exportadores de produtos agrícolas de clima temperado, b) países exportadores de produtos tropicais, e c) países exportadores de produtos minerais. Em cada um desses casos, o comércio exterior contribuiu para configurar uma estrutura econômica particular, cujas características devem ser tidas em conta no estudo de sua evolução subsequente.

O primeiro grupo de países foi essencialmente constituído pela Argentina e o Uruguai. A produção agrícola exportável baseou-se, neste caso, no uso extensivo da terra e se destinou a concorrer com a própria produção interna dos países em rápida industrialização. [...]

O segundo grupo, formado pelos países exportadores de produtos agrícolas tropicais, congregou mais da metade da população latino-americana. Nele se incluíram o Brasil, a Colômbia, o Equador, a América Central e o Caribe, bem como certas regiões do México e da Venezuela. A inserção desses países no comércio internacional se realizou em concorrência com áreas coloniais e com a região sul dos Estados Unidos. O açúcar e o fumo conservaram suas características de produtos tipicamente coloniais até fins do século XIX. [...]

O terceiro grupo de países, constituído pelos exportadores de produtos minerais, foi basicamente formado pelo México, o Chile, o Peru e a Bolívia. A Venezuela, como exportador de petróleo, se integrou ao grupo a partir do segundo decênio do século atual. [...]

Esse passado de colônias de exploração dos países latino-americanos desencadeou a formação de economias subdesenvolvidas que, no século XX, caracterizaram-se por uma industrialização tardia em alguns países e, em outros, por uma economia ancorada no modelo agrário exportador, havendo impactos diferenciados nos processos de

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desenvolvimento e crescimento econômico impulsionado por esse "novo" contexto internacional de significativa alta dos preços dos produtos primários.

Assim, o presente estudo dividiu-se em três partes. Primeiramente, analisou-se, de modo sucinto, o pensamento cepalino dos anos 50, basicamente a proposta de Raúl Prebisch acerca da industrialização substitutiva de importações (ISI) e seu impacto no desenvolvimento das economias latino-americanas. A seguir, debruçou-se sobre o estudo da chamada "bonança econômica" e suas perspectivas para o futuro dos países latino-americanos. Por fim, centrou-se a análise no modelo de desenvolvimento adotado no Chile o qual rompeu precocemente com o processo de ISI e caminhou noutra direção, principalmente as perspectivas atuais em face da conjuntura internacional de elevação dos preços dos produtos primários.

Então, diante da valorização das commodities no comércio internacional, é imperioso analisar as perspectivas para os países latino-americanos, em especial, como o Chile está aproveitando a "bonança econômica" para alavancar o desenvolvimento.

1. O pensamento cepalino e o desenvolvimento econômico latino--americano

No estudo das economias latino-americanas no século XX, ganhou evidência a tese de Raúl Prebisch sobre a deterioração dos termos de troca, em oposição à teoria das vantagens comparativas no comércio internacional, e as formulações de Celso Furtado que buscaram explicar o subdesenvolvimento da América Latina a partir de seu contexto histórico específico (uma teorização própria). "De acordo com Furtado, o subdesenvolvimento não é uma simples fase de transição ao desenvolvimento, mas um fenômeno mais permanente, cuja superação exige uma dedicação política tenaz e prolongada." (BIELSCHOWSKY, 2010, p. 190.)

As formulações teóricas de Prebisch e de Furtado se inseriram no âmbito dos estudos da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL). O pensamento cepalino se fundamentou numa teoria histórico-estruturalista que analisou o subdesenvolvimento dos países latino-americanos a partir da ideia do estabelecimento de relações entre países centrais e periféricos no comércio mundial2.

O pensamento cepalino se alicerçava, basicamente, nas seguintes diretrizes analíticas: enfoque histórico-estruturalista baseado na ideia de relação centro-periferia; análise da inserção internacional, principalmente no comércio, da América Latina;

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análise das condicionantes estruturais internas de cada país e estudo das necessidades e possibilidades de ação estatal em cada país para superar o subdesenvolvimento.

Assim, o estruturalismo na análise cepalina, segundo Bielschowsky (2000), é orientado para a busca de relações diacrônicas, históricas e comparativas que derivariam fundamentos essenciais para a análise do desenvolvimento econômico dos países latino-americanos. As concepções histórico-estruturalistas da CEPAL se constituíram num arcabouço analítico específico, aplicável a condições históricas próprias da periferia latino-americana.

Além disso, apenas para fins meramente elucidativos, verifica-se que o pensamento da CEPAL está dividido em fases ou etapas, conforme elaborado por Bielschowsky (2000, p. 18-19), em que cada uma corresponde aproximadamente a uma década de história e propõe prognósticos diferenciados para a resolução dos problemas das economias...

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