A dupla titularidade (individual e transindividual) dos direitos fundamentais econômicos, sociais, culturais e ambientais

AutorDaniel Wunder Hachem
Páginas618-688
A DUPLA TITULARIDADE (INDIVIDUAL E TRANSINDIVIDUAL) DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS ECONÔMICOS, SOCIAIS, CULTURAIS E AMBIENTAIS
THE DOUBLE OWNERSHIP (INDIVIDUAL AND TRANSINDIVIDUAL) OF THE
ECONOMIC, SOCIAL, CULTURAL AND ENVIRONMENTAL FUNDAMENTAL RIGHTS
Daniel Wunder Hachem
ISSN 1982-0496
Licenciado sob uma Licença Creative Commons
Professor do Departamento de Direito Público da Universidade Federal do
Paraná. Doutorando e Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do
Paraná. Coordenador do Curso de Especialização em Direito Administrativo do
Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar. Membro fundador e Coordenador
Executivo da Rede Docente Eurolatinoamericana de Direito Administrativo.
Membro do Foro Iberoamericano de Direito Administrativo. Membro do NINC -
Núcleo de Investigações Constitucionais do Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade Federal do Paraná. Editor Acadêmico da A&C - Revista de
Direito Administrativo & Constitucional. Advogado. E-mail: danielhachem@
gmail.com
Resumo
O artigo visa a analisar se os direitos fundamentais econômicos, sociais
e culturais e ambientais ostentam titularidade individual ou
transindividual, e, por consequência, se a sua tutela deve ser realizada
de forma isolada ou coletiva. No estudo, com base (i) na distinção entre
“direito fundamental como um todo” e pretensões jurídicas
jusfundamentais”, (ii) na multifuncionalidade dos direitos fundamentais,
e (iii) na dupla dimensão (subjetiva e objetiva) desses direitos, defende-
se que todos os direitos fundamentais apresentam uma dupla
titularidade. Sustenta-se que, em cada direito fundamental, algumas
das pretensões dele decorrentes revelam-se como posições subjetivas
exigíveis individualmente, ao passo que outras encontram-se
associadas à dimensão objetiva do direito, possuindo titularidade
transindividual. Diante disso, todo direito fundamental, quando
considerado em sua integralidade, exibirá tanto uma faceta individual
quanto uma feição transindividual, a depender da pretensão em
análise. O trabalho tece uma crítica ao intento de se enquadrar de forma
genérica e exclusiva os direitos fundamentais em alguma das
categorias previstas da legislação processual civil brasileira (individual,
coletivo, difuso ou individual homogêneo), haja vista que um mesmo
direito enfeixa pretensões jurídicas distintas.
Palavras-chave: titularidade individual; titularidade transindividual;
tutela coletiva; dimensão objetiva; direitos fundamentais econômicos,
sociais, culturais e ambientais.
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 14, n. 14, p. 618-688, julho/dezembro de 2013.
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1. INTRODUÇÃO
O tema da titularidade individual e/ou transindividual dos direitos fundamentais
tem apresentado no Direito brasileiro acentuada importância, especialmente no que diz
respeito à sua exigibilidade. Contudo, não é raro, na doutrina e na jurisprudência,
verificar-se certa obscuridade em relação a esse capítulo da dogmática constitucional,
em um cenário no qual há referências a várias “espécies” de direitos humanos e
fundamentais. Fala-se em direitos civis, políticos, sociais, econômicos, culturais,
ambientais. Mas, ao mesmo tempo, alude-se a direitos individuais, transindividuais,
coletivos, difusos, individuais homogêneos, sem que haja uma precisão quanto ao
critério que diferencia tais categorias. Surge então a pergunta: o fator que distingue tais
“modalidades” - supostamente diversas - de direitos fundamentais é a sua titularidade?
A confusão que se instala nessa seara deve-se, em parte, à malfadada “fantasia
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das chamadas gerações de direitos”. A tradicional referência ao surgimento de distintas
gerações de direitos fundamentais, que foram sucessivamente positivando nas
Constituições direitos de diferentes espécies, gerou a seguinte explicação reducionista:
(a) a primeira geração seria fruto do “Estado Liberal de Direito” de fins do século XVIII,
momento em que se reconheceram como direitos essenciais do homem as liberdades
individuais, cujo conteúdo se limitaria a restringir o campo de atuação do Poder Público,
dirigindo-lhe o dever de abstenção de interferência nas esferas jurídicas dos cidadãos;
(b) a segunda geração emergeria com o “Estado Social de Direito”, que teve seus
embriões no início do século XX mas cuja consolidação se deu após a Segunda Guerra
A expressão é de TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Tratado de Direito Internacional dos
Direitos Humanos. v. I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997. p. 24-25.
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Abstract
The article aims to examine whether economic, social, cultural and
environmental fundamental rights present individual or transindividual
ownership, and therefore if its protection should be performed singly or
collectively. In the study, based on (i) the distinction between
“fundamental right as a whole” and “iusfundamental juridical
pretensions”, (ii) the multifunctionality of fundamental rights, and (iii) the
two dimensions (subjective and objective) of those rights, the text
proposes that all fundamental rights have a dual ownership. It is argued
that, in every fundamental right, some of the pretensions arising from it
reveal as subjective positions individually exigible, while others are
associated with the objective dimension of the right, having a
transindividual ownership. Therefore, all fundamental rights, when
considered in its entirety, display both facets individual and
transindividual – depending on the pretension in question. The paper
presents a critique of the attempt to fit in a generic and exclusive way the
fundamental rights in one of the categories set by Brazilian civil
procedural law (individual, collective, diffuse or individual
homogeneous), considering that the same right gathers distinct juridical
pretensions.
Keywords: individual ownership; transindividual ownership; collective
protection; objective dimension; economic, social, cultural and
environmental fundamental rights.
Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 14, n. 14, p. 618-688, julho/dezembro de 2013.
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PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional: um estudo comparado dos
sistemas regionais europeu, interamericano e africano. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 13.
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Mundial, modelo no qual direitos dos trabalhadores e direitos a prestações fáticas como
saúde, educação e assistência – batizados de “direitos sociais” passaram a ser
constitucionalmente recolhidos, com a característica primordial de impor deveres de
ação positiva e interventiva ao Estado, para a promoção da igualdade material e da
justiça social; (c) a terceira geração, nascida no último quarto do século XX, teria
derivado da necessidade de tutela de bens jurídicos indivisíveis em uma sociedade de
massa, tendo como traço distintivo a titularidade transindividual – coletiva e difusa – dos
direitos, haja vista a impossibilidade de apropriação individual dos interesses por eles
resguardados.
A doutrina, já há algum tempo, vem tecendo críticas procedentes a essa
classificação, sob o ponto de vista histórico. De um lado, porque ela faz transparecer
uma substituição paulatina da geração anterior pela subsequente, quando na realidade
os direitos não previstos anteriormente complementam aqueles que já haviam sido
salvaguardados, agregando novos conteúdos protetivos ao ser humano sem
abandonar as pretensões jusfundamentais previamente tuteladas, formando um bloco
de proteção indivisível. Essa complementaridade e indivisibilidade se verificariam, por
exemplo, pelo fato de que sem condições materiais de existência digna, propiciadas
pelos direitos sociais, as liberdades individuais não poderiam ser efetivamente
2
exercidas. De outro lado, porque essa construção retrata um quadro eurocêntrico e
historiograficamente inadequado, visto que nem todos os Estados passaram por todas
essas etapas, ou não vivenciaram a positivação de tais direitos nessa mesma ordem
cronológica.
Alguns autores propõem, em razão disso, modificar a nomenclatura de gerações
3
para dimensões, tentando afastar as aludidas impropriedades. Mas a mudança, na
prática, não altera em absolutamente nada o problema. Embora tais refutações sejam
válidas, elas não constituem o principal defeito da classificação geracional dos direitos
fundamentais. Não é preciso muito esforço para perceber que os direitos de liberdade
continuam sendo albergados nas Constituições dos Estados verdadeiramente
democráticos, ainda que com o advento dos direitos sociais e dos transindividuais, que
logicamente não os substituíram, ou que a sequência supramencionada não reflete a
experiência de todas as nações contemporâneas, tratando-se de uma generalização
inidônea.
O grande prejuízo encontra-se no plano jurídico-dogmático, e deriva da
suposição de que cada uma dessas “espécies” de direitos fundamentais possui
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caracteres jurídicos que lhe são próprios e que a distinguem das outras modalidades.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos
fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 45.
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Essa explicação, da qual se discorda frontalmente pelos motivos adiante expendidos, é
apresentada por Manoel Gonçalves Ferreira Filho, ao afirmar que “as três gerações, como o próprio termo
gerações indica, são os grandes momentos de conscientização em que se reconhecem 'famílias' de
direitos. Estes têm assim características jurídicas comuns e peculiares. Ressalve-se, no entanto, que, no
concernente à estrutura, há direitos que, embora reconhecidos num momento histórico posterior, têm a
que é típica de direitos de outra geração. Mas isso é um fenômeno excepcional”. FERREIRA FILHO,
Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 14. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 24.
Diferentemente do autor, o que se sustentará no presente trabalho é que a estrutura e as características de
todos os direitos fundamentais é rigorosamente a mesma, não havendo qualquer excepcionalidade nisso.
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Revista de Direitos Fundamentais e Democracia, Curitiba, v. 14, n. 14, p. 618-688, julho/dezembro de 2013.

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