A Doutrina da Proteção Integral e seus Ainda Restritos Efeitos sobre as Políticas Públicas Voltadas à Criança e ao Adolescente

AutorGianpaolo Poggio Smanio; Patrícia Tuma Martins Bertolin
Páginas63-73

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1. Introdução

Por ocasião dos 25 anos da edição do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que se pautou pela Doutrina da Proteção Integral das crianças e dos adolescentes, em substituição ao paradigma anterior (assistencial/punitivo-repressivo), é essencial uma avaliação de seus efeitos sobre as políticas públicas do Estado Brasileiro com relação às suas crianças e aos seus adolescentes.

Este artigo objetiva analisar, dentro do espaço proposto, os avanços do sistema de proteção integral existente e quais são as suas fragilidades, bem como eventuais alternativas de abordagem e atuação do Estado e de suas instituições voltadas à proteção da criança e do adolescente.

Inicialmente, entendemos o sistema como rompimento com o paradigma anterior, abandonando a concepção punitivo-repressiva e adotando doutrina protetiva de direitos e personalidade, garantindo à criança e ao adolescente a cidadania, como sujeito de direitos.

Este posicionamento em nosso sistema decorre da Constituição de 1988, tendo o Estatuto da Criança e do Adolescente se voltado a efetivar suas diretrizes e adotar expressamente a doutrina da proteção integral.

No entanto, a efetivação desta proteção integral encontra grandes fragilidades em nossa realidade social, demandando uma Política Pública de Estado voltada à consecução dos Direitos Humanos da Criança e Adolescente.

2. O paradigma anterior

Inobstante os diferentes pontos de vista acerca da eficácia do Estatuto da Criança e do Adolescente,

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25 anos depois da sua edição, é quase um consenso que a normativa anterior é quase toda marcada por uma concepção punitivo-repressiva — ou, no mínimo, de cunho assistencial.

A literatura é farta em análises que se estendem desde a colonização, relatando a aculturação das crianças indígenas pelos jesuítas, passando pela segregação e discriminação dos “enjeitados”, no Império, ou pela Roda dos Expostos, no início do século XX1. Para os estreitos fins deste trabalho, partiremos de 1920, desconsiderando a trajetória anterior.

Citem-se alguns exemplos de diplomas em que se evidenciou a prevalência de um tratamento punitivo-repressivo: a Lei n. 4.242, de 1921, que “autorizava o Poder Executivo a organizar um serviço de assistência e proteção à infância abandonada e delinquente”2; o Decreto n. 16.272, do ano seguinte, que criou um Juiz Privativo de Menores, para prestar assistência, proteção, processo e julgamento dos menores abandonados e delinquentes, além de dispor sobre a instalação da “Escola de Reforma”; o Código de Menores de 1927 (Código Mello Mattos), que, ao possibilitar a internação de menores pobres, que considerava potenciais criminosos, associou indiscutivelmente repressão penal e assistência social3.

Em 1940, o Código Penal então promulgado estabeleceu a maioridade penal aos 18 anos, sendo os menores de 18 anos considerados “penalmente irresponsáveis”, ficando submetidos às normas da legislação especial (o Código de Menores).

A Lei n. 4.513, editada alguns meses após a instalação da ditadura militar, criou a Fundação para o Bem-Estar do Menor (Funabem) e preten-deu substituir o modelo repressivo pelo modelo assistencialista, mas a Funabem veio a ser instalada na mesma estrutura física do órgão anterior, aproveitando o mesmo pessoal, o que propiciou um processo de assimilação do modelo correcional-repressivo4.

Segundo Patrícia Bertolin e Suzete Carvalho:

Nem a Carta Constitucional de 1967, nem a Lei n. 6.697, de 1979 — o Código de Menores editado em substituição ao anterior —, que se propunham a cuidar dos menores, mudaram o modo de ver a questão, uma vez que o Estado poderia retirar crianças de famílias pobres quando julgasse conveniente. Prevalecia, como ainda hoje, mesmo que de forma minimizada, o ideário de que pobreza e delinquência caminhariam juntas.5

A abertura política ocorrida da década de 1980 possibilitou que o Brasil viesse a ter uma “Constituição Cidadã”, em que se viu uma proliferação de sujeitos de direitos (trabalhadores, mulheres, crianças e adolescentes...). Não sem razão, autores chegam a afirmar que, no Brasil, constituiu-se “uma noção particular de infância e adolescência que protela políticas sociais de atendimento à criança e ao adolescente como direitos de cidadania até a década de 1980”6.

No que diz respeito à infância e adolescência, o texto constitucional foi absolutamente inovador, no cenário normativo nacional, ao instituir novos direitos e prever uma política de proteção integral, que passaria a tratar as crianças e os adolescentes, sem discriminar os abandonados e/ou infratores, como cidadãos.

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3. A Constituição de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente e a Doutrina da Proteção Integral

O principal movimento no sentido da cidadania das crianças e dos adolescentes, no Brasil, foi dado pela Constituição de 1988, ao pautar o tratamento da matéria pela Doutrina da Proteção Integral.

Segundo Gianpaolo Poggio Smanio:

Podemos afirmar com segurança que a doutrina da proteção integral das crianças e dos adolescentes tem matriz constitucional em nosso direito, pois a Constituição Federal de 1988 determina em seu art. 227 ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e às convivências familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA — Lei n. 8.060/90), em seu art. 1º, apenas explicita o mandamento constitucional ao determinar que a lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente.7

Assim, tanto a Constituição de 1988 quanto o Estatuto da Criança e do Adolescente, editado em 13 de julho de 1990, conferiram à infância e à adolescência prioridade absoluta, considerando os que se encontram nessas fases da vida como pessoas em condições peculiares de desenvolvimento e, por isso, merecedoras de atenção especial8.

Ambos os diplomas, o Constitucional e o Legal, estiveram comprometidos com a instituição, em nosso País, de uma nova concepção de infância e de adolescência, consonante com um Estado de Bem-Estar Social9, expressa na Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, adotada pela Organização das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989 e ratificada pelo Brasil em 1990 e hoje aceita por quase todos os países do mundo.

A promulgação de um texto legislativo como o ECA, garantindo que as crianças e os adolescentes são sujeitos de direitos e terão todas as oportunidades e facilidades para o seu pleno desenvolvimento, acarreta para o Estado e para a sociedade brasileiros uma série de compromissos no que diz respeito à formulação, à implementação e ao controle de políticas públicas visando a tornar efetivos seus preceitos.

Isso impõe um Estado presente, com planejamento e orçamento que contemplem os interesses das crianças e dos adolescentes como prioridades. Contudo, essas políticas tiveram de ser levadas a efeito em um período de desmanche do Estado Social — que nem sequer chegou a existir no Brasil, nos moldes da Europa do Pós-Guerra. As conquistas democráticas constantes do texto constitucional exigiam uma profunda reforma do Estado, que incluía a revisão do pacto federativo, para uma melhor articulação entre sociedade e Estado.

Sombrio o panorama descrito por Elaine Rossetti Behring e Ivanete Boschetti:

[...] a transformação desse projeto em processo não pôde ser plenamente realizada, já que veio se deparando com obstáculos econômicos, políticos e culturais, o que exige persistência, uma vontade política forte e a compreensão de que estão empreendidas mudanças de largo prazo.10

Se os anos de 1980 foram fecundos no que diz respeito aos movimentos sociais, gérmen dos direitos de cidadania, foram também anos marcados por uma intensa crise econômica, que prenunciou a década seguinte como um período de hegemonia

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neoliberal, marcado por privatizações, flexibilização de direitos trabalhistas, desregulamentação, reestruturação produtiva, em suma: de absoluta preponderância do mercado.

Naquele contexto, o Poder Executivo se sobrepunha aos demais, os tecnocratas não se importavam com a constitucionalidade de seus ajustes (bastando que funcionassem, contendo a recessão) e as políticas sociais foram extremamente reduzidas. O esforço de concretizar direitos sociais em conjuntura tão desfavorável mostrou-se uma tarefa para Sísifo11.

A rede de atendimento estabelecida pelo ECA é integrada pelos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, pelos Conselhos Tutelares, pelo Ministério Público, pelas Delegacias de Defesa da Criança e do Adolescente, pelas Varas da Infância e Juventude e pelas Organizações Não Governamentais (ONGs), em sistema de cooperação.

Trataremos, ainda que de forma breve, dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, importantes instâncias propositivas e avaliativas das políticas, conforme destacado no quadro abaixo:

Fonte: MORELLI, Ailton José; SILVESTRE, Eliana; GOMES, Telma Maranho. Desenho da política dos direitos da criança e do adolescente. Psicologia em Estudo, v. 5, n. 1, p. 72, mar. 2000. Disponível em: . Acesso em: 2.2.2015.

Aos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, compostos paritariamente por representantes de órgãos governamentais e não governamentais, incumbe elaborar e fiscalizar as políticas. Existem nas três esferas da federação, sendo fundamental que contem com a participação ativa dos membros da comunidade.

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