Sobre a classificação dos tributos em diretos e indiretos

AutorPaulo de Barros Carvalho
CargoProfessor Titular e Emérito da Faculdade de Direito da USP e da PUC/SP. Membro Titular da Academia Brasileira de Filosofia.
Páginas7-20

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1. Conhecimento e Linguagem

Decompondo-se o fenômeno do conhecimento, encontramos o dado da linguagem, sem o qual ele não se fixa nem se transmite. Já existe um quantum de conhecimento na percepção, mas ele se realiza mesmo, na plenitude, no plano proposicional e, portanto, com a intervenção da linguagem. "Conhecer", ainda que experimente mais de uma acepção, significa "saber proposições sobre". Conheço determinado objeto se posso expedir enunciados sobre ele, de tal arte que o conhecimento, nesse caso, se manifesta pela linguagem, mediante proposições descritivas ou indicativas.

Por outro lado, a cada momento confirma-se a natureza da linguagem como constitutiva de nossa realidade. Já afirmava Wittgenstein, na proposição 5.6 do Tractatus Logico-Philosophicus, que "os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo", significando: meu mundo vai até aonde for minha linguagem. A experiência o comprova: olhando para uma folha de laranjeira, um botânico seria capaz de escrever laudas, relatando a "realidade" que vê, ao passo que o leigo ficaria limitado a poucas linhas. Dirigindo o olhar para uma radiografia de pulmão, o médico poderia sacar múltiplas e importantes informações, enquanto o advogado, tanto no primeiro caso, como neste último, ver-se-ia

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compelido a oferecer registros ligeiros e superficiais. Por seu turno, examinando um fragmento do Texto Constitucional brasileiro, um engenheiro não lograria mais do que construir mensagem adstrita à fórmula literal utilizada pelo legislador, enquanto o bacharel em Direito estaria em condições para desenvolver análise ampla, contextual, trazendo à tona o conteúdo das normas jurídicas, identificando valores e apontando princípios. Por que alguns têm acesso a esses campos e outros não? Por que alguns ingressam em certos setores do mundo, ao mesmo tempo em que outros se acham absolutamente impedidos de fazê-lo? A resposta é uma só: a realidade do botânico, com relação à Botânica, é bem mais abrangente do que a de outros profissionais, o mesmo ocorrendo com a realidade do médico, do engenheiro e do bacharel em Direito. O fator determinante para que essas realidades se expandissem, dilatando o domínio dos respectivos conhecimentos, é a linguagem ou a morada do ser, como proclamou Heidegger.

O laço que prende um termo a seu significado costuma apresentar-se aos nossos olhos como algo dado a nós, um vínculo natural conhecido como elemento da realidade. Todavia, essa relação entre a palavra e a coisa é artificial. Quando aprendemos o nome de um objeto, não aprendemos algo acerca da coisa, senão sobre os costumes linguísticos de certo grupo ou povo que fala o idioma no qual esse nome corresponde a um específico objeto. Não obstante seja corriqueiro afirmar-se que uma coisa tem nome, seria mais rigoroso dizer que nós é que temos um nome para essa coisa. Disso decorre uma conclusão necessária: não existem nomes verdadeiros ou falsos. Há, tão somente, nomes aceitos ou não aceitos. A possibilidade mesma de inventar nomes, por sua vez, também leva um nome: liberdade de estipulação. Nesse sentido, asseveram Guibourg, Ghigliani e Guarinoni,1cheios de convicção:

"Estas consideraciones nos llevan a una nueva conclusión, más profunda que la anterior: al inventar nombres (o al aceptar los ya inventados) trazamos límites en la realidad, como se la cortáramos idealmente en trozos; y al asignar cada nombre constituimos (es decir, identificamos, individualizamos, delimitamos) el trozo que, según hemos decidido, corresponderá a ese nombre. (...) Por esto la realidad se nos presenta ya cortada en trozos, como una pizza dividida en porciones, y no se nos ocurre que nosotros podríamos haber cortado las porciones de otro tamaño o con otra forma".

Decididamente, é também a linguagem que nos dá os fatos do mundo físico e do social. Feita a observação, verifica-se que o homem vai criando novos nomes e novos fatos, na conformidade de seus interesses e de suas necessidades. Para nós, basta uma só palavra para designar "neve". Para os esquimós, entretanto, envolvidos por circunstâncias bem diversas, impõe-se a distinção entre as várias modalidades de "neve" e a cada uma corresponderá um termo. Não se pode precisar o motivo exato, mas os povos de cultura portuguesa houveram por bem, em determinado momento de sua evolução histórica, especificar a palavra "saudade", diferentemente de outras culturas que a mantêm incluída em conceitos mais gerais, como "nostalgia", "tristeza" etc. Em português, como em castelhano, temos "relógio" ("reloj"); já em inglês discriminou-se "clock" para o relógio de parede e "watch" para o de bolso ou de pulso. E, em francês, existem três vocábulos distintos: "horloge" (de torre ou de parede), "pendule" (de mesa ou de pé) e "montre" (de bolso ou de pulso).

O esclarecimento das razões determinantes dessas especificações é, muitas vezes, encontrado na Gramática Histórica, disciplina incumbida de estudar as dinâmicas que presidem a evolução do idioma. A observação revela que tanto as palavras recém-criadas como as novas acepções atribuídas àqueles termos já conhecidos, incorporam-se ao patrimônio linguístico por força de necessidades

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sociais. A Física tinha no átomo a unidade irredutível da matéria. Com o progresso do interesse científico e o avanço pesquisa que culminou com a possibilidade de decomposição daquela partícula, tornou-se imperiosa a expansão da linguagem para constituir a nova realidade: eis o "próton", o "nêutron", o "elétron".

Breve comparação entre dicionários de um mesmo idioma, editados em momentos históricos diferentes, aponta para significativo crescimento do número de palavras, assim na chamada "linguagem natural", como nos discursos das várias ciências. É a linguagem constituindo realidades novas e alargando as fronteiras do nosso conhecimento.

1. 1 A constituição da "realidade jurídica" por meio da linguagem

A linguagem natural está para a realidade em que vivemos assim como a linguagem do direito está para a nossa realidade jurídica. Dito de outra maneira, da mesma forma que a linguagem natural constitui o mundo circundante, por nós chamada de realidade, a linguagem do direito cria o domínio do jurídico, isto é, o campo material das condutas intersubjetivas, dentro do qual nascem, vivem e morrem as relações disciplinadas pelo direito. Se não há fato sem articulação de linguagem, também inexistirá fato jurídico sem a linguagem específica que o relate como tal. Se, por exemplo, S’ empresta quantia em dinheiro para S’’, mas não consegue expressar sua reivindicação mediante as provas prescritas pelo direito como ajustadas à espécie, vale dizer, faltando a linguagem jurídica competente para narrar o acontecimento, não se poderá falar em fato jurídico. A circunstância conserva sua natureza factual porque descrita em linguagem ordinária, porém não alcança a dignidade de fato jurídico por ausência da expressão verbal adequada.

O direito positivo é vertido em lingua-gem técnica, assim entendida toda aquela que se assenta no discurso natural, aproveitando, em quantidade considerável, palavras e ex-

pressões de cunho determinado, pertinentes ao patrimônio das comunicações científicas. Projeta-se sobre o campo do social, disciplinando os comportamentos interpessoais com seus três operadores deônticos (obrigatório, proibido e permitido), orientando as condutas em direção aos valores que a sociedade quer ver implantados. Sua função é eminentemente prescritiva, incidindo como um conjunto de ordens, de comandos, produzidos com o intuito de alterar comportamentos sociais, motivando seus destinatários.

Em termos de ação direta, é a linguagem do direito posto que constitui as realidades do mundo jurídico. Mesmo quando mal aplicadas, as regras do direito operam em nome do ordenamento em vigor, recortando-se o mundo social na estrita conformidade das determinações contidas nos seus comandos. Eis o fato meramente social adquirindo a dimensão de fato jurídico. Foi juridicizado, na expressão empregada por Pontes de Miranda, e, nesse momento, constituiu-se uma situação nova, ampliando a realidade do direito pela ação de sua linguagem própria.

2. Linguagem social, linguagem econômica e linguagem jurídica: o problema da definição de "fato puro", "fato contábil" e "fato jurídico"

Feitas as necessárias considerações sobre a relevância da linguagem prescritiva do direito na constituição da realidade jurídica, convém discorrer sobre assunto de grande atualidade: os contornos constitutivos do fato jurídico tributário. O fato que dá causa a uma relação jurídica pode ser objeto de qualificações não jurídicas? Em outras palavras, o fato, antecedente da norma jurídica individual e concreta, pode ser entendido como fato econômico, fato contábil, fato político ou mesmo fato histórico? É o que iremos examinar. Adianto, porém, que no contexto jurídico, só tem cabimento falar-se em elementos juridicizados, sendo inadmissível pretender atribuir efeitos de direito a fatos meramente econômicos, contábeis, políticos ou históricos.

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Retornemos da digressão para considerar que, no degrau da hermenêutica jurídica, o grande desafio de quem pretende desvelar o conteúdo, sentido e alcance das regras de direito radica na inafastável dicotomia entre a letra da lei e a natureza do fenômeno jurídico subjacente. O...

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