Do Direito das Famílias: introduzindo o tema da afetividade familiar

AutorCarlos José Cordeiro/Josiane Araújo Gomes
Páginas21-33

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O surgimento da família constitui fato inerente à própria condição humana, na medida em que a dependência do outro é característica de qualquer pessoa, o que torna a formação dos agrupamentos sociais imprescindível para que cada ser humano possa suprir suas necessidades físicas, psíquicas e culturais, em busca do seu pleno desenvolvimento pessoal. Representa a família, assim, estrutura social básica, em que se tem o início do desenvolvimento das potencialidades próprias de cada um de seus membros, possibilitando-lhes a convivência em sociedade e o alcance de suas realizações particulares.

Contudo, verifica-se não ser possível fixar um modelo de família uniforme, haja vista que, por ser a família um fato natural, a sua formação e composição sofrem influência direta das mudanças da sociedade, representando, assim, verdadeiro espelho do momento histórico-social. Nesse passo, o que se constata no passado recente da sociedade brasileira é a transição da concepção de família como unidade econômica, matrimonializada, hierarquizada, patriarcal e transpessoal para uma compreensão existencial, igualitária, aberta, plural e multifacetária.

Com efeito, no Brasil, desde a instituição da República até antes do advento da Constituição Federal de 1988, a formação familiar reconhecida pelo Estado era, apenas, aquela constituída por meio do matrimônio. Tal disciplinamento legal se deu em razão da necessidade de preservar a harmonia da sociedade, fundada no aspecto patrimonial, ou seja, a família era vista como uma unidade de produção, a qual deveria permanecer unida, sob a regência do patriarca, de

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modo a possibilitar o acúmulo de riqueza, requisito essencial para a ascensão social. A título exemplificativo, destaca-se que a Constituição Federal de 1891 era expressa no sentido de ser reconhecido apenas o “casamento civil, cuja celebração será gratuita” (art. 72, § 4º); e a Constituição Federal de 1934 dispunha que a “família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado” (art. 144).

Em vista disso, o Código Civil de 1916 consagrou a identificação da família unicamente ao instituto do casamento e, por consequência, trouxe vedação expressa quanto ao reconhecimento de qualquer direito às relações que se distanciassem da união conjugal, as quais eram identificadas, por esse diploma legal, como espúrias, adulterinas ou concubinárias. Além disso, possuía por fundamento a necessidade de preservação da família – notadamente devido ao caráter patrimonial atribuído às uniões conjugais –, razão pela qual o Código Civil de 1916 elencava direitos e deveres de observância obrigatória pelos cônjuges, bem como, em sua redação original, determinava a indissolubilidade do vínculo matrimonial.

Todavia, sendo a família um fenômeno cuja formação se dá de modo espontâneo no meio social, o que se verificou, na realidade prática, foi a não sustentabilidade do vínculo matrimonial indissolúvel. De fato, independentemente da previsão do Código Civil de 1916, as pessoas casadas rompiam as suas relações conjugais e formavam outras, tudo no plano fático, o qual, assim, não mais restava traduzido no plano jurídico. Diante disso, em 1977, houve o advento da Lei nº 6.515, responsável por instituir a dissolubilidade do vínculo matrimonial, prevendo as figuras da separação judicial e do divórcio.

Dessa forma, constata-se que no período anterior ao advento da ordem constitucional vigente, a legislação pátria tinha por foco, apenas, a proteção do vínculo conjugal, não reconhecendo, como entidade familiar, qualquer outro relacionamento afetivo instituído pelas pessoas no meio social. Havia, assim, visão formal e transpessoal da família, na medida em que o casamento era tido como um bem em si mesmo, cuja essencialidade se tornara inquestionável, sobrepondo-se, inclusive, à consideração do afeto como elemento imprescindível para a instituição de comunhão de vidas entre o casal – o que, aliás, nem era cogitado pela legislação até então vigente.

Mas, tal visão normativa da família não mais traduzia a definição de entidade familiar presente na realidade social, notadamente a partir da década de 1970 – relembre-se o advento da Lei nº 6.515 em 1977. Com efeito, tem-se o início da transição da concepção de família como espaço de poder orientado para a pre-

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servação da harmonia social e, por consequência, uma instituição estritamente limitada e disciplinada pelo Estado, para a sua concepção como instrumento a serviço do bem-estar dos seus membros, construída por relações de afeto, de solidariedade e de cooperação. Há, em decorrência, o aumento da complexidade das relações familiares, por assumirem perfil multifacetário, devido ao aparecimento de novas formações, como as famílias monoparentais, as uniões afetivas entre pessoas de mesmo sexo e a filiação socioafetiva, que exigem, pois, uma nova visão da família pela ciência jurídica.

Nessa sentido, o Direito de Família se torna, na verdade, Direito das Famílias, face às intensas transformações a que é submetido, as quais se baseiam, notadamente, na mudança de paradigma a fundamentar a formação e manutenção das entidades familiares, exteriorizado no valor da afetividade. Com efeito, o afeto constitui, na atualidade, o alicerce e a mola propulsora das diversas modalidades de formações familiares, pois abrange toda a gama de sentimentos inerentes às relações interpessoais – amor, paixão, amizade, simpatia, perdão, solidariedade, transigência etc. – que sejam capazes de aproximar as pessoas em prol do alcance da felicidade individual e comum. Assim, o reconhecimento do caráter multi-facetário da família é responsável por atribuir juridicidade ao afeto, pois este representa o fundamento de existência das relações familiares, cuja presença é imprescindível para a manutenção e preservação do vínculo familiar.

Portanto, deve-se entender por família a reunião de pessoas ligadas por vínculos afetivos – podendo ou não estar presente a consanguinidade –, cujo objetivo primordial seja possibilitar o integral desenvolvimento da personalidade de seus integrantes, em busca da realização de suas aspirações à felicidade, bem como à construção de suas potencialidades em prol da convivência em sociedade. Logo, a família representa a unidade primária de associação dos indivíduos e, portanto, a unidade fundamental da sociedade, responsável por veicular afeto e solidarie-dade entre os seres sociais.

Tendo em vista as concretas mudanças nas relações familiares, a Constituição Federal de 1988 é responsável por promover, normativamente, profundas alterações no conceito de entidade familiar. De fato, ao preceituar, como princípio fundamental da República, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a Carta Maior impede a superposição de qualquer estrutura institucional à tutela de seus integrantes, razão pela qual há o deslocamento da tutela constitucional pura e simplesmente do casamento para abarcar todas as relações familiares que dele se diferem ou distanciam, desde que fundadas na afetividade. Outrossim,

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a milenar proteção da família como instituição, ou seja, unidade de produção e reprodução dos valores culturais, éticos, religiosos e econômicos, é ampliada para possibilitar a tutela essencialmente funcionalizada à dignidade de seus membros, possibilitando-lhes a efetiva busca pela felicidade, atribuindo à família, portanto, verdadeiro perfil eudemonista.

Nesse passo, a Constituição Federal de 1988, ao adotar o princípio do pluralismo das entidades familiares, reconhece, ao lado da família conjugal, a união estável (art. 226, § 3º) e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (art. 226, § 4º), o que não impede a configuração de outras modalidades no seio social. Ademais, dispõe sobre a plena igualdade entre homem e mulher no exercício dos direitos e deveres referentes à sociedade conjugal (art. 226, § 5º), além de garantir iguais direitos e qualificações aos filhos, havidos ou não da relação do casamento, por adoção ou decorrentes da socioafetividade, proibidas quaisquer designações discriminatórias (art. 227, § 6º).

Dessa forma, a Carta Magna de 1988 é responsável por consagrar importante transformação no conceito de família, a qual deixa de ser um organismo preordenado a fins externos, para se tornar núcleo de companheirismo a serviço das próprias pessoas que a constituem. De fato, não cabe ao Estado-legislador criar o fenômeno familiar, mas apenas tutelar as famílias que se formam naturalmente, orientadas e estruturadas pelo afeto, de modo a proteger a dignidade de seus membros. Portanto, a família representa o ambiente em que cada pessoa busca a sua própria realização, por meio do relacionamento com outras pessoas, não se restringindo apenas ao casamento, estrutura familiar instituída pelo Estado.

Destarte, o alargamento conceitual de família é responsável por permitir, em regra2, o reconhecimento como entidade familiar de toda e qualquer relação

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pontificada pelo afeto, independentemente da existência de sua previsão em texto legal – o que, inclusive, impõe a atribuição de tratamento isonômico a todas às relações familiares pelo Direito Civil, notadamente do Direito das Famílias, não...

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