Do direito à anarquia

AutorLuiz Fernando Coelho
Páginas141-169
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– VIII –
DO DIREITO À ANARQUIA
Sumário: 1. Utopia e anarquia. 2. O novo eterno retorno. 3.
Anarquia e direito natural. 4. O papel crítico da jusfilosofia.
1. Utopia e anarquia
As reflexões a seguir têm o escopo de colmatar uma lacuna
apontada por comentadores da teoria crítica do direito, e que até certo
ponto corresponde a um vazio na produção teórica orientada pelo
pensamento crítico atual: a falta de um projeto político consistente que
possa constituir resposta ao desafio da Undécima Tese, de que aos
filósofos cumpre a transformação do mundo e não sua mera interpretação.
Com efeito, as políticas que se afastam do modelo neoliberal ou
tratam de corrigir suas distorções ostentam um ponto comum, o
inconformismo perante a insuficiência das soluções até agora propostas
para os magnos problemas da humanidade.
O sentido de transformação social que essas políticas imprimem
às respectivas teorizações, com vistas ao resgate dos valores da dignidade
humana, frequentemente as leva a convergir para utopias que vislumbram
uma sociedade cujos indivíduos nela encontrem o ambiente propício à
realização de seu potencial humanístico e eudemonístico. E assim, os
conflitos ideológicos acabam por reduzir-se a uma metodologia sobre a
melhor maneira de criar uma sociedade democrática e igualitária, que
seja justa, sobretudo sem miseráveis. Mais do que um Estado de direito,
anseia-se por um Estado de justiça.
Luiz Fernando Coelho
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As considerações ora trazidas à colação dizem respeito a esse tema
– se ninguém duvida de que é preciso transformar a sociedade, é de
perguntar-se: transformá-la em quê? E como?
O ideal que tem orientado muitas das atuais manifestações do
pensamento crítico no direito é a tese da anarquia. Efetivamente, mais
do que um resgate das utopias que transparecem sob as doutrinas jurídicas
e políticas, impõe-se a retomada dos ideais anarquistas, totalmente
elididos em virtude da conotação pejorativa que tomou a palavra
anarquia. Isso não obstante, à medida que esses conceitos são
apropriados pela teoria crítica do direito, podem servir como linha de
pensamento que deve orientar os presentes estudos. Entretanto, evitarei
brevitatis causa as acadêmicas discussões sobre o conceito de anarquia,
sobre os movimentos anarquistas1 que eclodiram no passado e sobre as
tentativas históricas de implantação de sociedades anárquicas2. Nem se
trata de uma história da anarquia, nem de uma das utopias, passando ao
largo das descrições utópicas de Moro, Campanella, Owen, Fourier,
Volney, Cabet, Bacon, bem assim dos clássicos sonhos da Utopia,
Palmira, Icaria, Nova Atlântida e Cidade do Sol. O que pretendo, data
venia, privilegiar é minha própria reflexão, resultado de muita insônia
jusfilosófica.
No contexto atual do pensamento político, a ideia de uma sociedade
anárquica é geralmente encarada com conotação pejorativa ou pelo
menos como algo ultrapassado; isso pela deturpação de sentido da palavra
anarquia, geralmente compreendida como ausência de todo o direito e
espaço para o caos social que a liberdade sem limites soeria propiciar.
1 CASSAGNAU, Robert. Vive l’Anarchie! Paris: France-Empire, 1973.
2 Referência especial deve ser feita à experiência tentada no sul do Brasil, no final do século XIX. Em 20 de
fevereiro de 1890, seis italianos, entre os quais Giovanne Rossi, partiram de Gênova, dispostos a estabelecer
uma colônia anarquista no Brasil. Seu ideal almejava uma vida em comunidade onde não haveria nem
pátria e nem patrão. E também não haveria Deus. Pacifistas, pregavam o trabalho comunitário e o amor
livre em famílias poliândricas. Instalaram-se em Colônia Cecília, Município de Palmeira, a 100 km de
Curitiba, no Estado do Paraná. Entretanto, apenas duas famílias se formaram, sendo uma delas a do próprio
Rossi, onde coabitavam três maridos e uma mulher. O grupo se desfez em 1894, tendo conseguido provar
que era possível uma forma mais saudável e justa de existir. As famílias se dispersaram espalhando a
semente libertária. V. Mello Neto, Cândido de. O Anarquismo Experimental de Giovanni Rossi. Ponta
Grossa: Universidade Estadual de Ponta Grossa, 1996.

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